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Alimentação tradicional nas escolas de Mato Grosso gera renda e fortalece cultura, saúde e meio ambiente
Banana, manga, mamão, pequi, cana, macaxeira, murici, tucunaré, matrinxã, pintado, amendoim, mel, pirão, beiju. Já pensou ter seus filhos e filhas matriculados em uma escola que ofereça aos alunos produtos recém-colhidos nas roças e na floresta, além de peixes frescos?
Alimentos como esses, que saem das mãos e do trabalho de pequenos produtores — muitos deles pais e parentes dos estudantes — estão chegando a algumas escolas de Mato Grosso.
Um exemplo é a Escola Estadual Indígena Hadori, na Terra Indígena São Domingos, do povo Iny, conhecido como Karajá, no município de Luciara (MT), que está desenvolvendo um projeto-piloto e este ano irá fornecer a seus cerca de 90 alunos alimentos produzidos na própria comunidade.
Essa mudança está acontecendo com a articulação da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos em Mato Grosso (Catrapovos – MT). A comissão reúne parceiros e busca a adequação e ampliação do acesso ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), possibilitando que agricultores indígenas, quilombolas, extrativistas, retireiros, pantaneiros, morroquianos e ribeirinhos consigam fornecer seus produtos às escolas das comunidades.
No cardápio da Escola Hadori, a língua indígena já indica a mudança que vai aparecer no prato. Os alunos vão poder comer Irá mare (mandioca e beiju), Krose (cucuz), Ijore Benôra (sopa de peixe), Uxé (farofa de peixe) e Iwerú (canjica).
Diretor da escola, Célio Kawina Ijavari comemorou. “Nosso povo vai vender peixe, farinha, abóbora, batata doce, mandioca. Vai melhorar a merenda!”
A chamada pública específica para aquisição dos alimentos dos povos e comunidades tradicionais aconteceu no início deste ano, sendo que seis produtores da comunidade foram cadastrados.
Célio Kawina Ijavari conta que, no ano passado, a escola promoveu uma atividade sobre alimentação saudável e serviu pratos tradicionais, usando os produtos locais. A comunidade escolar aprovou. “A comunidade pensou em vender o seu produto para os alunos comerem, valorizando a alimentação do nosso povo e incentivando o cultivo. Essa é a nossa ideia”, relatou.
Segundo o diretor, na comunidade, as pessoas estão consumindo muitos industrializados. O programa pode apoiar no resgate da alimentação tradicional e mais saudável. E, ainda, incentivar o sistema agrícola tradicional do povo Iny, inclusive despertando o interesse dos mais jovens.
Catrapovos
As ações que vêm acontecendo a partir da Catrapovos – MT têm como semente a Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), criada por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) e que busca a adequação de políticas públicas de aquisição de alimentos à realidade local dos povos e comunidades tradicionais. A iniciativa acabou se transformando em uma mesa nacional permanente de debates sobre o tema e dando origem às comissões nos estados.
“A política impulsiona toda uma cadeia positiva. E a Catrapovos busca desburocratizar e ampliar acessos e benefícios, fortalecendo os sistemas agrícolas, a alimentação saudável e as tradições por trás de cada alimento. Também, promove a geração de renda local, sendo alternativa a outros sistemas que trazem grandes impactos aos territórios e aos modos de vida tradicionais, como madeira, soja e garimpo”, explicou o engenheiro agrônomo Marcelo Martins, analista do ISA e atuante na Catrapovos – MT.
Em Mato Grosso, o grupo foi formalizado em junho de 2022 e se reúne mensalmente. Marcelo Martins contou que um dos primeiros passos foi a elaboração do regimento e da carta de princípios.
A antropóloga Luísa Tui Rodrigues Sampaio, analista do ISA, também integra a Catrapovos – MT. “Com nossa atuação, estamos unindo as pontas, ou seja, os produtores, as escolas e as entidades parceiras, como a Secretaria de Estado de Educação, a Seduc”, disse.
Outro trabalho que vem sendo desenvolvido junto às comunidades a partir da Catrapovos é o levantamento da produção: qual alimento pode ser fornecido e em qual quantidade.
A informação é repassada para a Seduc, que elabora o cardápio incluindo os produtos tradicionais. A Funai também está produzindo um diagnóstico da produção em algumas das comunidades indígenas.
“Buscamos soluções por meio do debate sobre a alimentação. E esse diálogo se relaciona com a segurança e a soberania alimentar e com outros temas urgentes, como mudanças climáticas, queimadas, desmatamento e uso de agrotóxicos. As comunidades já vêm percebendo, há mais tempo, impactos como a perda de sementes e a dificuldade em alguns cultivos.”
Gestor de projetos no ICV, Eriberto Muller relatou que, em dois anos de atuação, a Catrapovos – MT conseguiu avanços importantes ao reunir instituições em torno da pauta da alimentação tradicional nas escolas.
Um dos impactos positivos que ele cita é na saúde. “As mulheres indígenas relatam aumento de doenças como diabetes e colesterol alto que foram trazidas pelas alimentação convencional nas aldeias e nas escolas. Esse depoimento é preocupante”, afirmou.
Ele apontou ainda que a mobilização da comunidade para participação no PNAE promove o reconhecimento do potencial produtivo dos povos tradicionais, abrindo possibilidades de novos caminhos, como fornecimento de produtos para outros mercados institucionais, por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Yaiku Suyá, representante da Associação Terra Indigena Xingu (Atix) na Catrapovos – MT, reforçou que é muito importante que a alimentação tradicional esteja nas escolas. “O alimento tradicional é muito rico, traz saúde. A comida de fora, da cidade, a gente não sabe a maneira que foi feita e pode fazer mal. Sabemos que tem muito agrotóxico”, refletiu. Ele ponderou que a lista de alimentos que podem ser vendidos às escolas deve ser ampliada, com inclusão de itens locais.
