Mortes de crianças e adolescentes por intervenção policial crescem 58% em SP

Veículo: Brasil de Fato - BR
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Mortes de crianças
Foto: José Cícero/Agência Pública

“Ele morreu rendido e depois de ser arrastado para o mangue por eles. Não foi o Luiz que correu pra lá. Tem marcas de tiro no antebraço dele, o que mostra que ele tentou se defender, além do tiro no pescoço e no abdômen”, acusou a técnica de enfermagem Maria Silva, tutora de Luiz Gustavo Costa Campos, de 15 anos, morto por policiais militares em agosto de 2023, no Guarujá. A morte de Luiz foi uma das 28 que ocorreram apenas no ano passado durante a Operação Escudo, iniciada após o assassinato do cabo da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) Patrick Bastos Reis, em julho do mesmo ano.

“Algo que eu nunca vou me esquecer é que, assim que eu cheguei ao hospital, uma médica veio e me disse: ‘Corre atrás, que o que fizeram com o seu filho foi muito brutal’. Também me contaram que na delegacia houve uma pequena discussão entre policiais civis e os policiais da ocorrência [militares] por terem matado um adolescente”, lembrou Maria Silva.

Segundo a Agência Pública apurou, a morte de Luiz, um adolescente, por policiais, tornou-se uma ocorrência cada vez mais comum em São Paulo. Com a chegada do governador Tarcísio de Freitas, o estado viu crescer em 58% o número de crianças e adolescentes mortas em decorrência de intervenção policial, aponta o levantamento inédito. O número saltou de 24 óbitos em 2022 para 38 em 2023.

A Pública apurou que, em dez anos, de janeiro de 2013 a dezembro de 2023, ao todo, foram 957 crianças e adolescentes mortos em São Paulo em decorrência de intervenções das polícias Civil e Militar. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública (SSP). Mais da metade desses óbitos ocorreu na capital paulista, somando 474.

Por que isso importa?

A quantidade de crianças e adolescentes mortos em ações da polícia cresceu no governo atual, cujo secretário de Segurança, Guilherme Derrite, já criticou a imprensa por denunciar violência policial.

A maior parte dos mortos são jovens negros, e as ocorrências incluem casos com denúncias de execução e nos quais não teria havido confronto.

Na década, a maior parte das mortes envolveu policiais em serviço (66%), com 631 vítimas. A faixa etária dos 17 anos é a que teve mais óbitos causados pelas polícias: 479 vidas na década.

Questionada sobre os dados na gestão Tarcísio, a SSP, por meio de sua assessoria de imprensa, não comentou o aumento no número de mortes, mas disse que, “para reduzir a letalidade policial, a Secretaria de Segurança Pública investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas, como o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações voltadas ao efetivo. Além disso, há comissões direcionadas para análise das ocorrências, visando ajustar procedimentos, revisar treinamentos e aprimorar as estruturas investigativas”. Leia a nota completa da SSP aqui.

Segundo a pasta, o caso de Luiz Campos “é investigado pela Delegacia de Homicídios do Deic de Santos, sob sigilo judicial, e por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). Os exames periciais e do IML foram encaminhados à autoridade policial e diligências são realizadas para o esclarecimento dos fatos”.

A maioria das mortes de crianças e adolescentes causadas pela polícia no período  aconteceu pela ação de policiais militares: ao todo foram 917 óbitos (95%). Apenas 5% dos casos envolviam policiais civis.

O ano de 2014 foi o mais letal, com 153 jovens mortos por intervenção das polícias paulistas. Na época, o secretário de Segurança era Fernando Grella Vieira – nomeado pelo ex-governador e atual vice-presidente da república Geraldo Alckmin (PSB). Nesse ano, a Polícia Militar estava sob a gestão do comandante coronel Benedito Roberto Meira, nomeado em novembro de 2012. Ele ficou no cargo até janeiro de 2015. De janeiro de 2013 a dezembro de 2014, durante sua gestão, houve 245 mortes de crianças e adolescentes envolvendo ações da PM.

O hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi titular da pasta de Segurança nos dois anos seguintes (2015 e 2016), período em que os índices continuavam altos, embora menores do que na gestão Grella Vieira. Foram 137 e 128 jovens mortos, respectivamente.

