ENTREVISTA: Precisamos de novo acordo global para refugiados, diz chefe de proteção do ACNUR

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O chefe de proteção da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), Volker Türk, detalha como um novo acordo global sobre o tema ajudará tantos os refugiados quanto as comunidades de acolhimento.

ACNUR: Por que isso é importante? Qual é o acordo que foi alcançado e por que ele importa?

Volker Türk: Aproximadamente 60% da população mundial de refugiados vive em cerca de 10 países, todos no Hemisfério Sul.

As pessoas refugiadas, muitas vezes, vivem nas partes mais pobres desses países. O Pacto Global é uma resposta à necessidade da comunidade internacional de se unir e ajudar os países que são particularmente afetados pelos movimentos de refugiados. Esse é o objetivo.

Encerramos um processo de 18 meses de intenso engajamento com todos os 193 Estados-membros das Nações Unidas, além de outras partes interessadas — organizações não governamentais, setor privado, comunidades religiosas, refugiados e Banco Mundial.

É um milagre que em um mundo polarizado como o nosso, onde há muita divisão, nós realmente conseguimos, com sucesso, um processo multilateral para abordar uma das questões mais sensíveis — os refugiados.

O Pacto Global é um documento que consolida práticas adquiridas ao longo de décadas e apresenta uma nova visão de como a comunidade internacional se envolverá com países particularmente afetados por refugiados.

Se um país hoje é afetado por um fluxo de centenas de milhares de refugiados ou mesmo por 10 mil ou 20 mil, o que a comunidade internacional deve fazer para ajudar este país? O Pacto Global responde essa pergunta.

ACNUR: Mas por que um novo acordo internacional? Isso significa que a Convenção sobre Refugiados não é adequada para esse objetivo?

Volker Türk: A Convenção sobre Refugiados se concentra nos direitos dessas pessoas e nas obrigações dos Estados, mas não trata da cooperação internacional em grande escala. E é isso que o pacto global procura resolver.

A Convenção de 1951 não especifica como você compartilha a responsabilidade e é isso que o Pacto Global faz. Ele responde a uma das principais lacunas que enfrentamos há décadas.

ACNUR: Como ele fará diferença? Que diferença concreta o Pacto fará na vida dos refugiados ou das comunidades que os acolhem?

Volker Türk: Veríamos melhor educação para crianças refugiadas, bem como melhor acesso a serviços de saúde para todos os refugiados e mais oportunidades de subsistência.

Também observaríamos uma maneira diferente das comunidades de acolhimento se envolverem com os refugiados, com a expectativa de se afastarem das políticas de acampamento que ainda temos em muitos países.

Países de acolhimento como Uganda, Ruanda, Irã, Líbano ou aqueles na América Central – com infraestrutura e serviços de saúde enormemente desafiados ao receberem um milhão de pessoas refugiadas — teriam o apoio necessário para atender às necessidades dos refugiados e das comunidades que os acolhem.

O Pacto garantiria que países como o Líbano fossem apoiados, não apenas de uma perspectiva humanitária, mas de uma perspectiva de cooperação para o desenvolvimento. E isso é novo.

Além disso, temos como objetivo conseguir mais locais de reassentamento e encontrar mais formas para que os refugiados possam se deslocar para outros países — como reunificação familiar, bolsas de estudos ou vistos humanitários, para que os refugiados possam viajar com segurança (o que chamamos de “caminhos complementares”).

Haveria mais apoio na forma de medidas previsíveis, fornecendo suporte técnico aos países de acolhimento em muitas áreas — desde a coleta e análise de dados até o gerenciamento do local.

ACNUR: Mas se o Pacto não é juridicamente vinculativo, ele pode realmente fazer a diferença?

Volker Türk: A Assembleia Geral da ONU adotará o Pacto Global; essa é a nossa expectativa e isso demonstra um compromisso político muito forte de todos os 193 Estados-membros para implementá-lo, mesmo que não seja juridicamente vinculativo.

No mundo de hoje, é assim que o multilateralismo é frequentemente realizado.

ACNUR: Quanto à estrutura de compartilhamento de responsabilidade: como vai funcionar? Monte um cenário para mim sobre o funcionamento de tudo quando houver uma nova crise de refugiados com centenas de milhares de refugiados fugindo para, digamos, Bangladesh. O que deveria acontecer?

Volker Türk: Em primeiro lugar, quando um país é atingido por um fluxo de larga escala, como em Bangladesh ou em Uganda, com o último fluxo de refugiados congoleses, precisamos conhecer rapidamente as necessidades das pessoas e o impacto no país receptor.

Então, temos que apresentar à comunidade internacional em geral as necessidades em termos de apoio financeiro, assistência humanitária e cooperação para o desenvolvimento. Precisamos ver se alguns países se manifestam e dizem: sim, vou prometer financiamento; eu ajudarei na área da educação; eu ajudarei com conhecimento técnico por meio de medidas previsíveis para garantir que as florestas não desapareçam devido a um grande fluxo de pessoas em uma determinada área (algo que atualmente está acontecendo em Bangladesh); sim, vamos aumentar o reassentamento.

