Ruralistas estão mais perto de aprovar no Senado o maior ataque aos direitos indígenas
Ataque aos direitos indígenas: aprovado na Comissão de Agricultura, PL 2903 prevê não apenas ‘marco temporal’ das demarcações, mas inúmeros retrocessos que ameaçam territórios e populações vulneráveis
Com relativa facilidade, por 13 votos contra 3 e uma abstenção, ruralistas e bolsonaristas aprovaram na Comissão de Agricultura (CRA) do Senado, na tarde desta quarta-feira (23/08), o Projeto de Lei (PL) 2.903/2023 — a maior ameaça aos direitos indígenas em tramitação no Congresso em décadas. A proposta segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, depois, para o plenário da Casa. Se for aprovada sem alterações, vai à sanção ou ao veto presidencial.
A informação que circulou no Senado é que a bancada ruralista pretende votá-la na CCJ já na semana que vem e matar a fatura no plenário até a primeira semana de setembro. “Bastidores apontam para relatoria do senador Márcio Bittar (UNIÃO-AC)”, informou a assessoria de imprensa da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Bittar é um dos ruralistas mais radicais da Casa.
Mas o caminho rumo à mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode ser encurtado: a bancada segue pressionando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também a colocar em votação um requerimento de urgência que levaria a matéria direto ao plenário.
Além disso, os senadores Randolfe Rodrigues (REDE/AP) e Jaques Wagner (PT/BA) apresentaram o RQS 744/2023, que requer que o PL 2.903/2023 seja apreciado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) para além das Comissões de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) designadas previamente.
Além do ‘marco temporal’
Na Câmara, o projeto tramitou com o número 490/2007 e ficou conhecido como “PL do marco temporal”, por pretender incluir na legislação a tese ruralista de que só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob posse das comunidades indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A proposta desconsidera, assim, o histórico de expulsões e violências cometidas contra essas populações, principalmente durante a Ditadura Militar.
Alternativamente, teriam de comprovar que estavam disputando a área judicialmente ou por meio de conflito em campo. O problema é que, até 1988, elas sequer tinham o direito de entrar na Justiça e nenhuma comunidade estava preocupada em registrar sua presença na terra.
O projeto impõe, no entanto, uma série de outras alterações consideradas inconstitucionais por juristas, o movimento indígena e a sociedade civil, como a anulação de “Reservas Indígenas” e a possibilidade de contato forçado com indígenas isolados, ameaçando a vida de grupos inteiros (veja quadro ao final da reportagem).
“A possibilidade de retirar terras já completamente regularizadas dos indígenas por suposta ‘perda de traços culturais’, como prevê o PL, é completamente absurda”, critica a advogada do ISA, Juliana de Paula Batista. “A Constituição reconheceu aos indígenas seus usos, costumes e tradições e rompeu categoricamente com perspectivas de assimilação e integração à sociedade nacional. A proposta, nesse ponto, também fere o ato jurídico perfeito e o direito adquirido dos indígenas. Ou seja, é inconstitucional sobre qualquer prisma que se analise a matéria”, destaca.
Audiência pública
A votação na CRA estava marcada para a semana passada, mas parlamentares governistas conseguiram costurar um acordo para adiá-la, realizar uma audiência pública sobre o tema, antes da sessão de hoje, e votar o projeto em seguida.
Na audiência, representantes do movimento indígena, do Ministério da Justiça, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e senadores da base insistiram que a longa lista de retrocessos aos direitos indígenas prevista no projeto e seus impactos precisariam ser melhor discutidos com os povos originários.
“Há a necessidade de ampliarmos esse debate para um formato mais adequado, principalmente na consulta aos povos indígenas do Brasil, que serão os mais impactados. Esse processo precisa ser ampliado e participativo, de acordo com o que prevê a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], sobre o direito de consulta prévia dos povos indígenas”, afirmou Kléber Karipuna, da coordenação da Apib.
“Agora continuamos os debates, principalmente com o senador Rodrigo Pacheco, que assumiu um compromisso com o movimento indígena e continuamos cobrando esse compromisso de não tramitar assoberbadamente esse PL e garantir pelo menos que ele passe por outras comissões”, informou.
Na terça (22), 310 redes, movimentos e organizações da sociedade civil publicaram uma carta, pedindo a Pacheco que cumpra a promessa de garantir um debate aprofundado sobre o tema, encaminhando o PL às comissões de Direitos Humanos, Meio Ambiente e Assuntos Sociais. O ISA, o Observatório do Clima (OC) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) assinam o documento.
Na sessão da CRA, os ruralistas ignoraram os apelos. A relatora, Soraya Thronicke (Podemos-MS), rejeitou as dez emendas apresentadas pelos senadores Eliziane Gama (PSD-MA) e Beto Faro (PT-PA) e propôs a aprovação do texto integral vindo da Câmara. Para abreviar a discussão, eles justificaram que a proposta poderia ser debatida mais profundamente na CCJ e no plenário.
Radicalização
Membros do governo e de organizações da sociedade civil que conversaram com os ruralistas nas últimas semanas, porém, afirmam que, apesar da cordialidade de Thronicke, o clima na bancada que diz representar o agronegócio é de radicalização, em especial nesse tema.
