Saúde de crianças indígenas ainda é crítica no Brasil

Veículo: Coluna Balanço Social
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As imagens de crianças ianomâmis esquálidas e desnutridas que chocaram o mundo trouxeram à tona uma realidade até então praticamente ignorada pelo país: a da saúde das crianças indígenas. Trata-se de um problema que também é crítico em outros territórios dos povos originários no Brasil, não apenas nas terras ianomâmis.

Segundo o estudo Desigualdades em Saúde de Crianças Indígenas, do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), publicado em abril, as crianças são o público mais sensível e também o mais atingido por eventos como desmatamento, avanço da indústria e do garimpo em seus territórios, invasão de terras, crise climática e insegurança alimentar.

Para se ter uma ideia da gravidade da situação, a taxa de mortes de crianças indígenas de até 4 anos é mais que o dobro da taxa de crianças não indígenas (34,7 para cada mil nascidos vivos ante 14,2 para cada mil nascidos vivos, em 2022). A taxa de mortalidade de bebês no período neonatal (até os 27 dias) também segue 55% superior à de não indígenas (12,4 para cada mil nascidos vivos ante 8 para cada mil nascidos vivos, em 2022).

Em praticamente todos os indicadores de saúde, as crianças indígenas estão em notável desvantagem. A incidência de doenças infecciosas e intestinais, por exemplo, é mais do que o dobro entre as indígenas (14% ante 6%, em 2023), assim como doenças do aparelho respiratório (18% ante 7%, em 2023).

Consideradas evitáveis porque são, em grande parte, possíveis de serem prevenidas por ações efetivas do serviço de saúde, doenças como essas provocam 142% a mais de mortes entre crianças indígenas, em comparação com as não indígenas. Elas são uma boa medida dessa desigualdade, alerta Márcia Machado, professora associada do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e uma das responsáveis pelo estudo, em entrevista à coluna.

Segundo a pesquisadora, os problemas relacionados à saúde das crianças indígenas são multifatoriais. Há desde dificuldade de acesso a serviços médicos até desmatamento, invasão dos territórios por garimpos e uma grande rotatividade de profissionais, que é bastante prejudicial. “Criar essa vinculação com a comunidade é um fator fundamental”, diz ela. Afinal, cada etnia tem uma forma de compreender como uma mulher deve ser cuidada ou mesmo sobre a questão do parto e do desenvolvimento infantil que não pode ser ignorada.

Todos os dados do estudo foram extraídos do Datasus, sistema do Ministério da Saúde que reúne informações sobre a situação de saúde no Brasil. Infelizmente, não há na base de dados distinção de etnia, que somam mais de 300.

SITUAÇÃO DOS IANOMÂMIS CONTINUA GRAVE

“Esses dados por si só já mostram que há uma desigualdade em relação aos indicadores de saúde indígena e não indígena, mas infelizmente, acabam não mostrando situações ainda mais perversas, como é o caso dos ianomâmis”, aponta Jesem Orellana, doutor em Epidemiologia e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Amazônia há quase 20 anos, em entrevista à coluna.

Segundo ele, “quase todos os dados dos indígenas ianomâmis são uma grande incógnita”. Falta uma plataforma de dados que dê transparência à situação para a sociedade de forma geral, aponta. “Provavelmente, estamos falando da maior taxa de mortalidade infantil no Brasil. Duvido que tenha caído para abaixo de 100 para cada mil nascidos vivos, o que é um número monstruoso”, alerta.

De acordo com o pesquisador, entra governo, sai governo e a situação das crianças ianomâmis continua grave. “Foi uma iniciativa louvável do governo federal montar uma força-tarefa para socorrer os ianomâmis, mas serviu muito mais para interromper essa questão do abandono do que para recuperar a saúde das crianças indígenas”, critica, referindo-se à operação interministerial do governo Luiz Inácio Lula da Silva, logo no início do seu mandato, em 2023.

Para Jesem, a falta de uma assistência continuada é um dos grandes dramas da região. “Precisamos de ações estruturantes. Não basta montar hospital de campanha ou contratar aviões, helicópteros para retirar crianças e idosos desnutridos porque, quando eles voltam, adoecem novamente e o ciclo se repete”, afirma, frisando que esse é um problema crônico que assola a população ianomâmi há mais de 70 anos. “A invasão do território ianomâmi, a exploração ilegal de recursos naturais, em particular do ouro e da madeira, acabam piorando a situação que, historicamente, já é bem ruim”, completa.

