Resquícios da escravidão

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O DF reduz em 73% o número de trabalhadores infantis domésticos, mas as meninas negras são 100% do grupo 

Por Cristina Sena

O Distrito Federal é a unidade da federação com maior queda nos números de trabalho infantil doméstico entre 2008 e 2011. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), naquele ano, havia 2.270 crianças e adolescentes nessa situação de trabalho na capital federal. Em 2011, o número caiu para 614. A redução de 73%, no entanto, não veio acompanhada da mudança no perfil das vítimas. Todo o contingente populacional ocupado com afazeres de casa é formado por meninas negras. São moradoras da área urbana do DF e têm entre 16 e 17 anos.

A capital federal repete o padrão do trabalho infantil doméstico brasileiro. As meninas são 93,7% das ocupadas nessa condição. Do total, 67% são negros. Para a assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e advogada Luana Natielle, os dados são a representação de um legado cultural escravocrata, machista e patriarcal, que estabelece como papel da mulher, sobretudo da negra, a responsabilidade pelos afazeres domésticos.

Muitas são filhas de empregadas domésticas. "Existe ainda a reprodução da relação de trabalho. A mãe atua por muitos anos em uma casa e, posteriormente, a filha ou a neta passa a ser a empregada daquela família. As meninas tornam-se sujeitos economicamente ativos, mas inseridas em uma relação de trabalho defeituosa e problemática. Enfrentam situações de vulnerabilidade social e trabalhista", destaca Luana.

"Não é possível discutir o Trabalho Infantil Doméstico sem levar em conta sua relação com a questão racial. O trabalho Doméstico no Brasil é seguramente o lugar mais específico da exclusão social e do preconceito. Além disso, é nele que são construídas inúmeras maneiras ideológicas de mascaramento desse trabalho para garotas, reforçando os papeis ditos femininos, e a postura de que é melhor criança trabalhar do que estar na rua. Essas ideias só fortalecem o imaginário sobre a pobreza e são exemplos de formas discriminatórias na direção de gênero e raça. Analisar e propor estratégias para o combate ao Trabalho Infantil Doméstico e pela garantia de direitos das adolescentes implica, portanto, no enfrentamento dessas duas questões, combatendo racismos e sexismos." (trecho do artigo Raça e gênero no trabalho doméstico de crianças e adolescentes, da socióloga Vanda Sá Barreto. O texto foi publicado originalmente no livro Crianças Invisíveis – O enfoque da imprensa sobre o Trabalho Infantil Doméstico e outras formas de exploração, publicado pela ANDI , OIT, Unicef e Cortez Editora)

 

Fragilidade – O pedagogo e representante do Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil no DF (Fórum PETI-DF), Coracy Coelho, acredita que a fragilidade financeira da família é uma das principais razões para o ingresso prematuro na atividade laboral. "O ingresso dessas meninas no trabalho doméstico é totalmente ligado a vulnerabilidade social da família. Às vezes elas assumem a responsabilidade de sustentar familiares ou compor a renda familiar", afirma. Ainda persiste o hábito de trazer meninas de regiões mais carentes, como o interior do Nordeste brasileiro, para trabalhar em residências. "Elas vêm achando que vão encontrar uma nova família, que terão oportunidade de estudar. Acabam sofrendo violações de direitos, revivem um ciclo histórico de miséria na família", ressalta.

Elas representam 4,1% das meninas com a mesma faixa etária e 5,1% da população negra de cinco a 17 anos do DF. Estão na idade de cursarem os dois últimos anos do ensino médio, ciclo da educação com maior taxa de evasão escolar. "Quando alguém se insere precocemente no mercado de trabalho perde a oportunidade de melhorar a própria qualificação por meio do estudo. Pode passar a vida inteira naquela função", argumenta.

De acordo com o documento "O trabalho infantil doméstico no Brasil – avaliação dos microdados da Pnad/IBGE (2008-2011)" do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), "o exercício de tarefas ligadas aos cuidados do lar consiste em uma das formas de exploração do trabalho de crianças e adolescentes mais comum".

Na própria casa – Uma violação quase invisível e aceita socialmente. Sob pretexto de ajudar nas tarefas domésticas, crianças e adolescentes acabam assumindo toda a responsabilidade dos cuidados com o lar e, em alguns casos, pelos irmãos mais novos. Sem tempo para fazer o dever de casa ou brincar – as atividades lúdicas são fundamentais para o desenvolvimento pleno da criança -,  essas meninas e meninos ficam expostos a acidentes, lesões por esforço e até má formação, já que estão em fase de crescimento.

