Com a suspensão das aulas presenciais, ensino infantil teve queda de matrículas 4x maior que a média; só a cidade de SP perdeu 16 mil vagas

Veículo: Globo.com - BR
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A suspensão das aulas presenciais em 2020 provocada pela pandemia do coronavírus fez com que a educação infantil – impraticável no modelo remoto pela pouca idade das crianças – sofresse a uma fuga de matrículas maior que a média de todas as etapas do ensino básico.

Enquanto a queda de alunos da educação básica brasileira entre 2020 e 2021 recuou apenas 1,3%, na soma das creches e pré-escolas, a queda foi quatro vezes maior e chegou a 5,8%.

Só na cidade de São Paulo, as escolas infantis perderam 15.978 matrículas de um ano para o outro. Em todo o país, foram meio milhão de alunos a menos, segundo um levantamento feito pela TV Globo a partir de dados do Censo Escolar 2021, divulgado neste ano pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

A rede pública paulistana chegou a abrir 10.457 vagas em 2021 na comparação com 2020, mas não conseguiu absorver todas as 26.435 matrículas perdidas das escolas privadas, uma queda de 23%.

Nesta série especial, o SP1 mostra, em três capítulos, como a pandemia afetou o acesso à escola formal das crianças na fase da primeira infância, que vai da gestação aos 6 anos de idade, e os desafios para reverter o retrocesso na expansão de vagas e o atraso no desenvolvimento infantil.

Nesta quarta-feira (16), o foco está nas escolas de educação infantil que não resistiram à debandada de matrículas. Em todo o Estado de São Paulo, pelo menos 527 das que funcionavam normalmente antes da quarentena constavam, no Censo Escolar de 2021, como desativadas ou extintas (assista à íntegra no vídeo acima).

Quase oito em cada dez eram privadas sem convênio público, ou seja, financiadas com a mensalidade paga pelas famílias. No caso das escolas públicas, como o financiamento vem do governo, os motivos de fechamento envolvem outros fatores, como o remanejamento de matrículas de uma escola para outra para o atendimento regional e, se a creche for conveniada, a troca das entidades responsáveis pela gestão.

Demanda por creches na capital

O levantamento foi feito a partir dos códigos oficiais das instituições de ensino infantil que estavam ativas e tinham pelo menos uma matrícula em 2020. Das 527 escolas paulistas desse grupo e que não funcionaram em 2021, 107 eram creches (para crianças de 0 a 3 anos), 354 eram pré-escolas (voltadas aos alunos de 4 e 5 anos), e 66 ofereciam as duas etapas de ensino.

Voltadas às crianças de 0 a 3 anos, as creches são uma etapa não-obrigatória de ensino. Isso quer dizer que, embora não sejam obrigados por lei a matricular os filhos dessa idade na escola, os pais têm o direito de fazê-lo, e o poder público tem o dever de oferecer as vagas. Desde 2016, a matrícula é obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade.

Essa demanda acaba sendo mais alta nas regiões com maior proporção de pessoas economicamente ativas, principalmente mulheres.

Também por esse motivo, o Estado de São Paulo se destaca da média nacional em quantidade de creches: 31% das escolas de educação infantil ativas em 2020 ofereciam apenas a etapa da creche, uma proporção quase três vezes mais alta que a do Brasil (11%).

as 527 escolas paulistas que não funcionaram em 2021 representam 19,5% de todas as 2.706 escolas nessa situação no país. O segundo estado com mais escolas infantis fechadas foi a Bahia, com 306 creches e pré-escolas (ou 11,4% do total).

Além disso, 79% das escolas paulistas fechadas eram privadas, uma proporção mais alta que a média nacional (57%). Na capital do Estado, essa porcentagem foi ainda maior, de 89%.

Uma extensão da casa

As irmãs Flávia e Renata Manzione Zanzotti, donas da Escola Mandacaru, na capital paulista, tentaram por meses não entrar nesse grupo. Mas, em outubro de 2020, a incerteza do retorno das famílias ao presencial, combinada com a dívida que haviam contraído um ano antes para expandir o atendimento até o fim da pré-escola, fez com que elas percebessem que não haveria solução a não ser encerrar o negócio e demitir a equipe.

O sonho da Mandacaru nasceu anos antes, inspirado em um plano da mãe das duas. “[Ela] era uma educadora, ferrenha, muito idealista”, conta Flávia.

“E eu e a minha irmã, que somos sócias, a gente cresceu dentro de um ambiente de educação. E a gente sempre trabalhou no cuidado com o outro.”

A escola só foi aberta em 2014, cinco anos após a morte da mãe, por um câncer, com foco prioritário nos bebês mais novos, um atendimento especializado para as mães no processo de retorno ao trabalho após a licença-maternidade.

