Jovens de Florianópolis já estudam em projeto piloto de ensino médio

Veículo: Exame - BR
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Desde fevereiro, 80 jovens de Florianópolis estudam num projeto piloto de ensino médio que, se depender da vontade do Ministério da Educação, vai ser o padrão no Brasil daqui para a frente. Aberto por uma unidade do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), o curso une conhecimentos teóricos e práticos visando ao mercado de trabalho. A mudança começa pelo diploma: após três anos de estudos, os alunos recebem certificado de conclusão do ensino regular e de técnico em informática, uma formação disputada na capital catarinense, um dos melhores locais para negócios em tecnologia no Brasil. No curso, a serventia de disciplinas como português e matemática é imediatamente colocada em prática.

As aulas de história e geografia, por sua vez, há algumas semanas se concentram na evolução da infraestrutura urbana desde a Antiguidade. O motivo: até dezembro os alunos deverão criar um jogo online sobre cidades inteligentes em que o conhecimento do tecido urbano é fundamental para a montagem de cenários do jogo. Em matemática, abstrações de geometria, como catetos e hipotenusas, servem de base para os estudantes manusearem melhor máquinas de corte de objetos que criam em aulas de impressão em 3D. O pensamento lógico do filósofo grego Aristóteles é inspiração para sessões de programação de software. O curso, embora recente, já chamou a atenção dos jovens da região. “Há filas de espera para a turma de 2018”, diz Leonardo de Oliveira, gerente de educação do Senai catarinense.

O currículo seguido pelos estudantes  de Florianópolis foi criado com base nos parâmetros da reforma do ensino médio sancionada pelo presidente Michel Temer em fevereiro. O foco do texto é o retorno da vocação profissionalizante do ensino secundário. A ideia é que, a partir de 2019, os 7 milhões de secundaristas brasileiros possam escolher, num cardápio de cinco áreas do saber, o que desejam estudar. Uma das opções é a formação profissional, que deverá reunir os 227 currículos técnicos permitidos pelo MEC. É uma volta a um modelo de escola que se perdeu ao longo da década de 80, quando a formação prática foi separada da regular por causa da necessidade de aumentar a oferta de vagas numa época de muita restrição orçamentária.

Atualmente, o usual para um aluno do ensino médio interessado em se tornar técnico é começar os estudos após a educação regular, um complemento que pode levar até seis anos. Ou, quando o aluno consegue frequentar o médio em paralelo com o técnico, raramente os conteúdos conversam entre si. “É comum o estudante chegar ao técnico sem uma base de aprendizado, e isso compro-mete a formação especializada”, diz a educadora Ana Inoue, consultora da Fundação Itaú BBA, que apoia projetos de educação profissional.

O resultado é que poucos jovens no Brasil terminam o ensino médio com algum certificado que sirva de currículo para o mercado de trabalho. Só 11% concluem algum curso técnico ou profissionalizante, segundo a Confederação Nacional da Indústria. O destino dos demais estudantes também não é a universidade: só 25% seguem carreira acadêmica. O restante — seis entre dez secundaristas — para de estudar ali mesmo. Essa enorme desmotivação com a própria educação causa perdas bilionárias.

De acordo com as estimativas do Instituto Ayrton Senna, com base nos dados do MEC sobre o assunto, em 2014 o Brasil praticamente desperdiçou quase 9 bilhões de reais em despesas com 1,4 milhão de jovens que abandonaram os estudos ou não concluíram o médio nos três anos do currículo. E, como o volume de investimento por aluno dobrou desde 2010, o gasto público com estudantes que não se formam na idade certa subiu 20% desde o início da década. “Num país com limitações orçamentárias como o nosso, não dá mais para jogar dinheiro fora assim”, diz Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna.

Além do desperdício de recursos, há riquezas que o país deixa de produzir por não ter profissionais devidamente qualificados. Segundo a CNI, oito em cada dez postos de trabalho que serão abertos até 2020 vão precisar de profissionais com cursos técnicos ou qualificação profissional. “Se não formarmos bem os jovens, poderá deixar de existir o equivalente a 12 milhões de empregos”, afirma Rafael Lucchesi, diretor-geral do Senai. A carência é mais forte em áreas como robótica e inteligência artificial.

Novos cursos

Ainda falta muito para a reforma do ensino médio de fato preparar os jovens brasileiros para suprir as demandas do mercado. Mas a nova lei já deu liberdade a alguns gestores públicos para adaptarem os currículos e começarem a recuperar o atraso. Em Santa Catarina, o modelo do Senai está sendo adotado em quatro escolas públicas estaduais. Em outros estados, a falta de dinheiro impede investimentos numa unificação completa dos currículos, como a da experiência catarinense. Mas, com adaptações, o ensino profissionalizante vem ganhando espaço. Em Mato Grosso do Sul, desde fevereiro cerca de 2 700 alunos secundaristas (10% da rede) podem escolher entre 11 cursos técnicos.