Ainda de acordo com o relatório do FNPETI, entre 2008 e 2011, o contingente de crianças e adolescentes que realizavam afazeres domésticos no Brasil pouco se alterou, passando de 19 milhões de crianças e adolescentes em 2008 para 18,5 milhões em 2011. Algumas acumulavam jornada dupla. Das 3,6 milhões de meninos e meninas que trabalhavam em 2011, mais 2,1 milhões realizava atividades em casa – um total de 57,5%. A situação inverte-se quando se trata de crianças e adolescentes que não trabalham. Dos 39 milhões nessa situação, 16 milhões, ou 41%, realizava tarefas em casa. Situação semelhante ocorre no DF. Mais de 48% das crianças e adolescentes que trabalham exerciam atividades em casa, enquanto entre os que não trabalham, a taxa é de 37,2%.

Políticas públicas – Em 2011, em todo o Distrito Federal, havia 18.423 meninos e meninas entre cinco e 17 anos em situação de trabalho, indicando uma redução de 22,7% em relação ao levantamento de 2008. Os meninos ainda são a maioria: 10.798 e as meninas, 7.625. Como ocorre no trabalho infantil doméstico, 65% das crianças e adolescentes ocupados são negros. Para Coracy Coelho, do Fórum PETI-DF, a redução se deve principalmente à implementação de políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, que atrelam o recebimento do benefício à frequência escolar dos filhos. "Ainda assim, há crianças que estudam e trabalham", ressalta. O combate, segundo ele, exige outras medidas. "O monitoramento das famílias inclusas nesses programas é mínimo. É necessário também maior integração entre as secretarias de Assistência Social e Educação para saber não só se a criança está na frequentando a escola, mas se ela está trabalhando no contraturno", avalia.

Luana Natielle, do Cfemea, ressalta como medidas efetivas a criação de mecanismos de fiscalização e denúncias. "O incremento à fiscalização nas residências deveria estar previsto no projeto de regulamentação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) das trabalhadoras domésticas. Mas, sobretudo, investir no empoderamento delas. A maioria tem medo de denunciar e acreditam não ter direitos". Ela sugere a promoção de ações educativas para estimular denúncias.

Piores formas – O trabalho infantil doméstico é uma das piores formas de exploração da mão-de-obra infantil, conforme a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A medida é regulamentada pelo Decreto 6.481 de junho de 2008.

O decreto cita os riscos ocupacionais da atividade: esforços físicos intensos; isolamento; abuso físico, psicológico e sexual; longas jornadas de trabalho; trabalho noturno; calor; exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos; tracionamento da coluna vertebral; sobrecarga muscular e queda de nível.

É da nossa conta – Para mobilizar a sociedade em torno do enfrentamento ao trabalho infantil e esclarecer as condições para a contratação legal de adolescentes para o mercado de trabalho, foi lançada neste mês a campanha colaborativa nacional “É da Nossa Conta! Sem Trabalho Infantil e pelo Trabalho Adolescente Protegido”.  A nova edição da campanha, iniciada em 2012, é realizada pela Fundação Telefônica Vivo, em parceria com o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho). A campanha é apoiada pela Rede ANDI Brasil.

Patrícia Santin, gerente da área de infância e adolescência da Fundação Telefônica Vivo, explica que um dos objetivos da iniciativa é desconstruir algumas questões culturais relacionadas ao tema, como o discurso de que o trabalho é uma alternativa honesta à pobreza e que o envolvimento na exploração sexual e no tráfico são, simplesmente, escolhas de crianças e adolescentes. A campanha ainda tem como objetivo discutir o que nós, cidadãos, podemos fazer no dia-a-dia para combater o trabalho infantil. “Somos parte do problema, mas também somos parte da solução”, afirma.

 

Banco de Fontes

Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI)
Secretária executiva – Isa Oliveira
(61) 3349-5660 / 9977-1117 (Luana Reis – assistente)
www.fnpeti.org.br

Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil no DF (Fórum PETI-DF)
Coracy Coelho
(61) 8277-4693

Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea)
Assessora Luana Natielle
(61) 3224-1791

 Sugestões de leitura:

Página do FNPETI sobre o 12 de junho

Página do Cfemea sobre Trabalho e Proteção Social

Boas Práticas em Comunicação – Publicação da ANDI em parceria com a OIT

Piores Formas de Trabalho Infantil – Um guia para jornalistas – Publicação da ANDI em parceria com a OIT