Educação quilombola sofre com falta de infraestrutura, dificuldades de transporte e apagamento histórico

Veículo: Colabora
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No ensino superior, somente 20% das universidades públicas brasileiras tinham cotas para quilombolas em 2021

Educação quilombolaNo dia 13 de novembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma atualização da Lei de Cotas, que incluiu quilombolas como beneficiários das ações afirmativas no ensino superior. As dificuldades para o acesso de quilombolas a universidades, entretanto, começam no ensino básico. A falta de infraestrutura escolar, as dificuldades de transporte e o apagamento histórico dos quilombolas no conteúdo das disciplinas são alguns dos entraves.

Em 2012, foram criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. As diretrizes devem ser oferecidas nas escolas quilombolas e naquelas escolas que recebem alunos quilombolas fora de suas comunidades de origem. Pelos dados de 2019 do Censo Escolar do Inep, existem 2.556 escolas quilombolas no Brasil, onde estão matriculados 306 mil alunos. Entretanto, ainda é visível a desigualdade das escolas quilombolas no acesso a salas de leitura, bibliotecas e quadras esportivas. Somente 20% delas têm biblioteca ou sala de leitura e 11,4%, quadras de esporte. Crianças e adolescentes pretas(os), pardas(os) e indígenas são as(os) mais atingidas(os) pela exclusão escolar. Juntos, elas(es) somam mais de 70% entre aquelas(es) que estão fora da escola, revelou pesquisa do Unicef de 2023.

Quilombola formado na Universidade Federal do Piauí e professor de português no Quilombo Mutamba, em Paquetá, no Piauí, Giliard Feitosa relembra que superou muitos obstáculos para garantir um diploma. “Nós, quilombolas, temos os piores acessos a qualquer serviço público que se possa imaginar. Em todo e qualquer serviço público existente, nós possuímos ingresso inferiorizado em relação às demais pessoas. Na educação, esse processo não se apresenta de maneira diferente”, afirmou o docente.

A baixa representatividade quilombola nas universidades não é por acaso. O primeiro contato com a educação de crianças nascidas em quilombos é precário e desafiador. Muitos quilombos sofrem com a evasão escolar da sua população, que larga os estudos por diferentes motivos, seja dificuldade de mobilidade, falta de estímulo ou até mesmo pela falta de infraestrutura das escolas.

O motivo que chama mais atenção para a evasão escolar é a distância das escolas para as comunidades quilombolas. Nelci Conceição, representante do Quilombo Aroeira, localizado na Bahia, diz que as crianças da comunidade sofrem muito com o trajeto até a rede de ensino. “Do Quilombo Aroeira até a sede da escola mais próxima são 30 quilômetros de distância. Porém, devido às voltas que o ônibus faz, pegando alunos em diversas comunidades, fica bem mais distante. Existem comunidades que se deslocam até 50 quilômetros em busca de educação. Às vezes, alunos de outros estados enfrentam uma distância ainda maior. Isso gera uma falta de estímulo, essa distância causa danos irreparáveis”, relata Nelci.

Em 2007, foi criado o programa governamental “A Caminho da escola”, que oferecia meios de transportes para alunos, visando a permanência de estudantes residentes em áreas rurais e ribeirinhas nas escolas públicas de educação básica. Entretanto, o projeto não possui grande investimento até os dias atuai. Com falta de ônibus e veículos em situações precárias, o acesso ao quilombo ainda depende muito do esforço individual dos alunos. Segundo Mestre Naldo, como é conhecido Arnaldo de Lima, líder do Quilombo da Custaneira, no Piauí, a situação dos transportes que ainda resistem é desestimulante: “Não têm um ar-condicionado, são cheios de poeira e o sol castiga; tudo isso é ruim para o aluno”.

Alta taxa de evasão escolar

O caminho para jovens quilombolas chegarem à universidade tem outros obstáculos que alimentam a evasão escolar. Muitos precisam dedicar seu tempo ao trabalho, para ajudar a sustentar a casa e a suprir seus desejos pessoais. “São filhos de pais pobres que querem comprar tênis, sair no fim de semana, ir pro jogo, e isso tudo custa dinheiro”, diz Giliard. “Então esses jovens pensam que é mais vantajoso deixar de estudar para começar a trabalhar. Nessa ideia, eles vão ter mais dinheiro para comprar a bicicleta ou moto que querem. Então a gente tem uma taxa de evasão muito alta por esse motivo”, diz ele.

Com a baixa verba destinada ao ensino quilombola, as escolas apresentam, na maioria das vezes, uma estrutura sem investimento e insuficiente para explorar as competências estudantis. Tetos caindo, falta de material e salas sem ar condicionado são apenas alguns dos problemas relatados por estudantes. O atraso de aprendizado na grade curricular dos alunos gera também um entrave. Muitas instituições de ensino possuem aulas apenas até a 5ª série.

Giliard conta que o aprendizado precário foi um entrave que ele teve que superar para entrar no ensino superior. “Foram muitas as dificuldades que eu enfrentei para chegar na universidade, mas eu diria que a principal foi eu ter que compensar aquilo que era uma lacuna no meu currículo escolar. Ter que colocar em prática algo que nunca aprendi e aprender tardiamente com esforço quadruplicado ou quintuplicado”, relatou o professor.

