Classificação indicativa: uma perspectiva semântica

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Ekaterine Karageorgiadis (*)

Em 30 de novembro de 2011 iniciou-se, no Supremo Tribunal Federal, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.404, proposta em 2001 pelo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, com a finalidade de questionar a parte do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)1, que define como infração administrativa o desrespeito, pelas emissoras de rádio e televisão, do horário protegido pelo instituto da Classificação Indicativa.
 
Ingressaram ao processo, na qualidade de Amici Curiae, a ABERT – Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão, e as instituições da sociedade civil ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância, Conectas Direitos Humanos, Instituto Alana e Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC. A ADIn já recebeu quatro votos favoráveis a sua procedência. O Senhor Ministro Dias Toffoli, relator da ação, foi acompanhado pelos Senhores Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ayres Britto. O quinto Ministro a se manifestar, Joaquim Barbosa, pediu vistas dos autos, suspendendo, assim, o julgamento da demanda.
 
Inicialmente, cabe apresentar os principais raciocínios que embasam a ação em trâmite no Supremo Tribunal Federal:
 
1) O artigo 254, do ECA, dispõe que a infração é cometida ao se descumprir uma autorização. Se a Constituição Federal, em seu artigo 220, §3º, I, dispõe que cabe ao Poder Público informar sobre a natureza dos espetáculos públicos e sobre as faixas etárias a que não se recomendem2, ou seja, se a Lei Maior fala em informação e recomendação, a lei inferior não poderia falar em autorização. Porque autorizar seria mais do que informar e recomendar. Autorizar significaria a existência de um procedimento estatal prévio. E tal conduta equivaleria à temida censura.
 
e
 
2) A classificação é indicativa. Se é indicativa, não é obrigatória. Se não é obrigatória, as emissoras teriam a discricionariedade de respeitar, ou não, a vinculação horária, e, portanto, não poderiam ser punidas caso decidam por não respeitá-la.
 
É muito amplo dizer que a ADIn 2.404 vai contra a Classificação Indicativa como um todo. Mas também é muito simplista dizer que seu objetivo é apenas afastar as sanções impostas àqueles que descumpram o estabelecido no artigo 254, do ECA. A ação, baseada em questionamentos semânticos a respeito dos termos autorizado e indicativa, busca caracterizar o instituto como um instrumento de censura prévia, que, ademais, não poderia vincular as emissoras, posto que, supostamente, facultativo, tanto para elas como para os pais e responsáveis.
 
O presente artigo tem por objetivo analisar cada um desses pontos com a intenção de demonstrar que longe de ser censura, a Classificação Indicativa é um mecanismo importante para prevenção de violação de direitos de crianças e adolescentes, e de empoderamento de seus pais e responsáveis, previsto na Constituição Federal, e no Estatuto da Criança e do Adolescente, e democraticamente construído e aperfeiçoado, ao longo dos anos, como demonstra a Portaria 1.220/07, do Ministério da Justiça, que atualmente trata da Classificação Indicativa das obras audiovisuais destinadas à televisão. Ou seja, muito além das questões semânticas, relativas à definição dos termos autorizado e indicativa, devem ser considerados o processo histórico, sistemático e lógico da criação do instituto.
 
O voto proferido pelo Sr. Ministro Relator da ADIn 2.404
 
Ao longo de seu voto, o Senhor Ministro Dias Toffoli, relator da ADIn, apresentou o entendimento de que a ação não vai contra a Classificação Indicativa, e nem poderia, uma vez que o instituto constitui uma forma de proteção da criança e do adolescente prevista na Constituição Federal para servir de freio à liberdade de expressão nos meios de comunicação, que, portanto, não é plena, uma vez que pode encontrar limites, desde que expressamente previstos no texto constitucional. A ADIn iria contra o excesso legislativo presente na expressão em horário diverso do autorizado, contida no art. 254, do ECA.
 
No entanto, apesar de entender a Classificação Indicativa como um ponto de equilíbrio entre a proteção do público infanto-juvenil e a liberdade de expressão, ao tratar do alcance e finalidade do instituto, o Sr. Ministro Relator o apresentou apenas como um mecanismo direcionado aos pais e responsáveis para que, no exercício do poder familiar, possam supervisionar o conteúdo acessível por seus filhos. Não seria uma imposição às emissoras. Aliás, sequer seria dirigido às emissoras.
 
