Avaliação assistida no acompanhamento de alunos com necessidades especiais

Veículo: Revista Educação - BR
Compartilhe

De acordo com o Censo Escolar, quase 700 mil crianças com deficiência estavam matriculadas na educação básica regular e classes comuns em 2014. A presença desses alunos coloca em xeque práticas tradicionais da educação. Como dar aulas baseadas na lousa para um estudante com deficiência visual? Como um aluno com dislexia ou deficiência intelectual pode acompanhar o currículo em escolas comuns?

Crianças são diferentes, e aquelas com necessidades especiais têm características que as tornam um desafio para o professor acostumado com quem lê com os olhos, ouve e tem o ritmo de desenvolvimento dentro do padrão. “Para podermos falar realmente em inclusão, não basta matricular essas crianças, temos de garantir que elas estejam aprendendo e se desenvolvendo na escola de maneira efetiva. Para isso, precisamos acompanhar o desenvolvimento do aluno”, aponta Anna Augusta Sampaio de Oliveira, professora e pesquisadora de educação especial da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Uma das estratégias indicadas para o acompanhamento desse aluno é a avaliação assistida, chamada também de dinâmica ou interativa. O metódo, explicam especialistas, tem o objetivo de avaliar o processo de aprendizagem, e não apenas o resultado do que foi aprendido. Tipicamente, esse tipo de avaliação é composto por três etapas: em um primeiro momento, cria-se uma situação de avaliação para ver o que a criança sabe; em um segundo, o mediador ajuda a criança, em um processo parecido com o de ensino, até que ela se torne capaz de resolver o problema dado; em uma terceira fase, a criança passa por uma nova avaliação em que deve resolver o problema sozinha. “Essa avaliação mostra a sensibilidade da criança à ajuda, como ela responde, e também indica de que tipo de apoio ela precisa”, explica Sônia Regina Enumo, professora de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).

No momento de assistência, diferentes formas de ajuda são testadas conforme a necessidade da criança. Em alguns casos basta repetir a instrução, em outros são usadas ferramentas diferentes, como, por exemplo, figuras, objetos, até o momento em que o mediador explica todo o raciocínio para a criança. A partir da percepção de qual tipo de ajuda surtiu efeito e da compreensão de como essa criança aprende, psicólogos e professores podem desenvolver estratégias mais adequadas para a aprendizagem daquele aluno.

Essa percepção do “potencial da criança”, das formas de aprendizagem, diferencia a estratégia assistida de testes psicométricos ou de provas convencionais. “Precisamos compreender o ato avaliativo como um instrumento capaz de mediar o ensino e a aprendizagem, em vez de meramente verificar as limitações do aluno e dar o assunto por encerrado”, avalia Mariana Pitanga de Oliveira, doutoranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). “Trata-se de compreender a avaliação como um processo intencional, capaz de demonstrar como a criança aprende, e não só o que ela já aprendeu; o que ela pode fazer sozinha e o que pode fazer com a intervenção do professor.”

Outro benefício apontado é mudar o estigma da avaliação. A criança com necessidades especiais já passou por muitos testes em que fracassou e costuma ter seus resultados piorados pela situação de estresse. “A avaliação em que ela sente que está aprendendo, que tem uma dinâmica de aula, tende a amenizar o estresse e a gerar resultados mais interessantes”, considera Sônia Enumo.

Múltiplos saberes
A avaliação assistida pode ser clínica, aplicada por psicólogos, ou pedagógica, feita por profissionais da educação. A melhor saída, na fala de todos os consultados, é o trabalho multidisciplinar em rede que une o acompanhamento psicológico com o atendimento personalizado na escola. A avaliação psicológica vai “identificar quais são as maiores dificuldades da criança, o que ela é capaz de fazer, como consegue aprender, quais as facilidades que a criança tem e, depois disso, propor uma intervenção”, explica Monalisa Muniz Nascimento, da Universidade Federal de São Carlos.

