A alfabetização no centro do debate educacional
Inclusão da alfabetização na lista de prioridades do governo Bolsonaro desloca discussão para a eficácia dos métodos. Outros fatores que influem na aprendizagem precisam ser considerados
Incluída na lista das prioridades para os cem primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro, a alfabetização é uma pauta que merece ficar no radar dos jornalistas de educação. O tema ganhou um órgão específico no organograma do MEC (Ministério da Educação), a Secretaria de Alfabetização, comandada por Carlos Nadalim, que deverá apresentar as diretrizes do programa "Alfabetização acima de Tudo", anunciado em matéria publicada no site da Casa Civil da Presidência da República.
Desde que a notícia chegou ao público, nos primeiros dias do novo governo, desencadeou-se um debate em torno dos métodos de alfabetização, pois Nadalim é defensor dos métodos fônicos e promete dar uma guinada na linha das políticas para a área. Ele também é autor de um método de alfabetização e mantém um site de orientação para pais, chamado Como educar seus filhos.
Em um vídeo publicado no YouTube, Nadalim fala sobre os problemas que enxerga nas atuais políticas na área da alfabetização, inclusive na BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Para ele, o principal deles seria o fato de as políticas e documentos oficiais adotarem uma base construtivista, ou seja, proporem que a alfabetização se dê em conjunto com o letramento.
A alfabetização pode ser definida como processo de compreensão do código que opera a transposição de sons (fonemas) em letras (grafemas), formando sílabas, palavras, frases etc.. Já o letramento pode ser explicado como a aprendizagem das funções sociais da língua, ou seja, a compreensão das diversas funções da língua nos mais diferentes contextos (anotações, cartas, notícias, relatórios, poemas, entre tantos outros).
Em poucas palavras, o argumento do novo secretário de Alfabetização do MEC é o de que, desde os anos 1980, os documentos oficiais induzem à uma sobrevalorização do letramento em detrimento da alfabetização propriamente dita. Esta seria para ele a causa do baixo nível de aprendizagem das crianças em leitura e escrita, pois elas se veem frente a uma diversidade de textos, sem o domínio do código que permitiria a compreensão desse material.
Nessa perspectiva, a solução em debate seria mudar o método, priorizando os chamados métodos fônicos, que enfocam o ensino do código (formação de sílabas e palavras por meio da associação de sons e letras), em detrimento dos ditos “métodos globais”, que trabalham a alfabetização simultaneamente ao desenvolvimento da capacidade de compreensão dos textos.
O posicionamento de Nadalim, alinhado com as declarações do ministro Ricardo Vélez Rodríguez sobre o status de prioridade que sua gestão atribuirá à alfabetização, tem despertado reações na área da educação.
A ABAlf (Associação Brasileira de Alfabetização) divulgou um manifesto assinado por 120 grupos de pesquisa e organizações sociais em defesa das múltiplas abordagens metodológicas para a alfabetização, chamando a atenção para os avanços que o país vem alcançando ao longo do tempo e para a complexidade envolvida no processo.
Na mídia, muitos veículos repercutiram a polêmica, entre eles a BBC, que publicou uma matéria sobre os métodos de alfabetização, e a Nova Escola, que entrevistou Magda Soares, fundadora do Ceale (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e referência no campo da alfabetização no país.
Para ajudar o jornalista que está nessa cobertura, selecionamos, a seguir, um conjunto informações e fontes para subsidiar a produção de matérias.
Dados e metas
PNE (Plano Nacional de Educação): estabelece que, até 2024, todas as crianças estejam alfabetizadas até o 3.º ano do ensino fundamental. A descrição da meta e seus indicadores de monitoramento estão disponíveis no Observatório do Plano Nacional de Educação.
Detalhe importante: embora a meta de alfabetização do PNE seja para o 3.º ano do fundamental, a BNCC, aprovada em 2017, estabelece que as crianças estejam alfabetizadas no 2.º ano do fundamental. Como a Base é o guia para as redes e as escolas montarem os currículos, o 2.º ano deverá se consolidar como a referência-limite.
ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização) e Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica): fornecem informações sobre a proficiência dos estudantes em leitura e escrita. Em 2016, último dado da ANA disponível, 45,3% das crianças possuíam nível suficiente de escrita (soma dos soma dos 32,3% no nível 3 e dos 13% no nível 4). Em leitura, a maioria não alcançou níveis esperados de aprendizagem: 21,7% estavam no nível 1 e 33% no nível 2 de proficiência. Esses dados estão disponíveis na apresentação Alfabetização no Sistema de Avaliação da Educação Básica, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.
