“Funai se transformou em Fundação Anti-indígena”, alerta dossiê sobre a atuação do órgão no governo Bolsonaro
Sob o governo Bolsonaro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem implementado uma política anti-indigenista, marcada pela não demarcação de territórios indígenas, perseguição aos funcionários concursados e lideranças indígenas, somada a uma militarização sem precedentes do órgão. Atualmente, apenas 2 das 39 Coordenações Regionais da Funai são chefiadas por servidores públicos. Nas demais chefias, a situação é: 19 delas coordenadas por oficiais das Forças Armadas; 3 por policiais militares; 2 por policiais federais; e o restante, na condição de servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública. No alto escalão, a diretoria é formada por 2 policiais e 1 militar, além do presidente, Marcelo Xavier, que também é policial.
>>> Acesse o dossiê Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro
De 2019 para cá, a Funai aumentou vertiginosamente o número de processos administrativos disciplinares (PAD), refletindo uma deliberada política institucional para disseminar medo e intimidar funcionários no ambiente de trabalho, com o agravante de que o uso constante deste instrumento implica a diminuição do tempo disponível para as tarefas finalísticas dos indigenistas que são convocados a dedicar-se a duas ou mesmo três comissões simultâneas de PAD.
Soma-se isso ao fato de pouquíssimos recursos chegarem às ações finalísticas da Funai (aquelas destinadas às ações nos territórios indígenas, com equipes de servidores especializados). No último relatório do órgão, em 2020, mostra que havia mais cargos vagos na autarquia (2.300 vagas) do que profissionais em atuação (2.071 profissionais, sendo 1.717 funcionários efetivos) – um esvaziamento inversamente proporcional ao crescimento da população indígena do País na mesma época.
Com o objetivo de mostrar os retrocessos causados por essa gestão, a INA (Indigenistas Associados – Associação de Servidores da Funai) e o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) vêm produzindo um dossiê que resulta de três anos de monitoramento conjunto. A análise detalhada de documentos oficiais, colhidos desde o início de 2019, é reforçada por depoimentos de servidores, materiais de imprensa e publicações de organizações da sociedade civil. O documento é divulgado em meio à indignação das organizações a respeito do desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian.
“Com o dossiê, queremos registrar a magnitude do estrago que vem sendo operado nas entranhas da Funai”, explica Fernando Vianna, presidente da INA. “Em vez de proteger e promover os direitos indígenas, a atual gestão da Fundação decidiu priorizar e defender interesses não indígenas, como ficou claro no julgamento do marco temporal, que seria retomado agora em junho”, acrescenta, referindo-se ao processo no STF (Supremo Tribunal Federal) que analisa a tese de os indígenas só teriam direito à terra se estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ignorando as históricas violações que esses povos sofreram ao longo dos anos.
Ironicamente, foi a Funai que, em anos anteriores, entrou com o recurso que originou o julgamento do marco. Mas, no atual governo, o órgão deu um giro de 180 graus, e agora se alinhou aos sindicatos e associações de proprietários e produtores rurais, defendendo teses jurídicas totalmente contrárias aos direitos conquistados pelos povos indígenas.
“Vou dar uma foiçada na Funai”
O ponto de partida do dossiê é o discurso adotado pelo presidente da República, que declarou ainda no período pré-eleitoral: “Se eu for eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho”. De fato, o ataque de Bolsonaro à jugular da Funai começou nos primeiros meses do mandato, com a tentativa de submissão do órgão ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que só não ocorreu após intervenção do STF derrubando a Medida Provisória criada para essa mudança.
Não conformado com a derrota, o governo entregou o órgão nas mãos do delegado Marcelo Xavier, homem de confiança de Nabhan Garcia, atual Secretário Especial de Assuntos Fundiários do Mapa, fazendeiro, liderança ruralista e notório antagonista dos direitos indígenas.
Ao longo destes quatro anos, a expressão “demarcação de territórios indígenas” simplesmente sumiu do planejamento do governo. Nem um programa orçamentário específico direcionado aos povos indígenas apareceu no Plano Plurianual (2020-2023) ou na Lei Orçamentária (2020) redigida pelo governo federal.
Para a porta-voz do Inesc, assessora política Leila Saraiva, “a atual Funai se revela um caso gritante de erosão de direitos, não somente na política indigenista, mas em ações correlatas, como a ambiental, a cultural, a de relações raciais, que também se deterioram Brasil afora”.
Na sua avaliação, o governo Bolsonaro adotou um modus operandi que se apodera das estruturas do Estado para desconstruir garantias conquistadas. Algumas análises a respeito do atual governo descrevem essa prática como infralegalismo autoritário ou assédio institucional.[1] “Após mergulharmos nos materiais para a criação deste dossiê, constatamos que essas expressões se aplicam com exatidão à Funai”, conclui Leila.
Um dos exemplos citados no dossiê é o caso do servidor que, atendendo a solicitação da procuradoria da Funai (PFE), analisou certa ação judicial de anulação da identificação e delimitação de um território indígena (TI). Por meio de uma Informação Técnica, o servidor defendeu que a Funai pedisse a anulação da sentença anulatória, mostrando à justiça os fundamentos do trabalho técnico realizado com vistas à demarcação da TI. No entanto, Marcelo Xavier não apenas discordou da proposta de contestar a sentença – aceitou, portanto, a anulação judicial da identificação da TI –, como também determinou que a conduta do servidor fosse denunciada à Corregedoria e à Polícia Federal.