Estudos conduzidos por Jesem e equipe entre 2014 e 2022 apontam prevalência de desnutrição crônica (baixa estatura para a idade) em cerca de 80% das crianças ianomâmis com menos de 5 anos de idade. Entre as crianças da população em geral, esse percentual é cerca de dez vezes menor, segundo o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani).

Pesquisa publicada, em 2023, pelo especialista e colegas sobre o perfil alimentar de crianças ianomâmis de 6 a 59 meses, na Amazônia brasileira, apontou outro problema, além da desnutrição: o alto consumo de ultraprocessados (32%, quase um terço da amostra) como comida enlatada, leite em pó e biscoitos.

“O padrão alimentar mais tradicional, baseado em alimentos in natura e minimamente processado, começa a dar lugar para alimentos ultraprocessados e processados”, observa o pesquisador, alertando para o que ele chama de “má qualidade da dieta”, um tipo de má nutrição que resulta em dupla carga de problemas nutricionais no mesmo indivíduo. De um lado, desnutrição crônica. De outro, excesso de peso e obesidade, favorecendo a ocorrência não apenas de doenças mais agudas, como anemia e desnutrição, mas também de doenças crônicas, como as cardiovasculares.

Fora isso, Jesem Orellana lembra que os ianomâmis são privados ainda hoje de medidas elementares do direito humano, como água potável e saneamento. “São aspectos que acabam perpetuando a situação dramática deles em pleno século XXI”, diz o pesquisador. Jesem chegou a presenciar o óbito de duas crianças em menos de uma semana por diarreia e desidratação. “Uma tortura”, desabafa, lembrando que não havia medicamento nem qualquer tipo de suporte terapêutico para elas.

Diferentemente do que ocorre nas aldeias mais populosas do Brasil, os ianomâmis estão distribuídos em centenas de comunidades pequenas, entre 12 e 50 indivíduos, o que torna o acompanhamento das equipes multiprofissionais oneroso e desafiador porque implica basicamente em visitações domiciliares. “Até hoje, nenhum governo conseguiu de forma efetiva adaptar a Estratégia Saúde da Família dentro do território ianomâmi”, lamenta.

Jesem chama a atenção ainda para a falta de políticas de segurança alimentar que respeitem a cultura indígena, o cardápio usual deles e a produção local. Destaca também o fato de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, não terem o mesmo bom desempenho entre os ianomâmis. “Eles não conseguem, muitas vezes acessar esses recursos porque estão literalmente isolados ou o utilizam para estocar alimentos processados ou ultraprocessados, o que acaba mudando o perfil de consumo alimentar dessa população”, revela.

Para o pesquisador, o ideal seria alocar esses recursos para outros programas mais sintonizados com a realidade dessa população, como os de inclusão produtiva para estimular a produção de alimentos, ou de artesanato. Segundo o estudo do NCPI, mais da metade dos adultos ianomâmis (56%) não tem nenhum tipo de renda regular, resultando em risco de fome.

POLÍTICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS

Complexa, a questão da saúde de crianças indígenas exige diferentes respostas, como investimentos em formação de profissionais indígenas e não indígenas e o aprimoramento da qualidade de dados e da gestão. “Há duas décadas, temos uma quase estagnação do peso e da altura de crianças indígenas”, lembra Márcia Machado. “Não adianta injetar recursos se não há o monitoramento e o acompanhamento da situação”, avalia.

Segundo a pesquisadora, o período em que houve melhora na saúde indígena está relacionado à implementação do Mais Médicos. Iniciativas como o Programa Saúde na Escola (PSE) também tiveram impacto, de acordo com ela.

Tanto Márcia quanto Jesem não têm dúvidas da necessidade de o Brasil usar as evidências científicas não apenas para o diagnóstico da situação, mas para a construção e o aperfeiçoamento de políticas que possam fazer de fato a diferença na vida dessas crianças. Mais do que nunca, para que elas tenham futuro, é preciso que sejam prioridade do país hoje.

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