Como recuperar a aprendizagem de alunos com deficiência

Como recuperar a aprendizagem de alunos com deficiência

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A educação inclusiva teve importantes avanços principalmente nas duas últimas décadas. Segundo o Censo Escolar de 2021, o número de alunos com deficiência matriculados em classes comuns na educação infantil mais que triplicou desde 2010, enquanto a quantidade de turmas especiais e escolas exclusivas caiu cerca de quatro vezes.

Mesmo assim, o cenário ainda está longe do ideal. De acordo com especialistas, os recursos para garantir a inclusão plena de alunos são mal distribuídos entre as escolas, que ainda enfrentam dificuldades para consolidar o atendimento educacional especializado – serviço dedicado a eliminar barreiras no ensino e garantir que estudantes com deficiência de fato tenham acesso ao conteúdo curricular.

O fechamento das escolas durante a pandemia de covid-19 contribuiu para agravar o cenário. Uma pesquisa realizada em dezembro de 2021 pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) em parceria com o Itaú Social e a Fundação Lemann revelou que, desde que as escolas reabriram, 21% dos estudantes com deficiência não haviam retornado às aulas. Os principais motivos relatados foram o receio quanto à saúde, já que alguns fazem parte de grupos de risco, e a falta de profissionais de apoio necessários.

Neste texto, o Nexo detalha o histórico da educação de alunos e alunas com deficiência e reúne recomendações de como o sistema público pode garantir o acesso às escolas e a continuidade dos estudos dessas crianças.

Das políticas públicas à sala de aula

As pessoas com deficiência enfrentaram longos períodos de exclusão e segregação até que conceitos de integração e inclusão ganhassem foco nas políticas públicas, de acordo a pesquisadora Luiza Corrêa, em texto publicado no Nexo Políticas Públicas.

Embora tenha sido incorporada à Constituição de 1988, a inclusão passou a ser priorizada em escolas regulares só a partir de 2008, com a Política Nacional de Educação Especial. O programa definiu a instauração de serviços de atendimento especializado em unidades públicas e privadas, que ficaram proibidas de recusar a inscrição de crianças com deficiência.

Os últimos Censos Escolares têm mostrado recordes anuais de matrículas de estudantes com deficiência em classes regulares em detrimento de turmas especiais separadas. Só em 2020 foram mais de 1,1 milhão de alunos matriculados em turmas comuns, o que representa 88,1% dos estudantes público-alvo da educação especial. Em 2010, o mesmo índice era cerca de 69%.

Apesar dos avanços, obstáculos ainda se fazem presentes – e foram agravados na pandemia. “Com o fechamento das escolas, a transposição do material curricular e didático pensado para crianças com deficiência, transtornos globais [do desenvolvimento] e altas habilidades foi prejudicada”, disse ao Nexo Juliana Yade, especialista em educação do Itaú Social.

Alunos com deficiência sofreram também com a falta do atendimento especializado educacional, que ajuda a garantir seu acesso ao currículo e à linguagem pedagógica. De acordo com a pesquisa do Itaú Social, Fundação Lemann e BID, 13% dos brasileiros com deficiência não tiveram nenhuma aula com recursos de acessibilidade ao longo da pandemia e quase 60% deles nunca ou quase nunca receberam o atendimento no período.

Segundo Yade, que é doutora em educação pela UFC (Universidade Federal do Ceará), a educação escolar oferecida a pessoas com deficiência já não era aplicada de forma transversal nos níveis básicos mesmo antes da pandemia. “Embora haja uma mobilização para pensar a educação especial na perspectiva inclusiva, as oportunidades de acesso, permanência e aprendizagem, na prática, não são dadas de forma devida aos estudantes com deficiência”, afirmou.

A desigualdade de oportunidades pode ser observada no aumento da evasão desse grupo conforme a idade, de acordo com Karolyne Ferreira, analista de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes. “A reprovação sucessiva do estudante por vezes gera desmotivação, perda de autoestima e abandono escolar – e isso pode ser engatilhado pelo próprio estudante, mas também pela família, pela escola e pela comunidade”, disse ao Nexo.

Outro desafio imposto nos últimos anos foi o Decreto 10.502, de 2020, que instituiu a nova Política Nacional de Educação Especial. O decreto permitiu às escolas terem a liberdade de aceitar ou recusar estudantes com deficiência.

O decreto foi suspenso no final de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal, mas especialistas contrários à medida defendem sua revogação completa. “Ele representa um retrocesso de pelo menos 30 anos nas conquistas de direitos humanos das pessoas com deficiência”, afirmou Ferreira.

Abaixo, o Nexo reúne recomendações, segundo especialistas e estudos, de medidas que o sistema público de educação precisa adotar para não deixar alunos com deficiência para trás na recuperação do aprendizado.

1. Avaliar e diagnosticar

De acordo com Juliana Yade, o primeiro passo é realizar um diagnóstico da rede de ensino em relação à educação básica e especial. A partir dessa análise situacional é que podem ser criadas as medidas de garantia do acesso e permanência escolar de estudantes com deficiência.

O relatório “Recomendações de políticas de educação inclusiva para governos estaduais e federal”, produzido pelo Instituto Rodrigo Mendes, recomenda a produção sólida de dados sobre educação especial a partir de um modelo unificado de avaliação. Segundo o documento, o tema exige um diagnóstico que seja capaz de fornecer informações além do número de matrículas de alunos com deficiência – o que é atualmente contemplado pelo Censo Escolar.

