Conheça a Geração C, a geração Covid
Natalie Sanchez sentiu algo nas vozes de seus filhos quando suas festas de aniversário foram canceladas. Ela viu a mesma coisa em seus rostos quando eles não puderam brincar com os amigos. Era algo mais do que uma simples decepção: era o medo de que o mundo que eles conheceram pudesse ter mudado para sempre. “Eu acho que vai ficar uma cicatriz neles. Não acho que vão esquecer esse momento”, diz a norte-americana, mãe de três filhos em Little Rock, Arkansas. “Em nossa vida, há um antes e um depois disso”.
Quando o novo coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, muitos de nós esperávamos que a onda de paralisações generalizadas fosse algo de curta duração, pouco mais do que um pontinho em nosso radar coletivo. Agora, um ano depois de uma tragédia mundial que virou nossa sociedade de cabeça para baixo e deixou mais de 2,6 milhões de mortos, a conversa mudou. As situações nas quais achávamos que tudo seria momentâneo desapareceram há muito tempo. Não é mais uma questão de pensar se esta pandemia moldará uma geração inteira. Mas sim como isso vai acontecer.
Alguns especialistas começaram a usar um novo termo para falar sobre as mudanças sísmicas que estão observando – mudanças que podem causar efeitos em cascata na vida das crianças no futuro. Eles deram um novo nome à mais nova geração do mundo: Geração C ou Geração Covid. “A Covid-19 é um grande megaevento na história da humanidade”, afirmou Haim Israel, chefe de investimentos temáticos do BofA Global Research, que descreveu a Geração C em uma reportagem amplamente citada do ano passado. “Vai ser o momento mais marcante para esta geração”.
Quem está na Geração C?
O termo Geração C começou a aparecer primeiro em reportagens no início da pandemia. Mais recentemente, analistas de investimento, como Israel, e defensores dos direitos das crianças começaram a usar variações do termo.
Definir uma geração não é simples. Os nomes que usamos para falar sobre grupos de pessoas nascidas em qualquer período podem mudar com o tempo – às vezes porque o que parecia ser um evento definidor, mais tarde acaba se revelando menos influente do que outras forças em jogo, às vezes porque um termo diferente ganha impulso e se fixa.
As gerações recentes
Definir uma geração não é fácil e, às vezes, os nomes que usamos mudam com o tempo. Aqui está como as gerações foram definidas ao longo do século passado:
Geração Silenciosa: Nascidos entre 1925-1945
Baby Boomers: Nascidos entre 1946-1964
Geração X: Nascidos entre 1965-1980
Millennials: Nascidos entre 1981-1996
Geração Z: Nascidos entre 1997-? (sem final definido)
Geração C: ?*
*Enquanto alguns especialistas vêm usando o termo “Geração C” para se referir ao impacto da pandemia de coronavírus nas crianças, estudiosos em diferentes áreas até agora têm definições diferentes de quando esta geração começa e termina.
A definição de Israel da Geração C inclui crianças nascidas de 2016 a meados da década de 2030, já que, segundo ele, as mudanças que estamos testemunhando são tão dramáticas que mesmo crianças nascidas anos após o fim da pandemia ainda verão isso moldar suas vidas. “Elas serão diferentes. Estão sendo definidas por um mundo completamente novo”.
Questionados sobre quem é a Geração C, especialistas em outras áreas compartilharam diretrizes diferentes com a CNN. Um conselheiro sênior do Fundo das Nações Unidas para a Infância disse que todas as crianças deveriam ser incluídas, especialmente aquelas que sofrem interrupções em pontos de transição em suas vidas. Um professor de sociologia disse que os estudantes universitários não deveriam ser deixados de fora. Um especialista em saúde mental observou que crianças de 7 a 9 anos são particularmente vulneráveis.
Todos concordaram que precisamos ficar de olho no que está acontecendo com as crianças e que as nascidas durante a pandemia e vivendo os principais marcos de desenvolvimento agora são uma parte importante desta geração. “Os primeiros 1.000 dias de vida são muito importantes para o desenvolvimento”, apontou Jennifer Requejo, consultora sênior para saúde e HIV da UNICEF. “Enquanto os países estão se concentrando em uma resposta a esta pandemia, é importante que eles não percam de vista esses períodos de vulnerabilidade na vida das crianças. Existem algumas questões muito importantes que não podem ser deixadas de lado”.
Um novo olhar
Um bebê encara a câmera com os olhos arregalados enquanto uma música familiar toca.
É a melodia da canção infantil clássica em inglês, “If You’re Happy and You Know It”, que fala de versos sobre felicidade e pede as crianças para bater palmas a cada trecho. Mas as palavras nesta versão do TikTok são diferentes. “Se você é um bebê na pandemia e ficou em quarentena por toda a sua vida, e fica superestimulado por tudo, porque todos os estranhos que você vê usam máscaras e você nunca teve saiu para brincar com outras crianças na vida, bata palmas”.