A escassez de professores é superada com aulas online — de 15% a 20% do currículo é repassado em videoaulas pela internet. No Ceará, alunos de 125 escolas de nível médio já têm acesso a formação profissionalizante e a uma bolsa de 450 reais para estagiar em empresas conveniadas. Mesmo o Ministério da Educação, que por lei deveria se preocupar só com o ensino superior e deixar a gestão do ensino médio para os estados, está pon-do a mão na massa. Em dezembro, antes de a reforma passar pelo Congresso, a pasta anunciou o investimento de 700 milhões de reais na abertura de 80 000 vagas de cursos técnicos para alunos do nível médio.

O projeto, chamado de MedioTec, é parte do Pronatec, programa de formação profissionalizante voltado para desempregados em busca de requalificação. Lançado em 2011 como carro-chefe do governo Dilma Rousseff para a educação, o Pronatec no auge, em 2014, teve 4,6 milhões de matrículas. Hoje são 400 000. O enxugamento se deve, em parte, às críticas de que não houve critério na localização geográfica dos cursos — muitas turmas tiveram evasão superior a 50% porque faltou oferta regional de postos de trabalho para os estudantes. Com o MedioTec, a estratégia está sendo ouvir a iniciativa privada para decidir onde alocar os cursos técnicos, que deverão começar em agosto. “Queremos evitar os erros do Pronatec”, diz o ministro da Educação, Mendonça Filho.

A reforma também deve abrir a possibilidade de gestores públicos firmarem parcerias com a iniciativa privada para a montagem de currículos profissionalizantes ajustados às necessidades das empresas. Se a ideia vingar, o Brasil deverá seguir o exemplo da Suíça, onde 65% dos secundaristas recebem alguma formação profissional. Lá, as aulas ocorrem numa rede de 3 000 escolas manti-das por associações comerciais ou industriais e os alunos estagiam nas empresas mantenedoras do programa. O forte vínculo dos estudantes com o mercado de trabalho é tido pelos especialistas como um dos motivos de a taxa de desemprego suíça, de 3% da mão de obra, ser uma das mais baixas do mundo.

No Brasil, um exemplo de parceria que deve prosperar com a reforma é a do Instituto ProA, organização não governamental de São Paulo financiada por empresas como os bancos JP Morgan e Credit Suisse e a varejista Via Varejo. No ProA, profissionais que construíram uma carreira bem-sucedida na iniciativa privada ensinam jovens de baixa renda a vencer a competição por bons empregos. Nas aulas, dão lições de como passar numa entrevista de emprego, como trabalhar em equipe, como expor ideias, e por aí vai. 

Desde o início, em 2007, o programa já formou 3 600 jovens, que não raramente têm aulas nos escritórios das empresas apoiadoras. A evasão nas turmas não passa de 3% ao ano. Agora, com a reforma do ensino médio, o plano é fechar convênios com os estados para oferecer o conteúdo nas próprias salas de aula — uma parceria com o governo paulista já foi acertada. “Em dez anos, queremos formar 400 000 jovens”, diz Rodrigo Dib, diretor executivo do ProA.

Apesar do ânimo com a reforma educacional, há uma série de desafios para a lei sair do papel. A começar pela falta de dinheiro para contratar professores, montar laboratórios e toda a parafernália de um curso profissionalizante. A falta de gente qualificada para dar aulas é outro problema. Hoje não há sequer uma estimativa do déficit de professores na hipótese de cursos técnicos serem oferecidos aos 7 milhões de secundaristas. Pelo lado da oferta, há mais universitários interessados em ensinar disciplinas profissionalizantes. Em 2012, 28% dos 238 000 alunos que ingressaram em licenciaturas expressavam esse desejo; em 2015, 35%, segundo um levantamento do Instituto Áquila, consultoria em gestão escolar, com base em dados do MEC.

O problema é que dois terços desses futuros professores se concentram em cursos de educação física — disciplina tida como profissional pelo ministério —, e a fatia vem subindo. Já os universitários que se preparam para ensinar informática estão mais raros: eram 5% em 2012 e, três anos mais tarde, apenas 2,8%. Para lidar com a  escassez, outra novidade da reforma é a permissão para profissionais de notório saber técnico darem aula, algo que até a sanção da nova lei era proibido. Mas, para eles entrarem em sala de aula, falta um currículo nacional que estipule o que deverão ensinar, discussão que deve ir até o fim do ano. Só então as redes de ensino poderão ter segurança jurídica para contratar esses profissionais sem sofrer processos judiciais de sindicatos contrários à medida. Até lá, exemplos bem-sucedidos de reforma no ensino médio deverão surgir aqui e ali. Resta saber se o país inteiro poderá seguir o mesmo caminho.