Já na escola, o trabalho será de adaptação do projeto escolar às possibilidades de aprendizado do aluno. Com cotas para atendimento educacional especializado, os chamados alunos com necessidades educacionais especiais, o Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Cap-Uerj) atende alunos desse grupo em suas salas que vão do 1o ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. Em uma universidade, o colégio trabalha com a perspectiva do ensino colaborativo. Em vez de o estudante assistir às aulas regulares com alunos comuns e fazer um trabalho especializado, com ferramentas diferentes para suas necessidades, no contraturno em uma sala de recursos multifuncionais, no Cap o aluno tem um professor de apoio na sala regular que ajuda o docente a adaptar o conteúdo de suas aulas e as atividades para que elas incluam os alunos especiais.

“É uma constante colaboração entre os professores para que aquele aluno esteja incluído sempre e possa realmente participar da aula”, afirma Patrícia Braun, professora do Cap. Além dela, outros quatro professores atuam no AEE. “A intensidade da presença deste professor na sala de aula em que o aluno está matriculado se dá conforme a demanda para o ensino e aprendizagem. Há grupos que têm a presença do professor do AEE em todos os momentos da escolaridade. Em outros, há presença do profissional duas, três vezes por semana. Isso depende do processo que observamos para o desenvolvimento do aluno e de todos em sua turma.”

A avaliação do desempenho desses alunos se dá de maneira mediada pelos professores e é feita por relatórios detalhados, que não registram apenas se a criança acertou oito das dez perguntas, mas em que tipo de tarefa apresentou mais dificuldade, qual conhecimento dominou e em que precisa de mais atenção. Esses relatórios servem de apoio para um plano individualizado de ensino que define estratégias a serem usadas com essa criança e até, em alguns casos, considerar uma temporalidade diferente dos anos letivos escolares. “Nem toda criança vai aprender aquele conteúdo indicado para o 4o ano em um ano de aulas. Há casos em que ela vai precisar de mais tempo para dominar as habilidades esperadas, e isso não deve ser um problema; deve ser considerado como uma via. O importante é criar um plano de ação para garantir o desenvolvimento dessa criança e fazer com que ganhe autonomia”, argumenta Braun.

Essa ampliação do tempo, no entanto, deve ser feita de maneira planejada para não cair em um quadro recorrente: o aluno com necessidades especiais que fica preso em determinado ano escolar, reitera a professora. “Se o aluno tem 10 anos e está com crianças de 5 anos, qual é a razão que ele tem para continuar ali? Ele não tem laços sociais com aqueles colegas, não vai ter incentivos para seu desenvolvimento.”

O nó da inclusão
Apesar de todas as dificuldades, estudantes com deficiência visual, física ou auditiva têm sido mais bem atendidos pelo formato da escola convencional. Com a necessidade de incluí-los em salas de aula regulares, unidades da rede pública têm recebido ferramentas para atender esses jovens que precisam, majoritariamente, de adequações técnicas para seu ensino. No entanto, alunos com deficiência intelectual e transtornos cognitivos têm sido um desafio para a educação inclusiva. Nesses casos, não basta um computador com letras maiores ou um livro em braile; é preciso repensar todo o conteúdo e priorizar determinadas áreas para desenvolver o potencial da criança.

A rede municipal de São Paulo atendia, em 2015, 15.951 alunos com necessidades especiais – 7.203 (45%) tinham deficiência intelectual e 1.696 (10,7%) apresentavam deficiências múltiplas, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Para melhorar o atendimento dessas crianças com o uso da avaliação mediada, Anna Augusta de Oliveira, da Unesp, desenvolveu um Referencial sobre Avaliação da Aprendizagem na Área da Deficiência Intelectual (Raadi) para orientar professores da sala de recursos multifuncionais e docentes regulares. “Tentamos detalhar a proposta curricular para que o professor passe a perceber que não basta saber se esse aluno lê ou escreve. A oralidade também faz parte do currículo e deve ser considerada como um desenvolvimento do aluno”, exemplifica a consultora. O Raadi especifica minuciosamente quais são as habilidades esperadas de um aluno em cada ciclo de ensino e em cada disciplina estabelecida. O objetivo é dar parâmetros para o professor observar os alunos que não seguem o padrão esperado.

