Um pouco de sim na terra do não
O bairro Calafate, em Rio Branco, a capital do Acre, é a terra do “não”. Não tem hospital, não tem bom calçamento nem bom saneamento, não tem trabalho nem qualquer sinal de riqueza. O que sobra é um implacável calor úmido. Por isso entrou no mapa de um programa que tem por objetivo romper o ciclo da escassez e da pobreza. Há vários com o mesmo propósito que ficam no slogan. Os resultados deste já começam a aparecer porque ele caminha pela trilha certa: põe todos os esforços na melhoria das condições de crianças de zero a seis anos – etapa em que o cérebro funciona como uma esponja capaz de absorver com potência inigualável os bons estímulos. É um marco. Se o incentivo precoce é de alta qualidade, o retorno se fará sentir por toda a vida. E aí reside a esperança para a nova geração da esquecida Calafate e de outras 20 000 crianças que deverão ser contempladas no Acre até o final de 2018.
O programa Primeira Infância Acreana (PIA), criado em 2015 em uma iniciativa público-privada, parte de uma estratégia bem-sucedida em outros lugares: envolver a família inteira para chegar à criança. Isso é feito por um exército de agentes de saúde em visitas (160 ao todo durante seis anos) às casas. Além das atribuições típicas de um agente de saúde – orientar no pré-natal da mãe e na amamentação, zelar pela rotina de vacinas dos filhos –, eles alargaram o olhar mirando o desenvolvimento geral da criança, emocional, motor e cognitivo, tudo com base em uma cartilha que ensina o que esperar em cada etapa. “Os agentes foram treinados para trazer o guia à realidade das famílias”, explica Elisabete Carvalho, especialista em educação infantil na Universidade Federal do Acre e uma das coordenadoras na execução do manual e na formação desta turma de visitadores.
A família Pimentel teve a rotina revirada pelo programa. Aos 25 anos, Suelane já tem três filhos – de Maicon, 12 anos, ela engravidou na adolescência. “Era uma criança criando outra criança”, diz em uma entrevista a VEJA, no vídeo abaixo. “Se meu filho estava crescendo, estava tudo bem. Não tinha ideia do que era um afeto, um amor de mãe.” Depois vieram João Victor, 5 anos, e Azafi, 9 meses, que dá seus primeiros passos em uma casa de madeira que se distingue das vizinhas por ser verde. O pai, Welliton, 29 anos, se reveza entre o serviço noturno de vigia e o diurno em uma lanchonete, tentativa da família de melhorar a renda: “Confesso que não sabia nem como conversar e brincar com eles”.
Com o empurrão da agente que orienta sua família desde janeiro, ele aprendeu. Maicon, o flautista do clã, agradece. Adora soltar pipa com o pai. Sua explicação é simples: “Quando a gente faz isso, vejo o carinho na cara dele”. Ingressaram no dia a dia dos Pimentel hábitos que podem soar banais – mas não eram para eles. Passaram a fazer juntos as refeições, conversam à mesa, jogam bola no quintal, passeiam de vez em quando e entendem que a escola é mais do que importante. “É a chance desses meninos terem uma vida melhor do que nós tivemos”, diz Welliton, que, como a mulher, parou no ensino médio.
Um dos méritos do PIA foi partir de uma estrutura já existente e aprimorá-la, sem o costumeiro afã de se reinventar a roda. A rede de agentes da saúde funciona sob as asas do estado. Aí entraram na história duas organizações, a United Way Brasil e a fundação holandesa Bernard van Leer Foundation, que injetaram dinheiro e apoio técnico para ampliar o espectro dos agentes e, assim, as chances das crianças. “A ideia é que se torne um programa de estado e que se mantenha mesmo com a troca de governantes”, diz Neidiana Araújo, da United Way, uma das responsáveis pela implantação do projeto no Acre. O pequeno João Victor, do alto de seus 5 anos, não se queixa – ao contrário: “Sonho com uma vida muito, muito boa”.