Estupro de vulnerável: Ceará tem média anual de mil nascimentos com ‘meninas-mães’ de até 14 anos

Veículo: Diário do Nordeste - CE
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Estupro de vulnerável: Levantamento do Diário do Nordeste mostra que, na última década, quase 11 mil bebês nasceram no Ceará com mães nessa faixa etária

Estupro de vulnerável
Foto: Antonio Guillem/Shutterstock

Ao longo da década compreendida entre os anos de 2014 e 2023, quase 11 mil bebês que nasceram no Ceará eram filhos de meninas de até 14 anos. O número desses nascimentos vem reduzindo ano após ano, mas ainda assim, nesse período, o Estado registrou uma média anual de mil crianças frutos de gravidez nessa faixa etária. Segundo o artigo 217-A do Código Penal, a relação sexual com menor de 14 anos é caracterizada como crime de estupro contra vulnerável.

O levantamento foi feito pelo Diário do Nordeste no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), que reúne dados sobre os nascimentos informados em todo território nacional. Segundo os registros na plataforma, 74 meninas de até 14 anos já deram à luz no Ceará em 2024, nos meses de janeiro e fevereiro.

“Nós não podemos chamar isso de gravidez de adolescente. Isso é uma gravidez muito antes do que deveria ser para o corpo de uma mulher. É uma gravidez muito precoce e é um estupro de vulnerável. Essa menina precisaria ter sido protegida”, afirma a socióloga Lígia Cardieri, especialista em Saúde Coletiva e Epidemiologia e secretária-executiva nacional da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos.

Indo além do Código Penal, a Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aponta que “eventual consentimento da vítima” é irrelevante, assim como sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente do ato. Há casos “excepcionalíssimos”, porém, em que essa tese pode ser afastada.

Foi isso que ocorreu em um caso julgado pela 5ª turma do STJ envolvendo um homem de 20 anos e uma menina de 12 cujo relacionamento resultou em uma gravidez. Com placar de três votos a favor dessa tese e dois contrários, os ministros o inocentaram do crime de estupro de vulnerável.

Ele chegou a ser condenado a 11 anos e 3 meses de prisão pela Justiça de Minas Gerais, mas foi absolvido em 2ª instância pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Com isso, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) recorreu ao STJ pedindo a manutenção da condenação.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator do caso, destacou que a menina e o homem tiveram uma união estável e constituíram família, além de ele prestar assistência à criança apesar do fim do relacionamento. Para a absolvição, foi aplicado o conceito de “erro de proibição”, segundo o qual a culpabilidade de uma pessoa pode ser afastada se ficar demonstrado que ela praticou o ato sem saber que era proibido.

O relator foi seguido pelos ministros Joel Ilan Paciornik e Ribeiro Dantas. Os ministros Daniela Teixeira e Messod Azulay divergiram e entenderam que houve crime. “Não se pode, racionalmente, aceitar que um homem de 20 anos de idade não tivesse a consciência da ilicitude de manter relação sexual com uma menina de 12 anos”, afirmou a ministra.

A advogada Angélica Mota, presidente da Comissão de Direito de Família da Ordem dos Advogados do Estado do Ceará (OAB Ceará), considera que a decisão do STJ é “bastante problemática” e traz uma “profunda insegurança jurídica”. Para ela, no contexto brasileiro, com tanto relatos sobre abuso de menores, é “muito preocupante” que o limite de idade de 14 anos seja flexibilizado. Ela ainda aponta preocupação com a possibilidade de se abrir precedente que, eventualmente, repercuta em outros casos.

“Remeto ao voto da ministra Daniela Teixeira: misteriosamente esses homens mais velhos podem ‘se apaixonar’ por meninas de apenas 12 anos e isso ser considerado como excludente de ilicitude. No caso, existe uma criança que está sendo submetida a uma situação de conjunção carnal. É um âmbito de violência, não de uma família a ser protegida. E é assim que o direito deve encarar esse fato”, avalia.

Na última terça-feira (19), a 5ª Turma manteve a prisão preventiva de um homem por estuprar a filha de 15 anos. O caso foi considerado estupro de vulnerável porque ela estava drogada e alcoolizada. Na ocasião, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca afirmou que, nos quase 19 anos em que está na Corte, a 5ª Turma julgou colegiadamente 455 casos desse tipo de crime e o estupro de vulnerável foi afastado em apenas seis deles — cerca de 1,3% do total.

ESTUDO SOBRE AS MENINAS-MÃES

Para Lígia Cardieri, a decisão do Superior Tribunal de Justiça é “lamentável”. “Em outras culturas, em outros tempos, realmente as meninas muitas vezes já se casavam assim que tinham a primeira menstruação. Não é o que tem na lei brasileira e não é o que a nossa sociedade hoje recomenda para vida e para o futuro dessas meninas. Então, é realmente um registro muito negativo esse resultado do STJ”.

Um estudo da Rede Feminista de Saúde analisou os dados de nascidos vivos em busca de informações sobre as “meninas-mães” em todo o Brasil na década de 2010 a 2019. Posteriormente, o estudo foi analisado com os dados referentes a 2021, quando a entidade constatou que a taxa de meninas-mães foi de 0,6% em relação ao total de partos com nascidos vivos.