Primeira quilombola a defender um mestrado na Universidade de Brasília,em 2012, Givânia Maria da Silva diz que a barreira da educação superior só será superada quando forem enfrentadas as dificuldades na base. Sua pesquisa, realizada no Departamento de Educação, foi sobre a educação diferenciada no território quilombola de Conceição de Crioulas, em Pernambuco. “Não podemos desprezar e esquecer que a maioria dos nossos ainda não atravessam o ensino básico ou concluem o ensino médio. É necessário entender que ou nós superamos os desafios que estão postos na educação básica ou o ensino superior, para nós, não fará sentido”, diz Givânia.

Uma das fundadoras da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e referência nos estudos sobre educação quilombola, Givânia fez a graduação em uma faculdade privada, já que ainda não havia cotas para quilombolas na época em que prestou o vestibular. Além de provas para ingressar, ainda existe a dificuldade das mensalidades. Em conjunto com elas, despesas de transporte e materiais didático na universidade tornam o acesso difícil para a camada mais pobre da população.

Em 2012, foi aprovada a primeira lei de cotas do país. Nela, todas universidades e instituições de ensino federais brasileiras foram obrigadas a reservar metade das vagas dos cursos para estudantes de colégios públicos que fizeram todo o ensino médio nessas instituições. Dentro dessa cota, existiam as subcotas que destinavam essas vagas também para negros, indígenas e pessoas com baixa renda. Em 2016, essa lei foi alterada e pessoas com deficiência também começaram a fazer parte do grupo. A composição da lei representou uma grande mudança no perfil dos estudantes das universidades públicas. Segundo a pesquisa “Avaliação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil: resultados e desafios futuros”, realizada pela UFRJ e Ação Educativa, a variação percentual de estudantes vindos de escolas públicas, pretos, pardos, indígenas e de baixa renda teve aumento de 205%, de 2013 a 2019.

O avanço da Lei de Cotas, no entanto, não representou um efetivo avanço para a população quilombola nas universidades públicas. Durante a tramitação da proposta no Congresso Nacional, o pleito da população quilombola, de ser incluída como uma categoria nas cotas, não foi atendido. De acordo com o estudo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), até o ano de 2021, somente 20% das universidades públicas brasileiras possuíam, opcionalmente, cotas para quilombolas. O número representava 21 instituições públicas de ensino superior, dentre 106 instituições no total do país, sendo 15 federais e 6 estaduais. A pesquisa apontou que os quilombolas possuíam menos de 1% desses espaços por cotas. Das 384 mil vagas disponíveis para ocupação no território nacional, apenas 2.035 estavam disponíveis para quilombolas. A situação tende a mudar com a nova lei sancionada pelo governo Lula garantindo cotas específicas aos quilombolas.

É difícil encontrar quilombolas nas universidades federais brasileiras. Gillard, que estudou na Universidade Federal do Piauí, diz que sempre se sentiu sozinho nas salas de aula. “Eu via negros , mas pessoas que se autodeclaravam quilombolas eu não encontrei nenhuma. Na minha sala, só tinham duas pessoas negras e eu era uma delas. Eu não estou falando de um passado distante, eu concluí minha formação em 2017”, lembra o professor.

Quilombos fora das disciplinas escolares

Além de estarem presentes dentro das universidades, é necessário que o passado e o presente também sejam lembrados. Entender a história desse povo e compreender as dinâmicas sociais em que eles estão inseridos são passos importantes para alavancar o processo de educação básica e superior. Entretanto, existem poucas disciplinas que abordam os quilombolas na grade curricular do ensino superior brasileiro, criando mais uma forma de violência contra esse povo: o apagamento histórico. Não há nenhuma disciplina voltada para a educação da comunidade quilombola nas universidades públicas do Rio de Janeiro, por exemplo.

“A representação era baixíssima para uma universidade. Eu não me lembro de ter escutado o nome quilombola nenhuma vez enquanto aluno”, disse Giliard. Da mesma forma. Givânia completou a fala do professor. “Nossa luta não é só para nos inserir no ensino superior, é para que essa rede de ensino da educação infantil ao ensino superior seja transformada e modificada de forma que ela não seja indutora de uma história única. Quantas vezes alguém ouviu falar de quilombos na alfabetização? Eu desafio todos. Se ouviu, foi sobre o passado, falando que existiam quilombos, que o Quilombo dos Palmares foi destruído. Não falam sobre o presente”, observa Givânia.

O encontro com a sala de aula começou em 1989 para Givânia, quando fez concurso público no município pernambucano de Salgueiro, a 50 quilômetros de distância de sua comunidade quilombola, e passou a lecionar em escolas públicas, atuando como professora na comunidade Conceição das Crioulas. Como docente, passa a pesquisar a história do quilombo, inserindo-a no projeto pedagógico da escola quilombola. Mais recentemente, Givânia entrou para o quadro de professores substitutos da UnB. “Eu entendi que o ato de ser professora ali, não era só o ato de ensinar crianças e adultos a ler e escrever. Era mais do que isso, era ensinar a entender aquele território”, observa Givânia. “Um território do qual já não eram mais donos. Outras pessoas haviam se apropriado desse território, fazendo com que os seus sucessores não tivessem mais acesso a ele. Então, desde cedo, eu entendi que a educação era sobre isso: manter essa história viva”, sustenta. “O ensino tem que ser mais que ir para a universidade”.

 

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