Capital tem os batalhões da PM mais letais

O 38º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), da região do Parque São Rafael, na zona leste de São Paulo, é o que lidera com mais mortes de crianças e adolescentes em decorrência de intervenção policial. Na área, ao todo, foram 41 mortes, cujas idades variam entre 14 e 17 anos.

Em janeiro e fevereiro deste ano, dois adolescentes, de 17 anos, foram mortos na área do 38º em supostas tentativas de assalto. Ambas foram evitadas por policiais militares de folga, que presenciaram as ações e intervieram.

Segundo o boletim de ocorrência de um dos casos, um estojo de munições foi encontrado a poucos metros de uma motocicleta na qual estavam o adolescente morto e outro suspeito. No entanto, com a chegada da perícia, outros cinco cartuchos foram apresentados pelos agentes que preservavam o local do crime e disseram terem sido recolhidos por um outro PM que esteve mais cedo no local. Ainda de acordo com o boletim, o policial à paisana disparou contra o adolescente, que faleceu no hospital. O outro suspeito fugiu.

A Pública questionou a SSP se a conduta dos policiais em mexer na cena do crime foi ilegal, mas a pasta não respondeu a essa pergunta.

Já o segundo caso de adolescente morto na área do 38º neste ano foi na avenida Bento Guelfi, no Jardim da Laranjeira, região de São Mateus, também na zona leste. Além do adolescente de 17 anos, um catador de latinhas foi atingido por um dos disparos efetuados por um PM de folga. Em sua versão no boletim de ocorrência, o militar contou que o adolescente fazia menção ao uso de uma arma de fogo e, por segurança, optou por atirar. O jovem morreu no hospital e a outra vítima atingida sobreviveu.

O posto da vice-liderança é do 16º Batalhão da PM Metropolitano, com 37 ocorrências em sua área que abrange os bairros do Morumbi, Vila Sônia, Rio Pequeno e a comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. Um dos casos é o de Ítalo Ferreira, que culminou em cinco policiais militares denunciados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) pela morte da criança.

Os dois batalhões somam mais mortes de crianças e adolescentes em decorrência de intervenção policial do que toda a Baixada Santista, composta por sete municípios e seis batalhões, onde 71 jovens foram mortos em uma década.

Na contramão desses índices, o 7º Batalhão da PM Metropolitano não teve registro de mortes de crianças ou adolescentes durante a década. A base é responsável pelo policiamento na zona central da cidade, que inclui bairros como Bela Vista – onde está parte da avenida Paulista – e Higienópolis, com um dos metros quadrados mais caros da cidade.

A SSP não respondeu o motivo de os dois batalhões acumularem o maior número de mortes de crianças e adolescentes em decorrência de intervenções policiais.

De acordo com Juliana Brandão, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, territórios mais vulneráveis socialmente estão suscetíveis a registrar os maiores índices de letalidade. “Ver que essa ocupação do território onde se localizam as maiores ocorrências policiais são aquelas que são mais desguarnecidas do poder público. É onde cada um sobrevive de acordo com a sua própria força”, apontou.

Pretos e pardos são maioria entre os mortos

O corpo deitado sobre o banco do motorista de um carro pertencia a Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, de 10 anos, a mais jovem vítima morta por policiais paulistas. Em junho de 2016, ele e um amigo, na época com 11 anos, teriam roubado um carro dentro de um condomínio no Morumbi, zona sul de São Paulo, quando policiais militares foram acionados para tentar recuperar o veículo.

Durante a perseguição, os agentes dispararam em direção às crianças, alegando revide. Negro, Ítalo foi morto com um tiro na cabeça sem ter disparado contra os agentes, conforme constatou a perícia.

Assim como Ítalo Siqueira, a maioria das vítimas são crianças e adolescentes pretos e pardos: juntos, eles somam 68% do total de mortes. Brancos, amarelos e aqueles que não tiveram a etnia classificada são 32%.

“A gente vive num contexto brasileiro em que o fenótipo chega na frente daquela pessoa e ele, muitas vezes, é o que justifica tanto a abordagem como o tratamento, que não é um tratamento de acordo com o que a legislação prevê: um tratamento de dignidade, um tratamento de igualdade, e acaba por deixar esse contingente de adolescentes e jovens negros muito mais vulneráveis a esse tipo de abordagem policial”, avaliou Brandão.

 

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