Na sessão da CRA, os ruralistas voltaram a defender que já haveria uma jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal (STF) a favor das propostas previstas no projeto, mas, ao mesmo tempo, que o Supremo estaria usurpando a prerrogativa do Congresso de legislar sobre o assunto. O objetivo do discurso é aprovar o projeto antes que o tribunal retome o julgamento da tese do “marco temporal” das demarcações, possivelmente no início de setembro.
A análise do caso arrasta-se desde 2021. Ela foi reiniciada e suspensa, incluída e retirada da pauta do tribunal várias vezes. Na última vez, em junho, foi paralisada por um pedido de vistas do ministro André Mendonça.
Thronicke reconheceu que os parlamentares estão preocupados com a decisão do STF, mas disse que os poderes da República vivem um momento mais tranquilo em sua relação e acredita que o STF “não fará uma guerra contra o Legislativo” nesse tema.
Esperança na CCJ
A facilidade com que o PL 2903 foi aprovado na CRA, o silêncio de Rodrigo Pacheco e dos governistas sobre o assunto sugerem dificuldades para que o projeto seja pautado em outras comissões. O próprio Pacheco, no entanto, emite sinais de que é melhor esperar a decisão do STF para buscar uma proposta com mais consenso.
A esperança imediata do movimento indígena e da sociedade civil, agora, é conseguir mais prazo para debates ou alterações no projeto na CCJ, onde a correlação de forças é menos desfavorável, mas ainda assim incerta, a depender do tema em votação. O colegiado é presidido por David Alcolumbre (União-AP), que tem boas relações com o governo.
Na sessão da CRA, membros importantes do governo condenaram o PL 2903. “Entendemos que esse projeto é, em todos os aspectos, nefasto para o país”, avaliou o senador Humberto Costa (PT-PE). “[Votar o projeto hoje é] uma decisão de extrema gravidade. Esperamos que o Senado tenha a sensibilidade adequada para entender que esse projeto não é bom para o Brasil, para as comunidades indígenas. Ele vai contra o que está se debatendo no mundo inteiro”, completou.
“Boa vontade do governo”
Em entrevista ao final da sessão, porém, Thronicke insinuou que a articulação política do governo no Senado demonstrou pouca vontade de influenciar a tramitação do projeto.
“O governo não interferiu exatamente”, avaliou. “Para mim não é necessário [passar por outras comissões]. Pela própria movimentação do governo, eu vi que ele não tem tanto interesse, não trouxe tantas objeções”, comentou.
Ela informou que tomou a iniciativa de procurar o líder do governo no Senado, Jacques Wagner (PT-BA), para falar do assunto e que a conversa foi excelente. Na sessão da CRA, Wagner admitiu que “trouxe poucas ideias” para a relatora. Ela garantiu que ouviu todos os interessados que a procuraram.
“Eu confesso até que me surpreendi com a boa vontade do governo em discutir sobre as indenizações, até mesmo uma proposta de permuta, caso aceite, esse proprietário, que perdeu suas terras, proprietário com títulos de ‘boa-fé’”, disse. “Então, eu me surpreendi com essa boa vontade e até mesmo com uma certa, não foi falta de articulação, mas um ‘deixar ir’ ”, afirmou.
“Eu me surpreendi com apenas três votos contrários. Eu imaginava que seria mais difícil. Isso já demonstra, pelo fato do PT ter protocolado três emendas, apenas ontem, sendo que isso já estava em minhas mãos, e à disposição para discussão e para emendar, há três ou quatro meses mais ou menos”, concluiu.
Na CRA, Wagner defendeu a necessidade de se estabelecer algum tipo de marco de tempo para as demarcações. “É claro que um país de dimensões continentais como o Brasil não pode viver em segurança jurídica territorial ad infinitum”, argumentou.
Ele ressaltou, no entanto, que é injusto pretender definir um marco de uma data específica, há mais 35 anos atrás, para a oficialização de Terras Indígenas, enquanto propostas para a regularização fundiária de terras ocupadas por não indígenas em tramitação no Congresso estabelecem um limite temporal até quatro, cinco anos atrás. “Não há equilíbrio nessa lógica”, finalizou.
Principais problemas do PL nº 2903:
– Aplica que o “marco temporal” é um critério a ser observado a todas as demarcações de TIs, inviabilizando um procedimento já demorado;
– Estabelece que a demarcação seja contestada em todas as fases do processo administrativo, o que poderá inviabilizar sua finalização e causar tumulto processual;
– Autoriza a plantação de transgênicos em TIs, o que hoje é proibido e poderá gerar a contaminação de sementes e espécies crioulas e nativas, comprometendo a biodiversidade, o patrimônio genético e a segurança alimentar dos povos indígenas;
– Permite a retomada de “Reservas Indígenas” pela União a partir de critérios subjetivos;
– Permite a implantação nas TIs de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação” independentemente de consulta aos povos indígenas afetados;
– Põe fim à política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “intermediar ação estatal de interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários;
– Nas sobreposições entre territórios indígenas e Unidades de Conservação, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área.
Fonte: Instituto Socioambiental
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