A proposta era ter uma escola pequena, que pudesse “dar uma ideia de extensão de casa”. Anos depois, em 2019, foram os próprios clientes que convenceram as irmãs a expandir o atendimento até os 6 anos.

“Os pais pediram muito para que a gente estendesse. Aí a gente investiu, raspou todo o nosso caixa. Alugou um imóvel novo, construiu um espaço novo. Então, comprou mobiliário, foi atrás de toda a concepção desse novo espaço para acolher os nossos bebês. E aí, a gente ia abrir em janeiro de 2020. E em março veio a pandemia.” (Flávia Zanzotti, ex-dona de escola infantil)

Com a suspensão das aulas presenciais, os meses seguintes foram de incerteza diária. “A gente achava que ia ser três meses, quatro no máximo”, lembra ela.

“A gente vivia numa incerteza todo dia. A gente não queria mandar os funcionários embora porque a gente sabia que a qualquer momento podia voltar. A gente segurou o máximo os funcionários com a gente, só mandou embora no dia que a gente decidiu fechar efetivamente.”

Mesmo com campanha de arrecadação e o apoio da comunidade, em outubro Flávia fez as contas e viu que não havia mais saída.

“Nem se a gente tivesse nossa capacidade máxima de atendimento, a gente não conseguiria pagar a dívida que tinha adquirido, mais o custo mensal de operação”, explica ela.

Hoje, um ano depois, já conseguiram pagar as dívidas trabalhistas com os funcionários, mas ainda seguem devendo o banco pelo empréstimo da expansão, sem planos de reabertura.

“[A escola] pode voltar num formato diferente. Mas a comunidade que a gente tinha, aquilo a gente perdeu. E aquilo não tem volta.”

A Escola Mandacaru ficava no Campo Belo, bairro nobre da Zona Sul de São Paulo, a cidade mais atingida pelo fechamento das escolas no Estado.

Remanejamento de matrículas

Para a psicopedagoga Anna Helena Altenfelder, presidente da ONG Cenpec Educação, o fechamento de escolas durante a pandemia afetou mais a rede privada pela questão econômica, mas também pelo novo cenário pandêmico de o retorno às aulas a partir de 2021.

“Nós temos um número significativo de escolas privadas que são escolas pequenas, principalmente as que atendem educação infantil, que dependiam da mensalidade dos pais, e que não tiveram condições de sobreviver. Assim como diferentes outros estabelecimentos comerciais de diferentes naturezas.” (Anna Helena Altenfelder, Cenpec Educação)

Agora, de acordo com ela, o Ministério da Educação tem o desafio de “apoiar os estados e os municípios para que eles possam apoiar as escolas, para que as escolas possam apoiar seus professores e os professores possam dar conta da sua tarefa”, que envolve a busca ativa das crianças que ainda não retornaram ao ensino formal, e a recuperação do prejuízo na aprendizagem.

Neyde Anne Bosco Vieira, que cresceu entre educadoras e se tornou uma delas, viu a fuga de matrículas acontecer de perto. Formada em pedagogia e pós-graduanda em neuropsicopedagogia, ela é filha e sobrinha de ex-donas de escolas, já atuou como babá e em grandes instituições de ensino. Quando a pandemia foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ela trabalhava como professora no Educandário Alfa & Ômega, escola infantil pequena mantida por seus pais em São Bernardo do Campo, no Grande ABC.

“Minha mãe sempre estava na base das 30, 35 crianças. Quando fechou a gente estava numa época boa, com bastante criança. Na semana que fechou eu tinha acabado de comprar um carro velho”, lembra a educadora de 29 anos, que trabalhava como professora, prestava serviço de transporte escolar pago separadamente por algumas famílias e complementava a renda vendendo doces.

A história do Educandário Alfa & Ômega segue um roteiro parecido com a Mandacaru, inclusive com o mesmo final.

Apesar dos esforços para manter as matrículas, que incluíram a criação de um canal no YouTube e até aulas particulares em casa, a mãe dela viu a situação ficar insustentável e anunciou que abandonaria o negócio no fim do ano letivo.

Maior pressão na rede pública

Anna Helena ressalta, porém, que o fechamento das escolas não necessariamente deixou as crianças sem aula. “As famílias efetivamente tiraram os seus filhos da rede particular e matricularam na escola pública por uma insegurança econômica, seja por perda de emprego, seja por diminuição de salário, ou mesmo com preocupação frente à perspectiva futura”, explica.

Fernando Padula, secretário municipal de Educação da capital, explica que esse movimento começou a ser percebido com mais força principalmente na virada do ano letivo de 2020 para 2021, já que, no segundo semestre de 2020, o retorno às aulas presenciais ainda era feito de forma parcial, com rodízio de estudantes. Apesar da recuperação mais recente da economia, Padula diz que a rede municipal ainda não tem visto um movimento de retorno das famílias para as escolas privadas.