Além disso, o Senhor julgador entende que a classificação seria um sistema eminentemente estatal, estabelecido e executado diretamente por agentes burocratas do Estado, que atuariam em nome da sociedade. Desta forma, conclui que o método brasileiro estaria distante das tendências regulatórias de democracias ocidentais, que aplicariam o autocontrole, ou a corregulação, ao invés do controle exclusivamente público, como seria a Classificação Indicativa.
 
A conclusão a que chega é que a expressão em horário diverso do autorizado seria inconstitucional pois a submissão do conteúdo audiovisual ao Ministério da Justiça não poderia configurar ato de licença ou de autorização estatal para sua exibição, mas apenas de informação e recomendação, e, portanto, restaria violado o direito fundamental das emissoras de estabelecerem livremente suas programações. A suposta necessidade de autorização estatal prévia, cujo descumprimento acarretaria a aplicação de uma sanção, transformaria a classificação, que é indicativa, em obrigatória. A expressão questionada na ação amarraria o exercício da liberdade de expressão, para convertê-lo em algo proibitivo, impositivo e vinculante. A mera recomendação não poderia gerar a aplicação de multa, cuja previsão configuraria, portanto, abuso constitucional.
 
Alcance e finalidade da classificação indicativa
 
A propósito, cumpre primeiramente esclarecer que a vinculação horária estabelecida pelo sistema de Classificação Indicativa é abstrata, e não concreta. Ou seja, os critérios de classificação propostos pelo Poder Público, via Ministério da Justiça, não têm como pressupostos os conteúdos de programas já concebidos. Em outras palavras, ao definir os conteúdos próprios e impróprios para determinadas faixas etárias e horários, segundo critérios de sexo, drogas e violência, o Poder Público não tomou como base os programas A, B ou C, das emissoras X, Y, ou Z. A adoção dos critérios protetivos se baseou em situações hipotéticas, que poderiam ser prejudiciais às crianças e jovens que as assistissem.
 
O que interessava, e ainda interessa, ao Poder Público, e deveria interessar também às emissoras, é a proteção das crianças e dos adolescentes, enquanto espectadores de conteúdos televisivos, garantindo-se aos seus pais e responsáveis meios de defendê-los de conteúdos inadequados à sua formação. A lógica adotada pelo Ministério da Justiça, fundamentada na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é que a defesa dos interesses das crianças e dos adolescentes deveria poder ser feita mesmo quando os responsáveis pelos menores estiverem fora de casa, trabalhando, por exemplo, razão pela qual nos períodos matutino e vespertino, até às 20h, não deveriam ser veiculados conteúdos inadequados para menores de 12 anos, ou seja, para as crianças. A partir das 20h, os pais ou responsáveis, já presentes, seriam diretamente informados que os programas veiculados poderiam ter cenas mais fortes, e, assim, escolheriam se os seus filhos iriam assisti-los ou não, dentro da esfera de atuação do poder familiar.
 
A conclusão do Poder Público expressa na Portaria 1.220/07 – obtida após um longo processo democrático que envolveu inúmeros especialistas, representantes dos meios de comunicação e defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes – de que pela manhã ou à tarde as emissoras de televisão não devem veicular cenas de sexo explícito, assassinatos, consumo de drogas, e agressões verbais, não se aplica, a priori, a nenhum programa específico criado por quaisquer das emissoras de televisão, e, portanto, não constitui forma de vetar a veiculação de quaisquer conteúdos. Ademais, não se aplica a programas jornalísticos, noticiosos, esportivos, publicidade em geral e programas eleitorais exibidos em televisão.
 
A lógica, aqui, é a inversa a da censura, pois não está focada na proibição prévia de determinado conteúdo, mas sim na criação de regras de proteção e prevenção, que devem ser observadas pelos criadores de conteúdo ao exercerem a autoclassificação do que produzirem.
 
A função da Classificação Indicativa é servir de guia de orientação para os criadores, para que veiculem o programa por eles desenvolvido no horário mais adequado, informado pelo Poder Público com base em critérios abstratamente desenvolvidos. Caso a emissora pretenda que a veiculação seja em horário diverso daquele indicado pelo Ministério da Justiça, que, repita-se, sequer assistiu ao programa desenvolvido, cabe a ela fazer as alterações necessárias, sob pena de, caso decida veicular algum conteúdo impróprio a determinado horário, ser-lhe aplicada a sanção prevista na lei. O foco aqui, importante que fique claro, é a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, bem como de suas famílias, tal como previsto na Constituição Federal, e não a censura da criação televisiva.
 