“Isso representa uma preocupação significativa, especialmente porque a tendência de redução observada na década anterior parece ter diminuído, isto significa, não houve redução significativa em comparação com 2020”, aponta a Rede. O estudo constata que a maioria desses casos atinge meninas pobres, negras e de pequena escolaridade. Além disso, ela aponta que a situação é mais grave em estados das regiões Norte e Nordeste.

Na pesquisa, o Ceará aparece abaixo da média do Nordeste, com 1% dos partos ocorridos entre 2010 e 2019 em meninas de até 14 anos. Os municípios com piores índices no Estado foram Uruoca (2%), Pacujá (1,9%) e Monsenhor Tabosa (1,9%). “Tem municípios que ficaram muito abaixo disso que significa que as condições para as meninas e de proteção as meninas devem ser melhor”, comenta.

DESENVOLVIMENTO INTERROMPIDO

Lígia Cardieri destaca que, em casos de gravidez em meninas de até 14 anos, o desenvolvimento dela é interrompido. “Ela está em crescimento, várias coisas do corpo estão se ajeitando, a menstruação nem está regular ainda”, afirma. A pesquisadora também aponta que essa gestação oferece risco à saúde das meninas, com taxas mais elevadas de morte materna e com bebês prematuros.

Segundo a socióloga, gestores — nos níveis municipal, estadual e federal — devem estar atentos para os casos de gravidez nessa faixa etária, assim como a própria sociedade. Para ela, as secretarias de saúde e de ação social precisam trabalhar em conjunto para saber se a menina foi amparada, seja para ter a criança ou para fazer o aborto legal. “A existência de gravidez e menina menor de 14 anos é um alerta, um sinal vermelho”, afirma.

Para a prevenção essa violência e uma consequente gravidez, a especialista defende que é preciso reforçar ações como a educação sexual e disseminação de informações para pais e escolas.

“As meninas e os meninos, que também podem ser abusados, precisam conhecer e saber os sinais e os direitos que eles têm de negar e de denunciar esse adulto, essa pessoa que usa do seu corpo, em uma situação em que a criança não está preparada para isso e que a lei a protege.” Uma vez que uma menina ficar grávida, ela aponta a importância de monitorar a situação dela, se ela está protegida do abusador e, sempre que possível, denunciá-lo.

A promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Saúde (Caosaúde), Karine Leopércio, explica que o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) acompanha os casos de meninas mães até os 14 anos no Estado. “Apesar das políticas públicas já terem surgido algum efeito, trazendo uma redução, entendemos que essa redução ainda é muito discreta. Os dados ainda são muito preocupantes e a gente precisa realmente tratar isso como (questão de) saúde pública”, alerta.

Ela também destaca os riscos que uma gravidez nessa faixa etária oferece para a menina e para o bebê. “O corpo da criança, dessa adolescente precoce, ainda não está preparado para gerar um outro ser, e isso aumenta muito os riscos dessa gravidez, de um parto prematuro, de uma má formação fetal, de uma hipertensão gestacional e até mesmo da pré-eclâmpsia.”

MENINAS-MÃES EM FORTALEZA

Na Capital, Fortaleza, 2.524 bebês nasceram de “meninas-mães”, de até 14 anos, entre 2014 e 2023. A média, então, é de 252 casos por ano nesse período. Nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, o número de meninas que deram à luz foi de 23.

A assessora técnica da Saúde da Mulher de Fortaleza, Lea Dias, explica que há dois programas que atuam para a prevenção desse problema. Um deles é o Programa Saúde na Escola (PSE), do Governo Federal, que trabalha o eixo de direitos sexuais e reprodutivos e de redução das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). O outro é o Programa Gente Adolescente, desenvolvido em uma parceria entre a Secretarias Municipais da Saúde e da Educação. Ambas as iniciativas atuam na prevenção da gravidez na adolescência.

“Historicamente os adolescentes, eles não estão na unidade de saúde. Por isso esses dois programas fazem uma intersetorialidade com a Educação para abordar essa temática na escola, para a gente poder dar informação para essas meninas e meninos sobre a prevenção da gravidez, com uso de métodos contraceptivos, ter início das relações sexuais de forma responsável”, explica.

Uma vez que a menina nessa idade fica grávida, a assesora técnica explica que ela tem três possibilidades: interromper a gestação de forma legal, fazer a entrega legal do bebê após o nascimento ou levar a gravidez adiante e criar a criança. Caso ela decida pelo aborto legal, ela passa por três consultas com profissional da Psicologia.

Na Capital, os dois serviços de saúde que realizam o aborto legal são a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac) e o Hospital Distrital Gonzaga Mota do José Walter — o Gonzaguinha José Walter. No caso do pré-natal, apesar de as 118 unidades de saúde de Fortaleza realizarem o serviço, as meninas são orientadas a procurar essas mesmas duas unidades, que contam com o serviço de atenção ao adolescente.