Assim, o que queremos alcançar é um incentivo muito rápido de apoio: político, financeiro e de reassentamento, para que os países — quando enfrentarem tais circunstâncias —, sintam que não estão sozinhos, isolados ou que ninguém se importa. Na verdade, sim, a comunidade internacional se preocupa com as pessoas, mas também com o país afetado, é solidária e age em solidariedade com eles. Esse é realmente o objetivo.

ACNUR: Então, é sobre reunir várias ferramentas existentes e garantir que elas funcionem de forma mais rápida e sistemática?

Volker Türk: A ideia é desencadear e ativar mecanismos mais rápidos, mais equitativos, mais previsíveis e mais abrangentes.

ACNUR: O que será necessário para criar confiança entre os países de acolhimento para permitir que pessoas refugiadas trabalhem, tenham negócios próprios, vivam fora dos campos e geralmente tenham políticas mais progressistas para essa população?

Volker Türk: É importante reconhecer o incrível desafio para países como Uganda, Etiópia, Sudão, Tanzânia ou Ruanda, que têm seus próprios obstáculos de desenvolvimento, ao serem confrontados repentinamente com a chegada de centenas de milhares de pessoas.

Mas se os países também puderem ver a crise como uma oportunidade e adaptar suas políticas, isso pode se transformar em uma vantagem.

Isso significa dizer que: tudo bem, essa é uma parte remota do país, temos esse fluxo de pessoas, temos engajamento internacional e (então) vamos usá-lo para que tanto a população refugiada quanto a comunidade de acolhimento possam se beneficiar de uma cooperação reforçada para o desenvolvimento.

Assim, não apenas desenvolvemos e ficamos em um campo, mas nos concentramos na área onde os refugiados estão hospedados e convivem com as comunidades locais. E garantimos que a infraestrutura, as estradas, a rede elétrica e o abastecimento de água que beneficia os refugiados e as comunidades de acolhimento sejam construídos junto com oportunidades de subsistência.

Claro que para fazer isso, o investimento é necessário. São precisos uma resposta inicial forte e robusta, apoio e solidariedade. É isso que esperamos conseguir com essa nova abordagem e esses argumentos para os países.

ACNUR: Há, de fato, dois pacto globais em andamento — um sobre refugiados e outro sobre migrantes. Como eles estão relacionados?

Volker Türk: A Declaração de Nova Iorque, adotada em setembro de 2016 deu origem a dois pactos: um sobre os refugiados e outro sobre migrantes. Eles foram propostos pela mesma declaração, mas têm objetivos muito diferentes.

O pacote de migração realmente começou do zero. Pela primeira vez, a nível da Assembleia Geral das Nações Unidas, houve uma intensa discussão sobre os benefícios da migração e sobre o que ela traz para os países, mas também alguns dos desafios que os eles enfrentam quando lidam com questões de migração. É o que o pacto global sobre migração tenta resolver. Ele adota uma visão holística da migração no mundo atual.

Há uma base de direitos humanos muito forte para todos que estão em movimento. Isso está claro.

Ao mesmo tempo, há uma distinção legal para aqueles que, por razões válidas, não podem retornar ao seu país de origem, devido a conflitos, guerras, graves violações de direitos humanos, desigualdade que leva à discriminação, violência de gangues e assim por diante. Para essas pessoas, um regime legal específico foi estabelecido visando protegê-las e o Pacto Global sobre Refugiados engloba essa população.

ACNUR: O Banco Mundial está envolvido no Pacto Global e os fundos serão disponibilizados. A questão é: por que isso não foi feito antes?

Volker Türk: Talvez possamos falar sobre isso no contexto de parcerias. O que o Pacto Global faz é incorporar a resposta aos refugiados, países e às comunidades de acolhimento em uma abordagem de parcerias muito mais ampla.

Na verdade, analisa o que o setor privado, as comunidades religiosas e as instituições financeiras internacionais podem oferecer e, nos últimos três anos, vimos uma mudança radical no caminho. Por exemplo, o grupo do Banco Mundial se envolve com os países de acolhimento de refugiados.

O Banco Mundial estabeleceu uma chamada “janela secundária para refugiados”, um instrumento financeiro específico para países de baixa renda afetados pelo deslocamento forçado — 2 bilhões de dólares por dois anos — para ajudar a abordar o impacto socioeconômico dos fluxos de refugiados em uma parte específica de um país.

Há uma percepção dentro das instituições financeiras internacionais de que o impacto do deslocamento forçado pode ser um choque para o sistema — na água, no saneamento, na educação, na saúde e é necessário investir nessa estrutura, para que ele possa lidar com uma população muito maior e isso tem acontecido nos últimos três anos.

De certa forma, o que o Pacto Global faz não é apenas construir parcerias existentes, mas também expandir algumas delas e trazer novos parceiros. E um dos grandes novos parceiros que entraram são essas instituições financeiras internacionais.

Fonte: ONU Brasil