Ressalte-se que não é o Poder Público quem classifica a obra audiovisual, mas sim o titular desta ou seu representante legal. Vigora, portanto, o sistema de autoclassificação, cabendo ao Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (DEJUS), do Ministério da Justiça, a análise da obra apenas depois de sua veiculação, como forma de confirmar a classificação apresentada, se adequada, ou indeferi-la, se incorreta, determinando sua reclassificação.
 
Trata-se de um processo de adequação do fato à norma, a partir de um procedimento lógico que envolve três etapas que se integram: a descrição fática da obra (relato descritivo e narrativo do conteúdo), sua descrição temática (a partir do contexto se enumeram os temas abordados na obra, para que se verifique como estão expressos os princípios constitucionais que regem a comunicação social no Brasil) e gradação (de que forma e com que intensidade a temática é tratada na obra).
 
Desta forma, as emissoras podem criar o conteúdo que quiserem, mas devem sempre indicar a faixa etária à qual o programa se destina, e, ainda, veiculá-lo no horário mais adequado ao seu público alvo, segundo critérios democraticamente preestabelecidos pelo Poder Público de forma abstrata, e não concreta, tendo em vista que não foi levado em consideração o conteúdo de um programa específico, ao se estabelecerem os critérios que são prévios à classificação pela emissora. Ou seja, qualquer programa poderá ser veiculado desde que tenha conteúdo adequado e respeite o horário pré-determinado, e as restrições constitucionais e legais previstas não para censurar os meios, mas sim para proteger seus espectadores, principalmente aqueles que ainda estão em processo de formação: crianças e adolescentes.
 
Informação, recomendação, autorização. Prevenção ou censura?
 
A ação em tela vai contra a tipificação como infração administrativa do desrespeito à vinculação horária de conteúdo transmitido por rádio ou televisão, estabelecida por uma autorização estatal, nos termos do referido dispositivo de lei, e, consequentemente, das penas impostas pelo cometimento da infração. Dessa forma, a ADIn, caso seja julgada procedente, para declarar inconstitucional a expressão em horário diverso do autorizado, contida no artigo 254, do ECA, conforme entendimento apresentado pelo Senhor Ministro Relator da ação, atentará não contra o instituto protetivo de crianças e adolescentes, e de empoderamento de seus pais e responsáveis, mas sim contra a sua efetividade. Afinal, inexistindo infração e multa, haverá o respeito aos horários protegidos? Apenas a liberalidade das emissoras de rádio e televisão, que defendem a autorregulamentação do setor, sem intervenção estatal, defenderá as crianças e adolescentes brasileiros de conteúdos considerados impróprios ao seu desenvolvimento?
 
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que o suposto excesso legislativo contido no artigo 254, do ECA ,existe apenas se o artigo em questão fosse lido de forma isolada. Nesse caso o termo autorização, enquanto ato do Poder Público, destaca-se, cresce de tamanho e se caracteriza, aos olhos de alguns, como censura. No entanto, se a Classificação Indicativa for estudada de forma integrada, ampla, a partir da interpretação conjunta da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e, ainda, da Portaria 1220/2007, do Ministério da Justiça, excesso não há, tampouco censura, prática afastada por diversos artigos constitucionais, e repudiada por todos aqueles que, ao longo dos anos, vêm construindo o atual sistema brasileiro de Classificação Indicativa.
 
O artigo 21, XVI, da Constituição Federal, dispõe que é competência da União exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão.
 
O artigo 227 da Constituição Federal assegura a proteção integral e prioritária dos direitos de crianças e adolescentes contra qualquer tipo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, garantida conjuntamente, pelas famílias, pelo Estado e pela sociedade. Trata-se de dispositivo constitucional de grande importância para compreender a previsão da Classificação Indicativa nos artigos 21, XVI, e 220, §3º, da Constituição Federal.
 
