Discord vira terra sem lei com grupos que encorajam crimes sexuais e violência

Veículo: Folha de S. Paulo - SP
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DiscordExploração sexual, pedofilia, automutilação, racismo, apologia do nazismo, maus tratos de animais e incitação a assassinatos.

Esses são alguns dos conteúdos de cunho criminoso encontrados em grupos do Discord, plataforma que surgiu em 2015 e se popularizou para bate-papo durante jogos online. Tudo isso circula em grupos que misturam usuários adultos com menores de 18 anos, sem distinção ou barreiras.

Para especialistas, a versatilidade da plataforma facilitou para que ela se tornasse uma espécie de “dark web a céu aberto”.

A definição é do promotor Mauro Ellovitch, de Minas Gerais, que atualmente investiga casos ligados a plataforma no qual as vítimas têm 11, 14 e 15 anos. O Discord afirmou em nota que trabalha para barrar o que ela mesma chamou de “conteúdo abominável”.

Segundo autoridades, a empresa não costuma colaborar nas apurações e não armazena parte do conteúdo, como as chamadas de vídeos ao vivo.

O uso do serviço para compartilhar conteúdos criminosos foi divulgado pelo Fantástico e confirmado pela Folha. Procurada, a empresa afirma que possui tolerância zero para crimes de exploração sexual infantil.

Os Ministérios Públicos estaduais de ao menos três estados estão investigando a plataforma. São Paulo e Minas Gerais analisam possíveis casos de pornografia infantil, enquanto o Rio Grande do Sul não quis detalhar exatamente qual o suposto crime apurado.

Além disso, a Promotoria de Santa Catarina monitora grupos criminosos que utilizam a plataforma para induzir e instigar ataques a escolas, pornografia infantil, discurso de ódio, intolerância racial, religiosa e de procedência nacional. O Ministério Público Federal também apura casos de pornografia infantil.

No fim do ano passado, a Folha acessou grupos no Discord com milhares de membros, sendo que o maior contava com mais de 3.000 integrantes, 500 online no momento do acesso. Nele, havia cenas de extrema violência, como supostos homicídios, exibidos em transmissões ao vivo.

Mais comuns são as imagens de animais sendo torturados e mortos, pornografia e automutilação, como uma usuária que mata uma ave a pauladas enquanto cerca de 25 pessoas assistem. Ela ainda come as entranhas do bicho e mostra os seios para a câmera.

Para a psicóloga Liliana Seger, do Instituto de Psiquiatria da USP, esses grupos costumam atrair jovens solitários, que encontram ali um local em que se sentem vistos e ouvidos. “As crianças criam a base para a saúde mental na infância, e a internet é capaz de fazer esse papel de unir grupos tanto para o bem quanto para o mal”, afirma.

Esses grupos que disseminam conteúdo criminoso no Discord criam suas próprias regras. Um deles, por exemplo, não permite a publicação de conteúdos de pornografia infantil ou de mutilação nos bate-papos. Esse tipo de conteúdo fica restrito às transmissões ao vivo.

Para ter acesso às lives violentas era preciso subir na hierarquia do grupo. Os usuários poderiam ganhar prestígio aos poucos ao fazer tarefas como divulgação do link de acesso aos chats em seu perfil pessoal.

Outra possibilidade é comprar o status por R$ 120, que daria acesso ao gerenciamento completo do servidor por um mês. Também era possível pagar para excluir usuários ou impossibilitar alguém de mandar mensagens.

Lançado em 2015, o Discord é uma plataforma gratuita criada por dois jovens programadores. É o principal produto pertencente a uma empresa de capital fechado de mesmo nome, comandada pelos fundadores do app, Jason Citron e Stanislav Vishnevskiy. Além da venda de recursos premium dentro do aplicativo, como usar fotos de perfil animadas, é financiada com investimentos recebidos de fundos especializados em tecnologia.

Uma vez cadastrado, cada usuário tem um perfil próprio no site e pode participar dos servidores e também manter chats individuais com outras pessoas. Na maior parte dos países, inclusive o Brasil, os termos de uso exigem idade mínima de 13 anos.

A ideia inicial era um serviço de conversa por voz simples para ser usado com amigos durante os jogos online. Hoje, no entanto, ele cresceu e abriga comunidades online sobre diferentes temas.

A Folha acessou os grupos usando um perfil falso e chegou a eles a partir de links compartilhados por usuários que denunciavam as práticas violentas em redes sociais. Como a reportagem não aderiu às práticas que aumentariam o nível de acesso e nem pagou por isso, ficou restrita ao bate-papo onde eram compartilhados vídeos de agressão, não necessariamente gravados pelos usuários.