“Nós temos visto um crescimento menor do que foi em 2021, mas temos visto ainda um crescimento. E para 2023 a gente projeta então que vai continuar tendo uma demanda maior do que tinha antes da pandemia, de matrículas na rede pública.” (Fernando Padula, secretário municipal da Educação de São Paulo)

Ele diz que a Prefeitura de São Paulo segue comprometida em manter zerada a fila manifesta de matrículas em creche, e explica que o atendimento a essa demanda serve a dois propósitos: possibilitar que a mãe participe do mercado de trabalho e, principalmente, fomentar o desenvolvimento das crianças.

“Não é só o aspecto de possibilitar que a mãe possa trabalhar. Essa etapa da educação infantil é fundamentalmente o desenvolvimento cerebral. [da criança].”

De ex-escola à ‘casa da vó’

Atender à demanda por escola da população economicamente ativa foi o que levou Neyde a transformar a antiga escola que a mãe decidiu fechar em uma brinquedoteca. A ideia já estava sendo amadurecida havia meses, principalmente depois de julho de 2020, quando as empresas retomaram o ensino presencial, mas as escolas ainda não.

“Minha mãe tinha perdido muita criança, e as mães que tinham criança na escolinha me ligaram e perguntaram se elas podiam ficar na minha casa. Comecei a aceitar algumas crianças. Quando vi tinha dez crianças em casa, me desfiz da minha sala, da sala de jantar, pra fazer um espaço só pra crianças.”

Como brinquedoteca, Neyde diz que recebe crianças no contraturno, antes ou depois de elas irem para a escola regular, mas enquanto os pais estão no trabalho. “A maioria vai de manhã para a escola, aí eu busco, ajudo as mães aqui perto no bairro. Busco pras mães, porque perua é muito caro”, diz ela, que hoje tem duas funcionárias, além dela e do marido, e chega a ficar das 6h30 até meia-noite com algumas crianças, filhas de pais que trabalham à noite.

Seu propósito é garantir às mães trabalhadoras um espaço seguro para os filhos brincarem livremente. “Sabe aquela coisa que você tinha, de ir na casa da avó e poder brincar, fazer bagunça? Quero que meu espaço seja isso.”

Para a transformação, foi necessário adaptar o espaço para tirar qualquer caracterização de escola, e os custos do investimento fizeram com que ela tivesse que se mudar para o local, onde viveu com o marido e o filho pequeno por um ano e meio, em duas salas de aula improvisadas. Agora que está grávida novamente, ela se mudou para um apartamento.

“Lucrativo não é. É bem mais difícil. A escola tem valor bem mais elevado, eles têm mais gasto. E eu não sou prioridade para as mães”, explica ela. “Quando está na escola você tem contrato, taxa de matrícula, taxa de rematrícula. Comigo a mãe paga o que usa. Se no mês que vem ela não quer mais, não tem mais.” Além disso, ela diz que chega a dar descontos para as mães que não estão voltando ao mercado de trabalho e não conseguem pagar o preço tabelado.

“Vai fazer dois anos e não tenho lucro ainda, estou sobrevivendo. Mas pelo menos estou conseguindo fazer o que eu queria, que é ficar com as crianças, dar um espaço pras crianças. Pra mim está bom assim.” (Neyde Vieira, pedagoga)

Metodologia do levantamento

  • O levantamento usou dados das três edições mais recentes do Censo da Educação Básica (2019, 2020 e 2021) para analisar o impacto do primeiro ano da pandemia no acesso formal à educação infantil. Para isso, foi analisada a trajetória específica das creches e pré-escolas que estavam ativas em 2020, cruzando as informações pelo código oficial de cada uma delas com a edição de 2021.
  • Todos os anos, o Censo é preenchido entre os meses de maio a agosto pelos responsáveis de cada escola, e os gestores municipais e estaduais são responsáveis pelo acompanhamento dessa coleta de dados.
  • Um dos campos indica se a escola estava “ativa”, “paralisada” ou se foi “extinta” no ano da coleta.
  • Em São Paulo, das escolas ativas em 2020, 67% indicaram, no preenchimento do Censo Escolar, que ficaram “paralisadas” em 2021, e 33% foram registradas como “extintas”. A proporção de escolas extintas no Estado é duas vezes maior do que na média nacional: 15% das escolas fechadas indicaram terem sido extintas em 2021, enquanto 85% constam como paralisadas.
  • Segundo o Inep, uma vez criado, o código oficial é atribuído à escola no ato da criação, e só muda se a escola for extinta, o que acontece quando ela é vendida ou repassada a outra mantenedora, ou mude sua razão social. Além disso, o instituto diz que orienta as escolas a indicarem a opção “extinta” apenas após o processo legal de extinção da instituição, e que mantém um relatório com todas as escolas que constam como “paralisadas” em três edições consecutivas do Censo.