Dizer que a proteção da criança e do adolescente é prioritária significa dizer que no caso de haver um conflito entre seus direitos e a liberdade de expressão, por exemplo, aqueles prevalecem. Essa intepretação é assegurada pelo artigo 220, da Constituição Federal, que determina que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer tipo de censura, mas poderão ter restrições no caso de haver disposição constitucional expressa nesse sentido. E a proteção da criança, via Classificação Indicativa, constitui um dos limitadores constitucionais à plena liberdade de expressão.
 
Nesse sentido, nos termos dos incisos I e II, do §3º, do artigo 220, da Carta Magna, cabe à lei federal regular diversões e espetáculos públicos, e estabelecer meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que não deem preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e não respeitem os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
 
Ainda como forma de garantir a proteção integral e prioritária de crianças e adolescentes é que a Constituição Federal, em seu artigo 220, §3º, inciso I, confere ao Poder Público, por meio de lei federal, o papel de informar sobre a natureza das diversões e espetáculos públicos, as faixas etárias a que não se recomendem, e os locais e os horários em que sua apresentação se mostre inadequada.
 
Coube ao Estatuto da Criança e do Adolescente, lei federal nº 8.069/90, o papel de proteger a criança e o adolescente contra os conteúdos inadequados ao seu desenvolvimento, inclusive mediante o estabelecimento de sanções para aqueles que insistem que a liberdade de expressão é absoluta e está acima da proteção daqueles considerados vulneráveis em razão de sua pouca idade.
 
Importante esclarecer que o Estatuto da Criança e do Adolescente foca-se, primeiro, na prevenção, para depois estabelecer a punição, bastando, para chegar a essa conclusão, que se verifique a ordem em que seus dispositivos legais se apresentam.
 
O Título III, do ECA (artigos 70 a 85), trata, justamente, da prevenção a qualquer ameaça ou violação dos direitos dos menores de 18 anos (artigo 704). O artigo 71 assegura a crianças e adolescentes direitos à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos, e produtos e serviços que respeitem a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. O artigo 73, por sua vez, dispõe, expressamente, que a inobservância das normas de proteção importará em responsabilidade da pessoa física ou jurídica, nos termos dessa lei. Ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta as formas como os menores devem ser preventivamente protegidos e, para o caso de desrespeito a qualquer norma de prevenção, estabelece que o agente será penalizado da forma que essa mesma lei determina.
 
A análise dos artigos 70 a 73 do ECA é fundamental para entender a razão de existir do seu artigo 254, questionado na ADIn 2.404. Então, cabe a pergunta: se o artigo 254 prevê a existência de uma sanção a uma conduta praticada pelas emissoras de rádio e televisão, qual seria a regra de prevenção apresentada pela lei protetiva da criança e do adolescente por eles violada?
 
A resposta se encontra no Capítulo II, do Título III, que trata da Prevenção Especial, mais precisamente em sua Seção I, que aborda a Informação, Cultura, Lazer, Esportes, Diversões e Espetáculos (artigos 74 a 80).
 
O primeiro dispositivo relevante para a presente análise é o 74, que, na esteira do artigo 220, §3º, I e II, da Constituição Federal, dispõe que o poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. (grifos inseridos)
 
O artigo 76 trata especificamente dos meios de radiodifusão, e determina que as emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. (grifos inseridos). Nos termos dos parágrafo único, nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição. (grifos inseridos)
 
Ao final, apenas antes das Disposições Finais e Transitórias, está o Capítulo II, do Título VII, da Parte Especial do Estatuto da Criança e do Adolescente, que trata das Infrações Administrativas (artigos 245 a 258-B). Os artigos 252 a 258 relacionam-se, especificamente, às normas de prevenção relativas à informação, cultura, lazer, esportes, diversões e espetáculos, acima citadas.
 
A infração e consequente sanção previstas no artigo 254 estão diretamente atreladas à norma de prevenção do artigo 76, dentro da lógica estabelecida no artigo 73, todos do ECA.
 
O artigo 76 coloca como obrigação das emissoras de rádio e televisão a exibição, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, apenas e tão somente de programas que lhes sejam adequados. A recomendação horária, por sua vez, é definida pelo Poder Público, nos termos dos artigos 220, §3º, da Constituição Federal e 74, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
 
As obrigações de respeitar o horário protegido para crianças e adolescentes, ou seja, a vinculação horária determinada pelo órgão competente do Poder Público, no caso, o Ministério da Justiça, assim como a de informar a classificação do espetáculo, determinadas pelos artigos 74 e 76, do ECA, não estão sendo contestadas na ADIn 2.404, o que confirma o entendimento proferido pelo Ministro Relator da ação de que não é o instituto da Classificação Indicativa que está sendo questionado, mas apenas um suposto excesso legislativo. Algo que, acredita, vai além. E esse além, esse exagero, estaria consubstanciado na existência de uma suposta autorização, prevista no artigo 254, do ECA, na expressão em horário diverso do autorizado.
 