Já o programa Entrega Legal é coordenado pela Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci) e faz o acompanhamento psicossocial de mães e gestantes que decidiram entregar o filho para adoção. O objetivo é evitar práticas de abandono ou adoção irregular.

Lea Dias também destaca o estímulo ao uso dos dispositivos intrauterinos (DIU) e a implantes contraceptivos, chamados de Métodos Contraceptivos de Longa Duração (Larcs). Os implantes estão em fase de aquisição pela Prefeitura e serão disponibilizados nos serviços de adolescentes.

“Eles são os métodos mais adequados para a população de adolescentes (por não dependerem de tomadas diárias). (…) Essa inserção, ela pode ser pós-parto, para evitar uma reincidência da gravidez no período da adolescência”, afirma. Outro público para o qual os métodos serão disponibilizados são as mulheres em situação de rua em idade fértil.

A reincidência da gravidez durante a adolescência preocupa tanto pelos riscos de uma gestação nessas faixas etárias (10 a 14 anos e 15 a 19 anos), como hipertensão e a prematuridade, quanto por efeitos como evasão escolar e impactos na futura vida profissional dessas meninas.

ACOMPANHAMENTO DESSA REALIDADE NO CEARÁ

A promotora Karine Leopércio aponta que o Ministério Público busca estimular o fortalecimento dos serviços de saúde para que o atendimento a essa faixa etária, principalmente para evitar uma segunda gravidez precoce.

De acordo com ela, ainda há uma “dificuldade muito grande” de o serviço de saúde acompanhar essas crianças e esses adolescentes, proporcionar uma educação sexual efetiva e colocar métodos contraceptivos. Ela também aponta a dificuldade de essas meninas conseguirem fazer o aborto legal pela pequena quantidade de serviços que realizam o procedimento.

A nossa atuação é no sentido de realmente poder garantir esses serviços para que esse direito, que é previsto em lei, possa de fato acontecer. E se ela optar pelo aborto legal, ter os profissionais, ter o acompanhamento psicológico, ter toda a estrutura necessária para se realizar. E mesmo que ela opte por ter aquela criança, para que ela tenha essa assistência posterior, para que não venha novamente engravidar em uma idade muito precoce. Porque ela vai ficando cada vez mais vulnerável.

Karine Leopércio, Promotora de Justiça e coordenadora do Caosaúde

A procuradora de Justiça Elizabeth Almeida, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação (Caoeduc), acrescenta duas iniciativas realizadas pelo MPCE: o Programa Viva seu Tempo, de prevenção à gravidez na adolescência, e o “PREVINE – Violência nas escolas, não!”.

“O Previne tem essa visão preventiva, de se trabalhar através do diálogo, da prevenção, e esclarecendo à dolescentes que mesmo gravida ela tem os seus direitos. Quando tiver filho, ela tem direito a receber educação domiciliar”, exemplifica a procuradora, que também aponta o empoderamento de meninas para dividir na escola situações de violência que tenham enfrentado.

A advogada Angélica Mota também afirma que a OAB Ceará acompanha os dados sobre violência estupro de vulnerável, por meio de suas diversas comissões. Nesses casos, pela Comissão do Direito da Criança e do Adolescente, uma vez que se trata de violência não só contra o menor de idade, mas contra crianças.

No âmbito estadual, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) tem estruturado a Rede Pontos de Luz, de atenção à criança, adolescente e mulher em situação de violência sexual e doméstica. Segundo Débora Britto, médica ginecologista e assesssora técnica na Superintendência da Região de Fortaleza (SRFOR), a partir de diálogos com setores como a Educação, a Proteção Social e Justiça, a atenção a pessoa vítima de violência sexual e ou doméstica tem sido fortalecida nos últimos anos, “com especial foco para a criança e adolescente, por suas vulnerabilidades e por não serem capazes ainda de gerenciar o próprio cuidado”.

“Tem sido trabalhada a estruturação de serviços de referência que estejam qualificados para a atenção integral às demandas e (tem sido) fortalecido o apoio aos municípios para a construção de fluxos para o adequado acolhimento e cuidado em saúde”, diz.

Uma vez que casos de estupro de vulnerável sejam identificados, a médica explica que é necessário fazer a notificação ao SINAN, que realizar os atendimentos cabíveis e acionar o Sistema de Garantia de Direitos, que “de maneira intersetorial atua de forma coordenada e integrada para garantir a proteção e promoção dos direitos”.

“O acesso à saúde  é um componente importante dessa proteção e promoção, e as adolescentes podem e devem ser encaminhadas para o atendimento com base nas suas demandas e especificidades, sendo aspectos desse cuidado, além do atendimento e do acompanhento multidisciplinar, a educação em saúde e o encaminhamento para demais órgãos de proteção”, afirma.

A partir da avaliação de cada caso, são realizados procedimentos como exames para rastreio de ISTs e profilaxias para evitar infecção e/ou gravidez indesejada, “além de outros possíveis desfechos negativos”.

“A Rede Pontos de Luz conta com serviços que são referência da atenção integral a esses caso, que contam com equipes multidisciplinares para o adequado gerenciamentos de todas as questões de saúde envolvidas”, finaliza.

 

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