Com essa centralização, seria possível cruzar dados do Censo do IBGE e do Censo Escolar para facilitar a compreensão sobre os motivos por trás da evasão. Outra opção apontada pelo estudo seria incorporar o público-alvo da educação especial em avaliações nacionais como o Saeb e Ideb, que permitem um diagnóstico amplo da educação brasileira a partir de indicadores.

2. Garantir matrícula em turmas comuns

Ainda de acordo com o relatório do Instituto Rodrigo Mendes, o setor público deve atuar para garantir que todo estudante com deficiência seja matriculado em escolas comuns. Isso significa planejar a transição de crianças que frequentam instituições e turmas especiais para turmas inclusivas e proibir o homeschooling, que acaba por excluir da convivência escolar alunas e alunos com algum tipo de deficiência.

Também cabe ao Estado criar programas de busca ativa das crianças que não estejam frequentando as escolas.

3. Fortalecer o atendimento educacional especializado

A retomada do atendimento educacional especializado, que é garantido por lei, deve ser prioridade no retorno escolar de crianças com deficiência. É responsabilidade dos governos federal e estaduais garantir que o atendimento seja sempre complementar às atividades escolares e nunca substitutivo, já que serve como uma ponte para a inclusão de estudantes com deficiência.

Realizado no contraturno escolar, o atendimento educacional especializado deve ser aplicado na própria escola onde o aluno estuda, em salas com recursos voltados especificamente para a deficiência da criança – incluindo transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades. Karolyne Ferreira também defende a contratação de professores com perfil multifuncional.

4. Oferecer estrutura e acessibilidade

Os recursos multifuncionais das salas referem-se a equipamentos e estratégias adequadas para reduzir as barreiras enfrentadas por cada aluno, junto à equipe pedagógica. Ou seja, desde computadores e softwares assistivos até equipamentos de Braille, por exemplo. Mas só isso não é suficiente.

60% das escolas não tinham qualquer medida de acessibilidade arquitetônica em 2019 e 2020, segundo dados do Censo Escolar.

A garantia do direito à educação e a permanência escolar de crianças com deficiência passa invariavelmente pelos recursos de acessibilidade que uma escola oferece. Segundo o pesquisador Romeu Sassaki, existem vários tipos de acessibilidade com os quais a sociedade deve se preocupar.

Pelo menos quatro deles devem ser regulamentados nas escolas: acessibilidade arquitetônica, comunicacional, metodológica e instrumental. A arquitetônica diz respeito ao espaço físico, que deve incluir banheiros adaptados, rampas de acesso e portas e corredores com ampla circulação, por exemplo. A acessibilidade comunicacional conta com diversas formas de expressar a comunicação, como através de intérpretes de Libras, os próprios equipamentos em Braille e materiais digitais acessíveis.

Uma escola instrumentalmente acessível tem todas as ferramentas necessárias para que o aluno com deficiência não seja impedido de realizar tarefas. Ou seja, tem mesas e cadeiras adequadas conforme o impedimento da pessoa, por exemplo. Já a acessibilidade metodológica está relacionada às abordagens pedagógicas utilizadas nas aulas e estudos.

5. Investir na formação de docentes

A formação de docentes adequada para atender crianças com deficiência, seja no atendimento educacional especializado, seja em turmas regulares, deve ser foco dos investimentos de governo. Dados do Censo Escolar de 2020 revelam que apenas 5,3% dos professores dedicados à escolarização possuem formação continuada sobre educação especial.

A taxa cresce para 58,1% em relação àqueles que atuam com atendimento educacional especializado. Ou seja, mais de 40% dos professores que atuam diretamente no atendimento especializado não têm profissionalização na educação especial.

Karolyne Ferreira recomenda ainda a adoção do Desenho Universal para Aprendizagem, modelo baseado no planejamento pedagógico contínuo e no uso de mídias digitais. Segundo a analista de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, o modelo pode ser um grande aliado na elaboração de aulas acessíveis a todos.

“É preciso haver diversificação na apresentação dos conteúdos curriculares, nos formatos dos materiais didáticos, nas estratégias pedagógicas, na mediação com os estudantes e nas inter-relações entre o conteúdo e o dia a dia do estudante”, afirmou Ferreira.

6. Promover atuação intersetorial

Outro ponto importante é reconhecer a relação entre a vulnerabilidade e os cuidados da pessoa com deficiência. É comum que crianças com deficiência estejam exclusivamente sob o cuidado de mães que têm que sustentar a casa e acabam com dificuldades para trabalhar. Por isso, é fundamental que os governos cumpram seu papel de sustentação que passa também pelo eixo familiar. Só assim o direito à educação e o pleno acesso à inclusão e independência podem ser garantidos.

Para Juliana Yade, do Itaú Social, o sucesso das medidas do sistema educacional público depende de uma estrutura pulverizada em diferentes secretarias. “O diagnóstico começa na educação, mas não pode deixar de olhar o processo de cidadania do sujeito e o modo geral como isso se articula em sua vida”, disse. “É preciso ter essa visão integral junto às secretarias de Saúde, de Assistência Social, de Cultura, de Esportes e de Transporte, por exemplo.”

O Unicef, órgão da ONU dedicado à infância, elenca ainda a consulta a pessoas com diferentes tipos de deficiência como ação prioritária para a criação de políticas de educação especial que contemplem necessidades específicas diversas.

Fonte: NEXO Jornal