No entanto, ao se questionar parte do artigo 254, apenas e tão somente a partir da leitura que defende que o termo autorizado equivaleria à censura, busca-se retirar a efetividade do instituto da Classificação Indicativa. Isso porque, na hipótese de a ADIn ser julgada procedente, declarando-se, assim, a inconstitucionalidade parcial do dispositivo em análise, a obrigação das emissoras de respeitarem a vinculação horária por meio de veiculação de conteúdo próprio, e, consequentemente, de não veiculação de conteúdo impróprio às crianças e adolescentes no horário determinado pelo Ministério da Justiça continuaria existindo, posto que os artigos 74 e 76 permaneceriam vigentes, restando mantido, assim, o embasamento legal da atual Portaria 1.220/07. No entanto, as emissoras que desrespeitassem a norma protetiva não poderiam ser punidas com a multa de três a vinte salários de referência, duplicada em caso de reincidência. Tampouco poderia ser aplicada aos infratores a suspensão da programação, por autoridade judiciária, já que inexistiria infração.
 
Referidas sanções poderiam ser aplicadas, apenas, às emissoras que deixassem de incluir o aviso de classificação em sua programação, tendo em vista que essa parte da norma não é questionada pela ADIn 2.404. Na prática, as emissoras poderiam veicular qualquer conteúdo a qualquer horário, desde que, apenas, informassem a classificação etária do conteúdo. Não haveria o horário protegido, portanto.
 
Existir a obrigação de vinculação entre horário recomendado e conteúdo veiculado, como critério de prevenção a qualquer violação dos direitos da criança e do adolescente, sem que haja a correspondente sanção, no caso de a ação ora analisada ser julgada procedente, é o mesmo que inexistir qualquer obrigação, o que vai contra o sistema da Classificação Indicativa construído, conjuntamente, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e posto em prática pela Portaria 1.220/07, do Ministério da Justiça, aplicável ao conteúdo televisivo.
 
Descaracterizar a infração administrativa consubstanciada na violação de uma norma de prevenção do Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser inclusive entendido como contrário ao que quis o legislador constituinte, pois vai de encontro ao princípio insculpido no artigo 227, da Constituição Federal, que trata da proteção prioritária e integral da criança.
 
A extirpação de parte do artigo 254, do ECA, sob o argumento de que caracterizaria violação à plena liberdade de expressão, pois estaria prevista a necessidade de autorização estatal prévia, constitui falácia fundada apenas e tão somente no fantasma da censura que ronda o nosso país, não tendo qualquer embasamento realmente legal, sistemático, histórico ou lógico.
 
O raciocínio apresentado na ADIn 2.404, e também por aqueles que defendem a sua procedência não encontra respaldo em nenhum dos dispositivos constitucionais e legais ora analisados, pois a interpretação sistemática das normas apresentadas deixa claro que a intenção do constituinte era justamente impor uma limitação – jamais censura – à liberdade de expressão com a finalidade de proteger crianças e adolescentes de conteúdos que lhe são inadequados, com fundamento na norma que lhes assegura proteção integral e prioritária. O Estatuto da Criança e do Adolescente, então, apresenta a forma como essa limitação deveria ser feita.
 
A expressão autorizado constante do artigo 254, do ECA, deve ser interpretada não como ato de censura prévia, mas sim como ato elaborado pelo órgão competente do Poder Público, no caso, o Ministério da Justiça, para recomendar e informar a Classificação Indicativa, seguindo os termos reiteradamente usados tanto na Constituição Federal, como na lei protetiva de crianças e adolescentes. O advérbio somente presente no artigo 76 confirma o interesse legislativo de obrigar as emissoras a respeitarem os direitos dos menores, sob pena de serem punidas por isso. Para que seria estabelecida uma obrigação sem pena, inclusive se o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, no artigo 73, que devem haver penas para as infrações das normas protetivas?
 
