“A abordagem de crianças por forças militares é injustificável”

Veículo: Carta Capital - SP
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Enquanto militares revistam mochilas de estudantes em uma operação em uma favela na zona norte do Rio, uma garota olha, fixamente, para um dos integrantes da corporação, armado com um fuzil. A imagem que mereceu destaque na versão impressa da Folha de S.Paulo na quarta-feira 21 reverberou nas redes sociais e levantou discussões sobre os limites da intervenção federal no que diz respeito à manutenção dos direitos de crianças e adolescentes.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Condepe, a cena constrange e envergonha internacionalmente o Brasil. “É uma clara demonstração de criminalização dos estudantes pobres, das comunidades e das escolas públicas. Mostra o total fracasso e falência do Estado brasileiro nas questões sociais e educacionais”, avalia.

“Essas cenas não são vistas nas escolas particulares de Ipanema ou da Barra da Tijuca. Vejo o componente da discriminação social e racial”, critica o especialista.

Corrobora com a opinião o coordenador do Programa Prioridade Absoluta, do Alana, Pedro Hartung. “A imagem é o símbolo de uma violência institucional contra crianças”, avalia o especialista que também chama a atenção para a própria veiculação da foto. “Crianças e adolescentes têm direito a uma proteção especial da sua imagem. É preciso muito cuidado com essa propagação pelos meios de comunicação e pelos próprios leitores, já que isso pode ter efeitos constrangedores para a criança, justamente pelo fato dela estar identificada e sofrer uma série de problemas em decorrência disso”, alerta.

Os especialistas também avaliam a conduta do ponto de vista legal, com base na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “A Constituição Federal trata da presunção da inocência, mas na prática as crianças e jovens que moram em bairros periféricos e nas comunidades cariocas estão sendo tratados como bandidos até que provem o contrário. Temos um verdadeiro atentado aos direitos da infância e juventude”, critica Alves.

O advogado reforça que toda abordagem deve ser motivada e individualizada e que devem existir fundadas suspeitas de que os “revistados” estejam portando drogas ou armas, ou que se envolveram em algum crime no momento da abordagem. “A ação infringe o direito ao respeito, à liberdade de ir e vir, à dignidade, à integridade física e psicológica, à própria educação, à convivência comunitária, entre outros, garantidos nos artigos 5º e 227 da Constituição Federal e em vários artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirma.

Outro ponto, segundo Hartung, assegurado em lei no artigo 227 da Constituição Federal e traduzido no artigo 18 do ECA, é a responsabilidade das famílias, sociedade e Estado garantirem com absoluta prioridade os direitos das crianças e adolescentes e pô-las a salvo de qualquer situação de constrangimento, violência, opressão ou crueldade.

As forças policiais e militares têm de ter a consciência de que a criança é um ser em desenvolvimento. Os impactos de uma intervenção nesta fase da vida são muito significativos e podem gerar problemas sérios no futuro”, atesta o especialista, que considera a abordagem “injustificável”.

Segundo Hartung, pesquisas atestam que, quando crianças são submetidas com frequência a situações de violência, podem desenvolver o chamado stress tóxico, com impactos severos até no desenvolvimento cerebral. A situação é mais agravante para crianças que estão na primeira infância, até os seis anos de idade.

“Como esperar que essas crianças prestem atenção em uma aula ou absorvam conhecimento com integralidade?”, questiona. Para Ariel, os abusos também podem contribuir com o cenário de evasão escolar. “Algumas crianças podem deixar de frequentar as escolas para evitar essas humilhações e constrangimentos. Além disso, não se educa com repressão, ameaças, constrangimentos e humilhações”, atesta, reforçando que nos dispositivos legais estão previstas penalidades para ações desta natureza.

O advogado também chama a atenção para o fato de uma menina participar da abordagem. “Ela jamais poderia ser revistada por homens. As normas de procedimentos das polícias militares, por exemplo, tratam que essas revistas precisam ser feitas por mulheres. Se no exército não tem mulheres, devem pedir a colaboração da PM”, assegura.

Para os especialistas, o caso aponta para uma das principais violências que devem ser combatidas, a institucional. Hartung relembra que o Brasil é signatário não só da Convenção sobre os Direitos da Criança como dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, agenda da ONU, que prevê entre as metas acabar com o abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças.

“Infelizmente, sabemos que o Estado brasileiro é um dos maiores violadores de direitos de crianças e adolescentes, tanto pela questão da letalidade da juventude negra e periférica, como pela atuação de órgãos que deveriam atuar pela proteção, como a polícia e o sistema de justiça, mas que, muitas vezes, não a promovem na prática”, avalia Hartung.

A questão, como afirmam, deve ser vista com muito mais cautela em um contexto de intervenção federal. “O temor, que já vai se concretizando pelas imagens de arbitrariedades contra crianças, é que a intervenção acabe intensificando, em curto, médio e longo prazos os constantes abuso de autoridades, as violências institucionais e sociais e o genocídio da infância e juventude em curso no Rio de Janeiro e no Brasil”, avalia Ariel de Castro Alves, que entende a medida do governo federal como “jogada de marketing, com fins eleitoreiros”.

“É pura pirotecnia de um governo que tenta se reabilitar diante de péssimos índices de popularidade. Um governo sem nenhuma credibilidade para tratar de combate à criminalidade, já que, conforme as denúncias recentes da Procuradoria Geral da República, é chefiado por uma quadrilha envolvida em desvios de dinheiro público. A falência do governo do estado do Rio de Janeiro também faz parte disso”, critica.

Para o advogado, a intervenção federal será uma “verdadeira guerra aos pobres”, motivo pelo qual as redes de proteção dos direitos de crianças e adolescentes e a própria sociedade devem ficar atentas. “Todos os que se depararem com cenas como esta podem acusar a violação às instituições e demandar do poder público uma resposta. É importante que tenhamos clareza que o Estado não pode ser um violador de direitos, ele existe para nos proteger e assegurá-los”, conclui Hartung.