Projeto-piloto
A Escola Estadual Indígena Hadori foi escolhida para desenvolver o projeto-piloto porque reuniu as condições para participar do PNAE — a escola estava mobilizada e havia agricultores interessados em fornecer seus produtos. Mas, ainda assim, não conseguia acessar o programa.
Um grupo de trabalho envolvendo a Secretaria Executiva da Catrapovos e o MPF-MT, por meio do procurador Ricardo Pael Ardenghi, foi responsável pela mobilização para a execução do projeto-piloto e irá acompanhar de perto as ações para identificar gargalos e potenciais. A experiência poderá ser expandida para outras comunidades e escolas.
“Com esse projeto, vamos monitorar a política enquanto a sua implementação está acontecendo, verificando os gargalos e as forças, de forma a alimentar ideias que vão fazer o PNAE rodar melhor e chegar a outros territórios”, avaliou Marcelo Martins.
Uma das atividades foi a promoção, em 2024, de uma oficina para que produtores e a própria escola pudessem entender como acessar o PNAE e o PAA. A oficina foi realizada pelo Cecane e Empaer, com acompanhamento do ISA, ICV, Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Seduc, através da Diretoria Regional de Educação (DRE) de Confresa.
Outra iniciativa da Catrapovos – MT busca identificar alimentos que têm maior escala e podem ser oferecidos para escolas de todo o Estado e até do país, como baru, jatobá, pequi, babaçu, castanha do Brasil e mel.
“A adequação da política pública valoriza os modos de vida desses povos e as adaptações que eles desenvolveram no tempo para estarem nesses espaços. Os povos e comunidades tradicionais aprenderam a viver em cada ambiente e em cada bioma. Fazer com que os alimentos produzidos por eles cheguem à merenda escolar é descolonizar pela alimentação, o que é importante para a resiliência desses povos e seus sistemas agrícolas”, contou Marcelo Martins.
Outra ação da Catrapovos em 2024 foi a participação na 2ª Semana de Agroecologia, com a promoção de uma mesa com a participação do ISA, ICV, Conab, Seduc. Representantes da Escola Indígena Estadual Kamadu e de quilombolas puderam relatar suas experiências sobre a alimentação escolar tradicional.
“Durante o encontro, representantes da Seduc informaram que, com a articulação da Catrapovos, está havendo uma maior participação das escolas indígenas e quilombolas ao PNAE”, disse Luísa Tui.
No final de 2024, ao menos 30 escolas indígenas e três quilombolas de Mato Grosso tinham apresentado preparos tradicionais na alimentação escolar a ser servida em 2025.
Estima-se que nas escolas estaduais do Território Indígena do Xingu (TIX), o recurso movimentando pelo PNAE gire em torno de R$1 milhão ao ano. Formado por quatro Terras Indígenas contíguas — Parque Indígena do Xingu, Wawi, Pequizal do Naruvôtu e Batovi — o TIX abriga 16 povos.
Procurador da República no Amazonas, Fernando Merloto Soave, que juntamente com outros três procuradores coordena a Catrapovos Brasil, considera que o PAA e o PNAE são políticas públicas que podem causar impactos positivos em diversas áreas, além da alimentar, como segurança pública nos territórios, saúde, empoderamento dos jovens e crise climática.
“Possibilitar acesso a uma geração de renda sustentável é, muitas vezes, afastar esses povos do aliciamento do garimpo, do narcotráfico, do desmatamento, além da cooptação de jovens e lideranças para atividades ilícitas. Hoje, infelizmente parte dos jovens indígenas, quilombolas, ribeirinhos estão saindo de seus territórios por ausência de políticas públicas, de perspectivas e ainda alguns acabam se envolvendo com álcool e drogas, com impactos negativos em questões de saúde mental, depressão, suicídios. Com a facilitação e a adequação do acesso à política pública, podemos mitigar inúmeros problemas, contribuir para a segurança alimentar e a alimentação saudável, mas também para a segurança pública e a saúde mental”, considerou.
Adequação
Pode parecer fácil levar o alimento da roça para a escola. Mas não é. A legislação complexa estava impedindo muitos agricultores de acessarem a política. Para agregar as adequações à política foram realizadas várias rodadas de negociação.
Em outubro de 2023, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) divulgou a Nota Técnica nº 3744623/2023. Anteriormente já havia a Nota Técnica nº 3/2020/6ªCCR/MPF. Os documentos são resultados de articulações promovidas pela Mesa de Diálogos Permanente Catrapovos Brasil.
Entre as inovações trazidas pelas notas técnicas está a ampliação do leque de produtos que podem ser entregues diretamente às escolas das comunidades, em um sistema de compra direta. Além dos produtos vegetais in natura, entram produtos processados, como farinhas e bolos, e produtos de origem animal, como os pescados e frango.
Houve ainda a simplificação na documentação a ser apresentada pelo produtor e a abertura de uma chamada pública específica para povos e comunidades tradicionais.
Outros desafios estão por ser resolvidos para a ampliação do programa, que ainda não atinge a totalidade do Estado e do sistema escolar. Entre eles, os que envolvem a expedição de nota fiscal, questão que será debatida em 2025. Com as adequações, os órgãos públicos trazem os indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais — e seus modos de vida — para o centro da discussão.
“As adequações à política pública reconhecem que essas populações têm um jeito próprio de produção e conservação dos alimentos e têm conhecimentos sobre a comida que são importantes de serem contemplados. Isso é muito inovador em termos de política pública”, concluiu Luísa Tui.
Fonte: Instituto Socioambiental
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