Nada leva a crer que haveria censura de conteúdo, portanto. O órgão competente do Poder Público tem a tarefa de regular diversões e espetáculos públicos, inclusive os transmitidos pela via da radiodifusão, quanto a sua natureza, idade recomendada, locais e horários adequados. É a essa regulamentação que se refere o adjetivo autorizado. Em outras palavras, o artigo 254, do ECA, determina que a transmissão de espetáculo diverso daquele constante do ato regulamentar do Poder Público é infração administrativa. Talvez não tenha sido adotada a melhor técnica legislativa. No entanto, dúvida não há quanto ao total afastamento da censura, sobretudo se consideramos que o Estatuto da Criança e do Adolescente data de 1990, ano em que o Brasil consolidava sua democracia, fundamentada na Constituição Cidadã, de 1988.
 
Se em nenhum momento da construção da Classificação Indicativa está presente a ideia de censura prévia e limitação infundada à liberdade de expressão, não se pode dizer que os termo autorizado demonstraria essa intenção.
 
Por fim, cabe esclarecer que as sanções previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente não são aplicadas pela autoridade que cria a regra, tal como acontecia em épocas de censura. A aplicação das sanções previstas no artigo 254 depende de processo judicial, de competência da Vara da Infância e da Juventude, com participação do Ministério Público, e respeito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa, nos termos do artigo 148, VI, 194 a 197, da mesma lei5.
 
Classificação, indicativa?
 
Como visto, o sistema é claro e bem construído. No entanto, muito se discute sobre o que se quis dizer ao se criar a expressão Classificação Indicativa, atribuindo ao adjetivo indicativa o sentido de algo facultativo, como forma de concluir que o instituto estaria focado apenas nos pais e responsáveis pelos menores, que teriam a discricionariedade de cumprir ou não o determinado pelo Poder Público, não, sob o risco de que se conclua que estariam sendo compelidos a agir de uma determinada maneira, o que caracterizaria ingerência estatal indevida que violaria a esfera do poder familiar. Sendo a Classificação Indicativa destinada aos pais, não seria obrigatória às emissoras, pois qualquer atuação no conteúdo criado seria inconstitucional, pois equivaleria a censura.
 
A regulamentação das diversões e espetáculos públicos apresentada pela Classificação Indicativa tem como destinatárias tanto as emissoras quanto as famílias, que têm distintas obrigações quanto à proteção de crianças e adolescentes. A classificação é indicativa para todos, ainda que em diferentes sentidos.
 
Segundo o dicionário Aurélio6, indicar significa tornar patente, demonstrar, revelar, denotar; apontar com o dedo, ou por outro sinal, para mostrar; apontar, designar; enunciar, expor, mencionar; determinar, estabelecer; esboçar ou delinear levemente; mostrar a conveniência de, aconselhar. Indicativo, por sua vez, seria o que indica; sinal, indicação, indício. Logo, é preciso refletir acerca da leitura que se faz do adjetivo indicativa que atribui à classificação a ideia de facultativa, não obrigatória, à semelhança do antagonismo existente entre determinante e indicativo, no caput do art. 174, da Constituição Federal, que trata da atividade econômica7, tal como consta do voto do Sr. Ministro Relator da ação, ou ainda como um mero aconselhamento às emissoras de radiodifusão.
 
Como visto, o artigo 21, XVI, da Constituição Federal, dispõe que é competência da União elaborar a Classificação Indicativa de programas de rádio e televisão, norma essa que não pode ser lida de forma isolada caso se queira extrair sua razão de existir e sua real interpretação. Qual das acepções do termo seria a aqui aplicável?
 
Isoladamente, o texto constitucional não deixa claro o que seria esse efeito indicativo, tampouco o destinatário da indicação. O Poder Público elaboraria regras facultativas e não obrigatórias? Essa leitura não parece ser a mais adequada, pois para que mobilizar o Estado para a criação de regras que não deveriam ser cumpridas? . O efeito esperado das normas seria apenas o de aconselhamento? A questão que se coloca, então, é a de quem seria o destinatário do conselho, já que essa informação não está expressa no dispositivo supramencionado. Em qualquer dos casos seriam os espectadores os destinatários do efeito indicativo, ou os responsáveis pela criação das diversões públicas e dos programas de radiodifusão?
 
