Para acabar com cultura de palmadas em crianças, CE adota programa de afeto e abraços
Após detectar, em uma pesquisa realizada em 15 municípios, que 85% das famílias ou cuidadores, de variadas classes sociais, admitiram já ter adotado práticas de disciplina punitiva contra crianças, como castigos, palmadas ou gritos, o governo do Ceará decidiu adotar um programa tenta quebrar o modelo de educação violenta na primeira infância.
Desde o ano passado, pais que tenham filhos de até 8 anos vivendo em regiões de vulnerabilidade são convidados para o ACT (do inglês The ACT Raising Safe Kids, educar crianças em ambiente seguro), que está dentro do programa Mais Infância Ceará.
A ação, que abrange 24 cidades do estado, incluindo a capital, Fortaleza, oferece nove encontros semanais com o intuito de fazer os responsáveis refletirem sobre a forma como aquelas crianças são criadas. Cada turma tem no máximo 15 pessoas, frequentadas majoritariamente por mulheres.
Para participar, as famílias precisam estar cadastradas no Cras (Centro de Referência e Assistência Social), de acordo com Onélia Santana, secretária estadual da Proteção Social. Nesse período, ela diz, 1.200 delas já foram atendidas.
“A ideia é romper com esses ciclos de violência e com os modelos que reproduzem as agressões, como revelou a pesquisa da Pipas [Primeira Infância para Adultos Saudáveis], feita em 2019. Os pais desses pais geralmente também são criados na metodologia da palmada e da linguagem violenta.”
As reuniões do ACT são feitas em cima da escuta, diz Onélia. “Os pais falam do convívio familiar, das dificuldades em criar aqueles filhos e dos desafios. Eles refletem sobre suas ações.”
A secretária dá um exemplo. “Quando a criança se joga no chão e faz birra, perguntamos qual foi a reação da mãe ou do pai. Muitos respondem: ‘Eu bati, botei de castigo, puxei a orelha, o cabelo’. Cada um conta sua história e desabafa.”
Os encontros são guiados por 190 profissionais espalhados pelo estado, treinados nessa metodologia desde 2021. São assistentes sociais, psicólogos, psicopedagogos ou fonoaudiólogos que fazem intervenções nas falas desses pais para estimular o diálogo e a reflexão, também, por meio de dinâmicas em grupo.
“É impressionante o resultado após os nove encontros. A criança agressiva passa a ter convivência mais afetiva e respeitosa com os pais. Vira outra relação”, afirma a secretária.
A dona de casa Tania de Matos, 30, participou da turma de dezembro do ano passado. Ela não tinha o hábito de abraçar as pessoas, nem mesmo seu filho, John Ícaro, 8, que buscava nela esse afeto.
Criada pela mãe, tias e irmãs, ela diz que cresceu num ambiente em que não havia contato de carinho e cada um ficava no seu canto. Com isso, veio à tona nela uma timidez profunda. Após participar do ACT, ela percebeu que estava criando seu menino de forma distante, repetindo a experiência que ela viveu na infância.
“Eu estranhava. O John vinha me abraçar e eu não queria, eu me distanciava dele. Ele pedia carinho e eu estava sempre ocupada com o celular ou assistindo a TV. Quando ele fazia birra, a minha reação era bater nele. Cresci achando isso normal. Ele acabou se isolando também. Mas hoje somos unidos, leio para ele, criamos brincadeiras juntos, fazemos biscoitos e assistimos filmes, coisa que ele não gostava antes.”
Durante as reuniões, as mães —maioria— choram quando se dão conta que estão reproduzindo um comportamento do qual elas próprias foram vítimas, assim como seus pais, segundo Dagmar Soares, coordenadora do Mais Infância Ceará.
Isso acontece especialmente no sexto encontro, ela diz, quando a turma faz uma espécie de viagem no tempo para classificar o comportamento de seus pais, que vai de autoritário ao negligente.
Dagmar diz ter visto relatos de pais que na infância ouviram frases como “engole o choro” ou “macho não abraça homem”. Para ela, é fundamental prevenir a violência contra as crianças.
“Essas pessoas não receberam afeto. Como elas vão dar o que não têm? Muitas choram quando se dão conta que repetem aquele comportamento e assim admitem que também gritam e mandam calar a boca. É revelador.”
Na sociedade brasileira as pessoas aprendem que o amor e violência caminham juntos, segundo a pesquisadora Elvira Pimentel Parente, membro do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) e doutoranda em educação pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
“Somos criados associando educação ao ‘dar limite’. Não temos repertório diferente para fazer diferente. É preciso cuidado quando falamos de educação não violenta para não culpar só da família. Muitas vezes os parentes também foram vítimas e não fazem de outro jeito porque não sabem como fazer. Por isso a importância de políticas públicas que ajudem a encontrar esse caminho.”
Tania também viveu esse drama e reprimiu o filho. Ela afirma que John sempre foi curioso, mas que o advertia com frases como “criança não tem que se meter em papo de adulto”. Hoje, ela entende a reação do filho e sabe como lidar com suas birras ou perguntas, encarada por alguns pais como afronta.
“Com o aprendizado da ferramenta ACT, agora eu já deixo o John extravasar. Depois sento e converso com ele, pergunto o que está sentindo. Resolvemos com diálogo porque eu entendi que naquele momento eu sou o adulto da relação, eu tenho que ser a paz que ele precisa.”
O pai do menino, que antes chegava do trabalho e não ficava com ele por estar exausto, hoje dedica seu tempo a John. “É o tempinho dos dois. Tudo mudou, até a timidez deixei para trás. [O programa] foi um divisor de águas que abriu nossos olhos, mostrou que podemos ser melhor com nossos filhos do foram com a gente.”
Três fundações contribuem para o projeto, Maria Cecília Souto Vidigal, Bernard Van Lear e Porticus. Juntas, elas investiram R$ 2,3 milhões no programa cearense e são responsáveis por repassar a metodologia ACT aos servidores do estado e dos 24 municípios.
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