Mesmo com as regras, o bate-papo aberto continha vídeos de agressão compartilhados. Apesar de anonimato ser a regra nessas comunidades, os próprios usuários expunham as informações pessoais uns dos outros —prática conhecida como doxxing. Em pelo menos uma dessas situações, havia um usuário identificado como menor de 18 anos.

Nenhum desses servidores permanece em funcionamento, mas isso não significa que os grupos não existam mais —eles podem ter partido para outro espaço semelhante na internet. Isso porque uma prática comum é a migração rápida, já que eles mantêm links de reserva já prontos para o uso em caso de remoção do anterior. Havia ainda uma rotina de exclusão periódica das mensagens.

Questionado, o Discord afirmou que os servidores foram acionados por violarem as diretrizes da empresa. Por email, a plataforma diz que segurança é a prioridade e que eles nunca param de trabalhar a fim de “encontrar e remover esse conteúdo abominável e tomar medidas, incluindo banir os usuários responsáveis e se envolver com as autoridades competentes”.

Também afirmou ter deletado 99% dos servidores que foram detectados como hospedeiros de material de abuso sexual infantil no quarto trimestre de 2022 e diz que investe no rastreamento e remoção destes servidores de forma proativa.

“Assim que tomamos conhecimento desse tipo de comportamento, investigamos e tomamos medidas, incluindo remoção de conteúdo, banimento de usuários e desligamento de servidores”, afirma.

Escola de crime sexual

A reportagem também recebeu prints de conteúdos de um grupo no Discord formado por homens cujo objetivo era ensinar como filmar mulheres durante o sexo sem que elas soubessem.

Ao dar dicas de onde esconder as câmeras em quartos de hotéis, por exemplo, as postagens sugerem que o usuário compartilhe o fruto do crime, postando no grupo vídeos das relações sexuais filmadas sem consentimento das mulheres.

Os envolvidos são americanos que viajam –em busca de sexo– para países como Brasil, República Dominicana e Colômbia.

Coação

Segundo Tatiana Azevedo, que trabalha na análise de monitoramento de grupos extremistas, essas comunidades de conteúdo de extrema violência usam como princípio a coação para angariar novos seguidores.

É comum que jovens coagidas a encaminhar imagens nuas ou que mostram seus corpos em chamadas de vídeos sejam filmadas e tenham esse conteúdo divulgado em outras redes sociais, como Twitter e Telegram.

Outra relação comum, diz a especialista, é de jovens que acreditam estar em um namoro virtual com usuários e troquem fotos íntimas e dados pessoais. Com esse material em mãos, usuários obrigam que jovens façam o que eles mandam sob ameaça da divulgação das imagens.

Apesar da necessidade do monitoramento do Discord, Azevedo alerta que a plataforma não é a única que reúne conteúdo de extrema violência.

No Twitter estão disponíveis diversos posts em que crianças mostram seus corpos mutilados, com usuários encorajando comentando “que lindo” ou “a cicatriz vai ficar linda”. Há até vídeos de extirpação do pênis. Outra plataforma com grupos que disseminam maus tratos de animais, venda de pornografia infantil e zoofilia é o Telegram.

Procurado, o Telegram afirma que desde o lançamento modera ativamente conteúdos violentos, como de maus tratos animais e abusos infantis. A empresa diz que, por meio de denúncias de usuários e moderação proativa de chats públicos, já baniu milhões de chats e contas que violam as regras da empresa.

A plataforma chegou a ficar dias fora do ar no Brasil por decisão judicial, em abril, por não enviar as informações exigidas em uma investigação sobre violência em escolas.

Já o Twitter enviou à reportagem uma resposta automática com emoji de cocô. A rede social de textos curtos tem sofrido mudanças desde que o bilionário Elon Musk a comprou, em outubro de 2022. O empresário se declara um “absolutista da liberdade de expressão”.

Atualmente, está em tramitação no Congresso o chamado PL das Fake News, que cria novas responsabilidades para as redes sociais, principalmente no caso de conteúdos criminosos. A expectativa era que o projeto fosse votado esta semana, mas ele foi adiado em meio à ofensiva de plataformas digitais –que são contrárias ao projeto.

Presidente da Safernet Brasil, Thiago Tavares relembra que conteúdos violentos não são novidade nas redes sociais. A diferença é a prevalência e a falta de monitoramento, o que atrai cada vez mais usuários. “Hoje, isso está no mainstream, com usuários entregando isso abertamente”, diz.

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