Diante das múltiplas definições do verbo indicar, e, consequentemente, do adjetivo indicativo, pode-se concluir que a classificação é indicativa tanto para as emissoras, quanto para as famílias. No entanto, para casa destinatário, um sentido distinto, apreendido a partir da análise conjunta do artigo 21, XVI, da Constituição Federal com outros dispositivos constitucionais afetos ao tema, tais como o 220 e 227, como será mais adiante apresentado.
 
A interpretação de todo o sistema que construiu a Classificação Indicativa demonstra que a norma criada pelo Poder Público para sua regulamentação tem caráter indicativo para as emissoras, pois designa, enuncia, expõe quando elas poderiam veicular certos conteúdos considerados hipoteticamente prejudiciais a crianças e adolescentes. Nesse caso, o indicativo se refere ao estabelecimento de regras que devem ser seguidas pelas emissoras, pois seu cumprimento é obrigatório, tal como previsto em lei. O que o Poder Público indica para as emissoras é que a veiculação de conteúdo leve é possível a qualquer horário, enquanto que conteúdo que contém cenas fortes de sexo, drogas e violência, só pode ser veiculado tarde da noite.
 
Cabe às emissoras, então, escolher em qual horário será apresentado cada um de seus programas, de acordo com a adequação do conteúdo (do qual apenas ela tem conhecimento) à regulamentação apresentada pelo Poder Público de forma abrangente, democrática e abstrata. Elas têm a obrigação constitucional e legal de respeitar a regulamentação apresentada pelo Poder Público, veiculando sua programação no horário determinado, estabelecido, pelo Ministério da Justiça. Enquanto permanecer vigente o artigo 254, do ECA, caso descumpram a regulamentação podem ser punidas, nos termos da própria lei protetiva.
 
Se a emissora tiver uma grade de programação composta apenas por atrações com conteúdo cultural, artístico, educativo e informativo, poderá transmiti-las em quaisquer horários, definidos de acordo com interesses exclusivos seus.
 
No entanto, se optar por apresentar programas com conteúdos inadequados, conforme limites estabelecidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, deverá adequar a sua grade de programação não apenas aos seus interesses, mas também ao interesse de toda a sociedade, principalmente de crianças e adolescentes e suas famílias, nos termos da regulamentação apresentada pelo Poder Público.
 
Se a emissora de radiodifusão não seguir os critérios da Classificação Indicativa, seja por desrespeitar a vinculação horária, seja por não indicar a faixa etária recomendada ou indicá-la erroneamente, deverá arcar com as consequências, como reclassificação, em uma primeiro momento, aplicação de multa, ou até suspensão da programação, devidamente respeitados o devido processo legal, seja na esfera administrativa, seja na esfera judicial. Controle totalmente posterior, que afasta qualquer ideia de censura.
 
Logo, se por um lado o Ministério da Justiça indica/determina o horário adequado, recomendado, para respeito das emissoras, a partir de conteúdo hipotético, por outro, as emissoras indicam (mostram a conveniência de, expõem) aos pais a idade recomendada do programa, a partir de conteúdo concreto, uma vez que o programa já está finalizado e posto no ar. Ou seja, a classificação elaborada pelo Poder Público também é indicativa para a família, pais e responsáveis, pois lhes dá informações importantes sobre o conteúdo do programa veiculado, o que permite que decidam, dentro da esfera do poder familiar, se seria ou não adequado às crianças ou aos adolescentes assistí-lo.
 
A classificação que obrigatoriamente deve ser anunciada pela emissora, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, indica, sinaliza, revela, aponta, expõe os riscos que o programa oferece. Ou seja, conteúdo forte, violento, com cenas fortes de sexo, ou uso efetivo de drogas, lícitas ou ilícitas. Para cada conteúdo uma idade mínima, indicada de forma clara e efetiva para os pais. Se eles ou os responsáveis deixarem que o menor veja o que não é adequado para a sua idade, não cabe ao Poder Público, ou às emissoras, interferir. As obrigações desses atores são, respectivamente, regular as diversões e espetáculos públicos, e informar aos seus espectadores as regras estipuladas pelo Poder Público.
 
O fato de a Classificação Indicativa estar prevista dentro da Ordem Social, no Capítulo da Comunicação Social, indica, claramente, que ela deve ser respeitada, obedecida e cumprida, pelos meios de comunicação. Conteúdo adequado é a regra, conteúdo inadequado deve ser exceção e, portanto, as emissoras devem ter a responsabilidade perante a sociedade, de exibi-lo no horário que seja menos nocivo aos espectadores.
 