Os resultados do Saeb 2017 mostram que 35% dos alunos do 5.º ano do fundamental atingiram o nível de proficiência esperado; em 2013, eram 27%. No entanto, a proporção de alunos que permanecem no nível básico de conhecimento também aumentou entre 2013 e 2017: passou de 36% para 40%, respectivamente. Essas informações estão disponíveis no QEdu, plataforma que sistematiza dados oficiais.
Detalhe importante: Em 2018, a ANA deixou de ser uma avaliação independente e foi incorporada ao Saeb. Assim, em 2019, haverá aplicação do Saeb, incluindo a avaliação da alfabetização. Como a BNCC estabeleceu que a alfabetização deve se completar até o 2.º ano do ensino fundamental, a prova será aplicada a esses estudantes.
Aprendizagem adequada
Como identificar se uma criança está alfabetizada? As avaliações oficiais – ANA, Saeb – classificam os estudantes em faixas de desempenho, definidas a partir de uma matriz de referência. A matriz é uma lista de habilidades que se espera que os estudantes desenvolvam. As habilidades são organizadas em faixas de desempenho.
Geralmente, quando o MEC divulga os resultados, é feita uma distribuição dos estudantes por faixa de desempenho. Então, é possível saber, em termos percentuais, quantos estudantes estão em cada faixa – ou quantos têm um aprendizado adequado ou não. Este vídeo do Inep explica o que são as matrizes de referência.
Visões e métodos de alfabetização
É possível determinar qual é o melhor método para alfabetizar? Não existe um consenso entre educadores brasileiros para esta pergunta. E, muitas vezes, em conversas com professores que atuam na alfabetização de crianças, é comum o relato de que ambos os métodos são utilizados.
Na já citada reportagem a BBC sobre o debate, a vice-governadora do Ceará Izolda Cela, que foi secretária de educação de Sobral (município cearense que ostenta indicadores muito acima da média nacional em alfabetização) afirma que a rede trabalha “tanto princípios do letramento, de Magda Soares, como material didático de abordagem fônica do Instituto Alfa e Beto, fundado por João Batista Oliveira”.
Os defensores dos métodos fônicos citam pesquisas publicadas em revistas científicas sobre o funcionamento do cérebro e o desenvolvimento infantil para argumentar em favor da maior eficácia do método. Eles postulam que a alfabetização consiste no desenvolvimento de habilidades que permitem à pessoa decifrar o código da escrita e da leitura, tornando-a capaz para utilizar a língua em sua vida. Neste post no site do Instituto Alfa e Beto, é possível esclarecer dúvidas e aprofundar a compreensão sobre o método fônico.
Em contrapartida, os especialistas e pesquisadores que se alinham com as abordagens globais defendem a superação da ideia de que a alfabetização depende de um método. Para eles, é preciso adotar metodologias e estratégias derivadas de diversos métodos distintos, se necessário, para alfabetizar.
Assim, segundo eles, dentro da visão construtivista não existe um impedimento para que professores incorporem técnicas tradicionais. A revista Letra A, publicada em dezembro pelo Ceale/UFMG, aprofunda essa questão (ver página 3).
O que está em jogo, nessa perspectiva, é a visão de que o conhecimento é construído na interação entre professor e aluno. Portanto, para os construtivistas, a formação de pessoas capazes de ler e escrever com propriedade não se limita à assimilação de determinadas habilidades.
Para além do método
A qualidade da aprendizagem depende de diversos fatores internos e externos à sala de aula e à escola. Com a alfabetização também é assim. A formação do professor é um aspecto importante e, nesse item, os especialistas dos dois lados concordam que é necessário melhorar a formação inicial dos professores brasileiros.
Entre outros fatores que influem estão a qualidade do material didático, a infraestrutura das escolas, a existência de bibliotecas. A psicomotricidade das crianças, as condições socioeconômicas das famílias, a exposição a livros, entre outros aspectos, também podem favorecer a alfabetização.
A continuidade das políticas públicas também deve ser levada em conta. Nesse sentido, vale mencionar ações iniciadas há um tempo relativamente curto e que ainda estão em fase de amadurecimento.Vale acompanhar como elas vão funcionar no novo cenário.
Um exemplo é o Pnaic (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Correta), de 2012, que reuniu estados e municípios em torno do compromisso de se cumprir a Meta 5 do PNE. Após críticas, em 2017 o Pnaic foi incorporado ao Programa Novo Mais Educação, que além de assegurar a alfabetização até os 8 anos de idade, envolveu ações para reduzir a distorção idade-série, melhorar o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e formação de professores.
A BNCC, que começa a ser implementada a partir deste ano, também é outro exemplo. A expectativa é de que, ao dar um norte para os currículos escolares (pois define, de maneira clara, habilidades a serem desenvolvidas em cada ano), o documento colabore para a aprendizagem.
Fonte: Jeduca