O vídeo foi visto mais de 130 mil vezes. O TikTok, que traz videoclipes de bebês procurando desinfetante para as mãos e olhando ansiosamente pela janela durante o lockdown, virou um ponto de conexão de pais que estão usando momentos de leveza para superar as incertezas diárias de criar um bebê durante a pandemia. A versão TikTok da música foi usada como música de fundo para mais de 10 mil vídeos – e o número continua crescendo. “Ficamos tão chocados”, diz Becca Straus, que compartilhou o vídeo de seu filho, Emmett, batendo palmas enquanto seu marido, Alex, canta. Ela não esperava que o vídeo fosse repercutir com tanta gente.
Emmett nasceu em abril de 2020, poucas semanas depois que escolas, empresas e fronteiras em todo o mundo começaram a fechar. Moradora de Bellingham, Washington, a mãe conta que sua família tem tentado ensinar ao bebê habilidades sociais em casa e enfrentar a situação com calma. Mas eles se perguntam o que acontecerá quando crianças como Emmett, que passaram a maior parte de suas vidas isoladas, de repente forem expostas ao mundo mais amplo. “Estamos curiosos para saber como será quando toda a comunidade de crianças finalmente puderse reunir”, contou. “Todos vão se encontrar em uma sala e se perguntar: ‘Quem são essas crianças? O que eu faço? Como faço para brincar com elas?’”.
É uma preocupação que muitos pais de crianças pequenas da Geração C têm compartilhado com a CNN. Sanchez, a mãe citada no início deste texto, diz que está preocupada que seus filhos de 3 e 6 anos fiquem muito confusos quando voltarem para a escola. “Meu medo, porque vejo isso em mim mesma, é que eles estejam apenas se tornando mais antissociais”, diz.
Mas ela também vê um lado positivo. “Minha esperança é que eles sejam uma eração mais forte”, diz ela, “pois passamos por muita coisa em um ano”. Frank Danko, um gerente de supermercado de 27 anos de Nova York, conta que sua família conviveu muito mais tempo junta devido à pandemia do em outras ocasiões. Isso lhe deu a chance de ter mais momentos com sua filha Adriana, que agora tem 9 meses. Para Danko, não importa o que aconteça daqui para frente, Adriana e os outros membros de sua geração vão vivenciar isso juntos. “Minha bebê vai crescer de acordo com o mundo em que vive. É o que ela conhece.”
Diferença por idade
Não sabemos como o mundo ficará após a pandemia. Podemos levar meses, anos ou mesmo décadas para discernir. Sabemos que os pais estão preocupados, várias crianças estão no limite e as mais vulneráveis correm ainda mais risco. O presidente da Academia Americana de Pediatria alerta que o que começou como uma emergência de saúde pública se tornou uma crise de saúde mental para crianças e adolescentes. Além disso, a UNICEF diz seus dados “revelam um novo normal devastador e distorcido para as crianças do mundo”.
Mas os estudiosos dizem que dissecar os problemas do presente não é a única maneira de pensar sobre o futuro da Geração C. Também podemos aprender muito com o passado. “Vejo tantas semelhanças [com outras ocasiões do passado]. O caso das desigualdades, por exemplo, que existiam o tempo todo, mas que se tornam nitidamente aparentes em tempos de crise”, exemplificou Lori Peek, diretora do Centro de Riscos Naturais na Universidade do Colorado em Boulder. No livro “Children do Katrina” (“Filhos do Katrina”, sem edição no Brasil), Peek e a coautora Alice Fothergill acompanharam centenas de crianças para ver como a tempestade devastadora de 2005 no estado da Louisiana moldara suas vidas. “Ficou bem claro que os afro-americanos de baixa renda foram os mais expostos ao Katrina e sofreram a recuperação mais prolongada e os piores impactos”, diz Peek. “A mesma coisa está acontecendo na pandemia”.
Pessoas não brancas estão morrendo e adoecendo em taxas mais altas, diz Peek, e suas crianças estão desproporcionalmente fora da escola. Segundo a especialista, essas desigualdades precisam ser não apenas reconhecidas, mas também levadas em consideração nos esforços de recuperação. É uma lição que Jonathan Comer encontrou em sua pesquisa também. O professor de psicologia e psiquiatria na Universidade Florida International estudou os efeitos de ataques terroristas como o 11 de setembro e o bombardeio da Maratona de Boston em crianças. Frequentemente, as situações em que as famílias das crianças se encontravam antes do desastre (e o apoio que receberam depois) tiveram um papel maior na definição dos impactos de longo prazo na saúde mental do que qualquer coisa que as crianças vivenciaram diretamente. “É muito cedo para dizer, é claro, como será o caráter geral desta geração e como a saúde mental dela será afetada a longo prazo”, pontua Comer. “Mas parece que não haverá um padrão universal ou um impacto único na personalidade, porque os fardos desses tempos não são compartilhados igualmente”.