O desmonte da Funai em 10 atos
- A agenda ruralista no comando
Assim que tomou posse, em 2019, Bolsonaro tentou tirar da Funai, por meio de Medida Provisória, a função de demarcar terras indígenas, assim como a de se manifestar em processos de licenciamento ambiental com impacto sobre elas. Por duas vezes, a MP 870 foi editada para que essas atribuições ficassem com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, mais especificamente, sob o comando de Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista, recém-nomeado à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do MAPA. Após o STF barrar essa estratégia de incidir sobre a Funai via MP, o plano passou a ser controlar o órgão a partir da nomeação do delegado Marcelo Xavier à presidência e outros diretores e coordenadores totalmente alinhados a Garcia e à bancada de parlamentares ruralistas.
- Saem os indigenistas, entram os militares e policiais
Sem conseguir deixar a Funai aos cuidados de Nabhan Garcia, Bolsonaro nomeou o então delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier à presidência do órgão. É ele quem aparece nesse vídeo, durante audiência com produtores rurais do Mato Grosso do Sul, dizendo: “Eu estou colocando pessoas de minha confiança nas bases agora, justamente para atender aos senhores” (8/11/2010). Xavier, que chegou a ser indicado para ser o assessor do ruralista Nabhan no MAPA, adotou um critério peculiar ao escolher sua equipe. Um dos coordenadores regionais chamado para atuar no Vale do Javari (AM) já foi gravado falando em “meter fogo” em índios isolados. Um segundo, flagrado por câmeras de segurança agredindo um indígena na sede da unidade Xavante (MT) que chefia. No Araguaia (TO), um terceiro apoiou ação policial de busca e apreensão em aldeia que resultou na morte do indígena fatalmente baleado, na presença de crianças e outros membros da comunidade. E há ainda um coordenador de Ribeirão Cascalheira (MT) que chegou a ser preso, por envolvimento com arrendamento de um território indígena.
- Perseguição aos servidores concursados
No comando da Funai, a dupla Xavier e Nabhan inaugurou uma política de perseguição e constrangimento aos servidores concursados, por meio de obstáculos ao exercício de suas funções com a abertura de inúmeros processos administrativos disciplinares e inquéritos criminais. Muitos perderam competências e acesso a processos em que trabalhavam, foram ameaçados ou até deslocados de funções à revelia.
- Burocracia para idas a territórios indígenas
A autorização de viagens de servidores a territórios indígenas antes só dependia da assinatura do presidente da Funai em casos extraordinários. Hoje, porém, o pedido precisa ser feito com mais de quinze dias de antecedência, além da necessidade de uma autorização da diretoria da instituição, além de um parecer técnico das Coordenações Gerais em Brasília, confirmando a pertinência da ação. Soma-se à morosidade proposital, que inviabiliza ações emergenciais nas comunidades, o fato de o órgão não estar pagando as diárias de viagens a trabalho, levando servidores a desistir de atender ou arcar com os custos do próprio bolso.
- Nem um centímetro a mais de terra indígena
Em 2019, nenhuma terra indígena foi delimitada (primeira etapa da criação de uma reserva), e não há meta para isso no planejamento estratégico para 2020-2023, à exceção dos casos quando houve pressão do Ministério Público Federal. Ainda assim, na montagem dos Grupos de Trabalho para atender à Justiça, a Funai atrasa o processo, propondo ações de recomposição dos grupos, remanejando servidores que já vinham acompanhando determinada situação, de forma arbitrária.
- Uso de antropólogos “de confiança”
Para encabeçar os grupos técnicos, a Funai criou a figura do antropólogo de confiança, que – segundo a própria Associação Brasileira de Antropologia – são “pessoas sem a mínima qualificação e legitimidade, inclusive sem amparo legal para coordenar e realizar estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas”. O próprio chefe de gabinete do presidente Marcelo Xavier chega a escrever, em despacho, que os coordenadores nomeados para o GT responsável pelo processo de demarcação foram escolhidos “observando critérios de oportunidade e conveniência”.
- Terras tiradas do mapa
Pela Constituição, se um imóvel privado se sobrepõe a uma terra indígena, predominam os direitos indígenas. Mas, com a criação da Instrução Normativa nº 9, em 2020, a Funai limitou esse direito apenas às terras já homologadas, fragilizando a proteção dada àquela área durante o processo demarcatório. Atualmente, o que se vê é a Funai dizendo aos interessados não indígenas: “Entre e use à vontade, pois o território ainda não está homologado. Na prática, o ato de não preservar uma área enquanto ocorre sua homologação equivale excluir terras indígenas do mapa oficial.
- Critérios para classificar o “indígena de verdade”
Criada em janeiro de 2021, a Resolução nº 4 tentou definir critérios para indicar quem é ou não indígena, a fim de regular o acesso a determinadas políticas públicas – resgatando a agenda ruralista dos “falsos indígenas”, em claro choque ao princípio da autoidentificação indígena previsto na Convenção 169 da OIT. Com a repulsa de organizações indígenas e especialistas, a resolução foi suspensa judicialmente.
- Boas-vindas a garimpeiros
Na atual gestão, segundo o Instituto Socioambiental, o desmatamento em terras indígenas cresceu 138%. Garimpeiros invasores viajando a Brasília em avião oficial expõem a conivência a toda forma de ilegalidade nas terras indígenas. Medidas infralegais criam novos arranjos sui genesis de organizações entre indígenas e não indígenas para exploração econômica das terras (inclusive com transgênicos) e, no horizonte, já temos a mineração e a exploração de madeira.
- Omissões na esfera judicial
Como era de se esperar, a Funai tem manifestado desistência formal de demandas judiciais envolvendo direitos coletivos de povos indígenas, sendo omissa em inúmeros casos de violência, invasões, massacres e corrupção. Na antítese de sua razão de existir, o órgão virou laboratório de políticas anti-indígenas sem bases legais definidas, fragilizando territórios e etnias.
Fonte: Inesc