Conclusão
 
O que se pretendeu demonstrar é que a partir de questionamentos que envolvem a definição dos termos indicativo e autorizado, busca-se desconstruir o instituto da Classificação Indicativa, com vistas a torná-lo inefetivo. No entanto, mais do que a preocupação com a precisão das palavras, tarefa árdua na interpretação de textos legais que muitas vezes pecam pela falta de rigor legislativo na escolha dos termos utilizados, seria mais adequado analisar a intenção dos constituintes e legisladores, expressa em diversos dispositivos afetos ao tema, que levam ao entendimento de que o foco da Classificação Indicativa é a prevenção de danos aos direitos das crianças e dos adolescentes frente a conteúdos abusivos veiculados pelas emissoras, e o empoderamento de seus pais e responsáveis com um mecanismo democrático e efetivo de informação acerca do que é apresentado.
 
Prevenção essa que não equivale à censura, e que deve ser adotada conjuntamente por Estado, família e sociedade, nos termos da Constituição Federal. Prevenção essa, ademais, que, se desrespeitada, deve gerar consequências aos infratores, sob pena de transformar a lei, e a intenção protetiva, em letra morta.
 
As emissoras de televisão, abrangidas pela Portaria 1.220/07, do Ministério da Justiça, desempenham um importante papel na sociedade, na qualidade de concessionárias de um serviço público, e têm o dever constitucional e legal de proteger as crianças e de respeitar as normas criadas pelo Poder Público. Não há qualquer caráter discricionário ou facultativo na necessidade de obediência à Classificação Indicativa por essas empresas, o que não equivale a dizer que haja censura. Elas sempre poderão criar o que quiserem, desde que respeitem os seus espectadores infanto-juvenis e suas famílias, oferecendo-lhes conteúdo adequado, conforme determina a Constituição Federal. E se as emissoras têm interesse em respeitar os direitos daqueles que os assistem, devem respeitar a Classificação Indicativa, sem insistir em tratá-la como censura.
 
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1 "Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:
 
Pena – multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias."
 
2 "Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (…) § 3º – Compete à lei federal: I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada".
 
 
4 "Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente."
 
5 "Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para: VI: aplicar penalidades administrativas nos casos de infrações contra norma de proteção à criança ou adolescente.”
 
"Art. 194. O procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente terá início por representação do Ministério Público, ou do Conselho Tutelar, ou auto de infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado, e assinado por duas testemunhas, se possível.
 
§ 1º No procedimento iniciado com o auto de infração, poderão ser usadas fórmulas impressas, especificando-se a natureza e as circunstâncias da infração.
 
§ 2º Sempre que possível, à verificação da infração seguir-se-á a lavratura do auto, certificando-se, em caso contrário, dos motivos do retardamento."
 
"Art. 195. O requerido terá prazo de dez dias para apresentação de defesa, contado da data da intimação, que será feita:
 
I – pelo autuante, no próprio auto, quando este for lavrado na presença do requerido;
 
II – por oficial de justiça ou funcionário legalmente habilitado, que entregará cópia do auto ou da representação ao requerido, ou a seu representante legal, lavrando certidão;
 
III – por via postal, com aviso de recebimento, se não for encontrado o requerido ou seu representante legal;
 
IV – por edital, com prazo de trinta dias, se incerto ou não sabido o paradeiro do requerido ou de seu representante legal."
 
"Art. 196. Não sendo apresentada a defesa no prazo legal, a autoridade judiciária dará vista dos autos do Ministério Público, por cinco dias, decidindo em igual prazo."
 
"Art. 197. Apresentada a defesa, a autoridade judiciária procederá na conformidade do artigo anterior, ou, sendo necessário, designará audiência de instrução e julgamento.
 
Parágrafo único. Colhida a prova oral, manifestar-se-ão sucessivamente o Ministério Público e o procurador do requerido, pelo tempo de vinte minutos para cada um, prorrogável por mais dez, a critério da autoridade judiciária, que em seguida proferirá sentença."
 
6 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1999, p. 1100.
 
7 "Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado".
 
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* Ekaterine Karageorgiadis é advogada do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana
 
Fonte: Extraído do site Migalhas