Comparação com a Grande Depressão
A situação de agora se assemelha com aquela de quase um século atrás, a Grande Depressão que assolou os EUA nos anos 30. “Não existe um caminho único nesta experiência. E isso foi verdade na Grande Depressão”, diz Glen H. Elder Jr., um professor e pesquisador de sociologia da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill.
Elder conta que a pesquisa por trás de seu livro “Children of the Great Depression” (“Filhos da Grande Depressão”, sem edição no Brasil) revelou vários pontos que têm paralelos nesta pandemia. Segundo o professor, a idade de uma criança na época desempenhou um papel em como a experiência moldou seu futuro.
Os meninos mais velhos que viveram durante a Depressão conseguiram encontrar empregos e sentiram que tinham algum controle da situação, diz Elder. Já os mais novos ficavam presos em casa e foram profundamente afetados pela maneira como seus pais estavam lidando com a situação. Eles se tornaram “alvos da frustração de seus pais”, diz Elder e, anos depois, ainda sofriam com as consequências. Hoje, também, especialistas em saúde mental dizem que a maneira como os pais estão lidando com a pandemia tem um grande impacto nas crianças, especialmente as mais pequenas.
Outro ponto importante: ser exposto a uma grande mudança social não influencia necessariamente a vida inteira de alguém, já que, o que quer que venha a seguir, pode desempenhar um papel ainda maior. Elder observa que muitos filhos da Grande Depressão sofreram no início, mas depois passaram a ter carreiras militares condecoradas na Guerra da Coreia. “A trajetória militar deles foi notável. Isso teve muito a ver com o fato de que eles enfrentaram tempos difíceis e sabiam como administrá-los”. As realidades diárias da pandemia tornaram-se dolorosamente claras. Mas não sabemos quais grandes eventos sociais ocorrerão dias ou décadas a partir de agora.
Tecnologia sempre presente
Israel, o analista do Bank of America, tem passado muito tempo pensando em como será o futuro. E está otimista. “Para ser honesto, eu realmente invejo a Geração C. Acho que eles vão viver em um mundo fascinante”.
Para ele, mudanças que já vimos com a Geração Z, a anterior, irão se acelerar. Israel prevê, por exemplo, que a Geração C terá a oportunidade de trabalhar onde quiser no mundo, sem deixar o conforto de sua casa. “O papel da tecnologia, da criação de dados, vai se acelerar dramaticamente. Eles vão viver suas vidas online. Eles terão sua experiência no mundo virtual”. Haim Israel
Por outro lado, especialistas que estudam o desenvolvimento infantil e desastres dizem que há muitos motivos para se preocupar com o futuro da Geração C.
“Todas as faixas etárias estão em risco”, disse Comer, o professor de psicologia que estudou desastres, observando que ele e outros profissionais de saúde mental estão particularmente preocupados com o que ele chama de “intermediários”, que apresentam problemas comportamentais crescentes e sinais de depressão. As crianças mais velhas entendem melhor a situação e podem expressar melhor sua angústia. As mais novas não sabem que em uma época anterior as coisas eram diferentes. Mas Comer diz que muitas crianças da faixa intermediária – que não são tão boas em articular sentimentos complicados e “ainda estão começando a entender o mundo” – estão realmente sofrendo. “Vemos crianças de 7, 8 e 9 anos que, só por terem passado o ano passado de isolamento, estudando em casa, fora de rotinas e estrutura e atividades, já estão tendo impactos consideravelmente negativos na saúde mental”, conta.
É muito cedo para saber o que isso significará no futuro, diz Comer, mas os efeitos em cascata provavelmente serão vistos nos próximos anos. Além disso, outro fator não pode ser ignorado. O desastre da pandemia, ao contrário de muitos outros no passado, não gerou o mesmo tipo de solidariedade da comunidade que pode ajudar na recuperação, diz Comer. “O sofrimento foi marcado por mais inquietação e mais desconfiança. Não estamos vendo a coesão da comunidade em grande escala que às vezes ajuda gerações e grupos a superar alguns dos momentos mais difíceis”, diz.
Mas a situação ainda está se desenrolando. E, de certa forma, isso é bom. “Nada disso está definido e sacramentado em termos de para onde iremos a partir daqui”, diz Peek, a diretora do Centro de Riscos Naturais. Para Peek, com tanta incerteza, uma das coisas mais importantes que podemos fazer para saber que estamos no caminho certo é conversar com as crianças sobre o que estão vivenciando, ouvir o que estão dizendo e dar-lhes a chance de contribuir no que puderem. O que todos nós fazemos agora terá um grande papel na definição do futuro da Geração C.
Alisha Ebrahimji e Janelle Davis, da CNN, contribuíram para esta reportagem.