Educação individualizada?
A pesquisadora da Unesp, contudo, reconhece que o ideal seria que cada professor construísse o próprio plano de avaliação conforme a necessidade do aluno e seu plano pedagógico. “O melhor seria que a avaliação fosse feita pelo professor, mas essa não é a realidade de nossas redes.” Entre as dificuldades do professor estão sua formação profissional, que muitas vezes não contempla a educação especial, o número de alunos na sala de aula e turnos de trabalho que frequentemente ultrapassam as oito horas diárias.

A dificuldade (ou aparente dificuldade) de criar estratégias de ensino e avaliação individualizada quando se têm dezenas de outros estudantes na sala de aula é uma das críticas à implementação da avaliação mediada nas redes. A estratégia é vista também com desconfiança por beneficiar o aluno em relação a seus colegas que não recebem ajuda. “A avaliação mediada, na maioria das vezes, é vista como ‘dar a resposta pelo aluno’, ‘dar cola’”, comenta Márcia Denise Pletsch, coordenadora do Observatório de Educação Especial e Inclusão Escolar da UFRRJ.

Pesquisadora do método, Márcia Pletsch aponta para uma mudança de concepção do modelo escolar: “Precisamos refletir sobre quais são os parâmetros utilizados para a aprovação/reprovação dos estudantes e se estes contemplam perspectivas inclusivas ou se ainda estão relacionados à lógica excludente que visa à padronização do ensino. Refletir sobre essa questão é premente para que possamos possibilitar práticas que favoreçam o desenvolvimento de todos os sujeitos, revelando as suas potencialidades”.

Trabalhar além
A diferença entre o que uma pessoa é capaz de aprender sozinha e o que pode resolver um problema sem ajuda e as variadas possibilidades que ela tem de aprendizado caso receba o auxílio de alguém foi definida pelo psicólogo russo Lev Vigotski como zona de desenvolvimento proximal. A avaliação assistida se baseia na teoria vigotskiana que estabelece relação direta entre o desenvolvimento de uma criança e as interações sociais a que ela está exposta.

Nessa linha de pensamento, a função do professor é mediar as interações para que seus alunos possam atingir o máximo de seu potencial de desenvolvimento, que varia de criança para criança. O biológico, em sua concepção, tem importância, mas é subjugado pela cultura, e os limites são ultrapassados pela troca humana.

“Nessa leitura, o professor é mediador do conhecimento, e não apenas aquele que expõe tudo o que sabe”, indica Sônia Enumo, da PUC-Campinas. A principal diferença entre aquele que recita conteúdo em frente à sala e o que media a aprendizagem é que o segundo está sempre atento aos receptores para que estes adquiram o conteúdo, e não focado apenas no conhecimento que está sendo passado.

As técnicas de avaliação assistida vão buscar perceber no sujeito quais conhecimentos ele já adquiriu, quais ainda não, mas tem capacidade para aprender, e qual a forma mais adequada para ensinar essa criança. “Na avaliação, percebe-se, por exemplo, que aquele estudante com deficiência cognitiva não consegue resolver dado problema, mas, depois de algum auxílio, ele dá a resposta certa. Isso significa que o aprendizado está na iminência. É exatamente ali que o professor tem de trabalhar mais um pouco. Não é apenas um certo e errado, é compreender o processo”, explica Anna Augusta de Oliveira, da Unesp.

Quais as necessidades especiais?
Entre os alunos com necessidades educacionais especiais há deficientes visuais, auditivos, físicos, crianças com subdotação cognitiva, mas também autistas, alunos com altas habilidades e transtornos funcionais como dislexia, discalculia, disgrafia e déficit de atenção.