Mais de 4 milhões de crianças não foram vacinadas contra pólio

Veículo: O Globo - RJ
Compartilhe

Com a maior parte das vacinações abaixo da meta em 2020, um caso tem chamado a atenção de especialistas: a vacinação contra a pólio. No Brasil, 4,3 milhões de crianças ainda não haviam sido vacinadas contra a paralisia infantil em outubro. Segundo o Ministério da Saúde, no total, 11,2 milhões de crianças, com idades de um a cinco anos, precisam tomar o reforço.

A vacinação para a pólio, ou poliomielite, vem caindo nos últimos anos, mas a pandemia agravou o cenário. Em 2015, a cobertura vacinal no país chegou a 98,2%. Em 2018, foi para 89,5%. No ano passado, caiu ainda mais, para 83,7%. Até 17 de novembro de 2020, a cobertura estava em apenas 61,3%.

Os dados, encaminhados pelas Secretarias Estaduais de Saúde, são preliminares e estão sujeitos a alterações.

Segundo o ministério, o maior percentual de cobertura vacinal foi registrado no Amapá (94,7%), seguido por Pernambuco (87,5%). O menor percentual foi no Acre (31,1%). No Rio, o índice está em apenas 41,4% e, em São Paulo, 53,1%.

Apenas 30,2% dos municípios brasileiros (ou 1.683) atingiram a meta de cobertura vacinal, que é de 95% da população alvo. De acordo com o ministério, os estados podem continuar com as mobilizações de acordo com o planejamento e estoque locais.

Até o momento, nenhuma campanha de vacinação, para diversas doenças, alcançou a meta no Brasil, muito em função do medo das famílias, segundo Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria.

— A baixa cobertura já vinha se agravando nos últimos anos e, em 2020, a pandemia exacerbou o problema — afirma.

Embora o Brasil esteja livre da poliomielite desde 1990, especialistas se dizem preocupados que aconteça algo semelhante ao que houve com o sarampo, que foi considerado erradicado do país pela Organização Mundial da Saúde em 2016, mas voltou dois anos depois, quando o vírus entrou no país e encontrou uma parte da população não vacinada, ocasionando surtos. Em 2019, 18 mil pessoas contraíram a doença.

O poliovírus ainda existe em dois países, Paquistão e Afeganistão, e, por mais distantes que sejam, num planeta globalizado pode facilmente entrar no Brasil, onde encontraria condições favoráveis para a propagação, como explica Flávia Jacqueline Almeida, professora de pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e pediatra-infectologista do Hospital Infantil Sabará, de São Paulo:

— O poliovírus tem transmissão oral-fecal, então se propaga por água e alimentos contaminados. Grande parte das pessoas que tem contato com o vírus é assintomática e só excreta o vírus. Então, uma pessoa desses países que venha ao Brasil excreta o vírus e, se não tiver uma boa cobertura vacinal, alguém pode pegar, e isso vira uma bola de neve. É especialmente preocupante porque temos boa parte da população em condições sanitárias precárias.

A vacinação contra poliomielite, famosa pelo personagem Zé Gotinha, deve ser feita aos 2, 4 e 6 meses, com reforço aos 15 meses e aos 4 anos. Só com todas as cinco doses a criança está protegida.

De acordo com Almeida, o ideal é que a cada campanha todas as crianças sejam vacinadas, independentemente de como está a carteirinha de vacinação. Não há problema em tomar a vacina várias vezes.

Sequelas para a vida

Um dos problemas apontados pelos especialistas para a baixa adesão à vacina contra a poliomielite, além da pandemia, é que as novas gerações não têm em mente os riscos.

Eliana Gonçalves tem 48 anos e teve polio em 1975, quando tinha três anos. Moradora de São Paulo, ela não tomou todas as doses da vacina por desinformação da família. Quase morreu, passou uma semana em coma e sobreviveu, mas com sequelas para a vida toda. A doença afetou seus membros inferiores e, por isso, necessita de cadeira de rodas. Também afetou seu aparelho respiratório, e desde os 14 anos, tem uma traqueostomia e precisa de um aparelho vetilador.

— A vida é difícil para todo mundo, mas para quem tem uma doença é muito mais. Na infância, eu só pude assistir às outras crianças brincarem e jogarem bola. Quando fazia faculdade, precisava que as pessoas me pegassem no colo para entrar no ônibus. Hoje, a bateria do meu aparelho só dura quatro horas, não posso fazer um passeio e ficar longe de uma tomada mais tempo que isso — conta Eliana, que pede que as famílias levem a vacinação a sério: — Só os pais podem evitar o pior na vida das crianças. Elas dependem que eles façam o certo. A poliomielite não é uma doença como a gripe, deixa sequelas para a vida toda. São só umas gotas, não tem desculpa.