Racismo e infância: as pesquisas sobre o tema e o debate científico
O Dia 13 de Maio é formalmente reconhecido como o Dia da Abolição da Escravatura, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que teria colocado fim na escravidão no Brasil, mas na verdade não é um dia de celebração. É ainda um dia de protesto, pois não garantiu os direitos das pessoas negras no Brasil. São muitas as consequências da abolição inconclusa. Uma delas é o impacto do racismo estrutural na vida das crianças.
Por isso hoje começo aqui no blog a série especial Racismo e Infância: impactos, desafios e perspectivas, em uma parceria de conteúdo com o CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), organização que há 30 anos produz conhecimento, desenvolve e executa projetos voltados para a promoção da igualdade de raça e de gênero.
O nome da série foi inspirado em um seminário internacional realizado pela organização em março deste ano. Trago aqui as principais reflexões dos participantes do evento. Serão três posts, começando pelo de hoje, que apresenta Pesquisas sobre racismo e infância e o debate científico. Nas próximas semanas falarei sobre Experiências vividas por crianças pequenas e o Enfrentamento à violação nas instituições: o papel do poder público.
Para refletir sobre as pesquisas científicas, compartilho as falas de Cida Bento, co-fundadora do CEERT e estudiosa das relações raciais; Natalie Slopen, professora assistente de Ciências Sociais e Comportamentais na Harvard T. H. Chan School of Public Health (Escola de Saúde Pública Harvard T. H. Chan); Luciana Alves, gestora de projetos educacionais no Ceert e diretora de escola na Unifesp e Benilda Brito, ativista dos Movimentos feminista e Negro desde a década de 80.
Confira:
Cida Bento
Co-fundadora do CEERT e estudiosa das relações raciais.
“Quando discuto esse tema sempre lembro de Fúlvia Rosemberg, minha orientadora de mestrado e muito importante na minha vida. Ela dizia que o movimento negro ficava muito preocupado com as cotas no Ensino Superior, mas que não prestava atenção nas crianças pequenas e isso é muito importante. O CEERT foi aprendendo a trabalhar esse tema e a gente entende que é um período fundamental.
Dos 3 aos 5 anos, as crianças percebem as diferenças raciais e a hierarquização. Elas querem receber abraços, beijos e carinhos. Essa etapa da vida é uma etapa em que a criança tem a percepção do que é adequado e do que vai levar a uma aproximação.
Alguns estudos mostram, como Cristina Trindade nos ensinou, que as crianças negras têm mais dificuldade com seus cabelos e suas peles, porque elas percebem que não é o mais aceito ou o mais acariciado. Saber disso é bastante importante.
Uma escola acolhedora ajuda o professor que precisa entender mais sobre relações raciais. Branquitude é posicionamento político e ideológico. É visão de mundo. Ser criado como branco é completamente diferente do que ser tratado como negro.
Eu aprendi que o que faz uma criança branca não querer dar a mão para uma criança negra ou não querer que a criança negra seja médica na brincadeira, mas sempre doméstica, não é o estranhamento da cor negra; é o que ela ouviu dos adultos em que confia. Há muitos estudos sobre isso. O que muda não é o que a criança vê, mas o que ela ouve.
Isso tudo é muito importante de considerar quando se introduz a equidade racial na Educação Infantil. Nós, negros e brancos, precisamos aprender muito, porque se eu sou uma professora negra que não lido bem com meu próprio cabelo, vai ser difícil eu não prender o cabelo da criança negra. Claro que o cabelo não precisa estar sempre solto, mas deve ser preso só quando a criança quiser.
É muito importante pensar políticas públicas e privadas e o quanto precisamos aprender para tornar o país mais acolhedor.”
Luciana Alves
Gestora de projetos educacionais no Ceert e diretora de escola na Unifesp. Desenvolve pesquisas na área de educação e relações raciais, é autora do livro Ser Branco, publicado pela editora Hucitec.
“Um dos objetivos do Projeto Promovendo a Equidade Racial no Campo da Educação Infantil foi analisar a produção acadêmica sobre racismo e infância no Brasil de modo a descrever suas principais conclusões e possíveis impactos na agenda de políticas públicas.
Ao ler estudos, encontramos três áreas temáticas: racismo institucional (51 estudos), educação para as relações étnico-raciais (35 estudos) e subjetividades negra e branca (16 estudos).
Quando falamos de racismo e antirracismo, identificamos muitos problemas, pois o currículo escolar é eurocêntrico. Há muitas vivências de racismo no ambiente escolar e o sistema de proteção à infância e adolescência é ineficaz para negros. A permanência de estereótipos raciais no cotidiano das instituições que atendem as crianças geram a distribuição desigual de direitos sociais, a solidão das crianças negras e a supervalorização dos traços físicos dos brancos.
É urgente a implementação da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), mas parte dos professores ainda desconhece a Lei 10.639/2003. As pesquisas analisadas destacam que a implementação da ERER se dá especialmente por meio da literatura infantil; brincadeiras, brinquedos e outros elementos da cultura infantil. Apontam também a necessidade de incremento da formação dos professores e a consciência crítica em relação ao racismo e às suas manifestações. As entidades negras são fortes aliadas na construção de currículo que contempla a negritude.”
Benilda Brito
É ativista dos Movimentos feminista e Negro desde a década de 80. Participa do N’zinga Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte, é integrante titular na Plataforma DHESCA (Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Ambientais). Membro titular do Grupo Assessor da Sociedade Civil da ONU Mulheres. Integra a Executiva do FOPIR – Fórum Permanente de Igualdade Racial.
“De acordo com o índice de vulnerabilidade juvenil à violência, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública/2020, antes de completar 15 anos, uma criança negra tem quase três vezes mais chances de ser morta do que uma criança branca.
Quando ela sai do colo da mãe e vai para a escola,encontra um palco privilegiado para fortalecer o racismo e lamentavelmente muitas instituições têm feito a escolha por silenciar sobre esse aspecto. A escola pode inspirar projetos de vida e possibilidade de ascensão social. O racismo pode ser interrompido pela atitude do profissional ou então incentivado.
O atual momento da pandemia está provocando exclusão – uma demonstração absurda de racismo escolar onde só tem acesso à internet quem tem acesso à realidade da informática. O ambiente escolar precisa romper o epistemicídio e o movimento negro denuncia que a escola precisa trazer outras linguagens. A criança negra precisa se sentir segura, amada e acolhida. Ser criança preta significa ter maiores riscos de violência e capacidade intelectual questionada.
As crianças pretas cuidam dos irmãos mais novos e conciliam a rotina dentro de casa com o tempo de estudo. Eu não gosto do termo evasão escolar, pois o que vejo é a expulsão escolar. A maior dificuldade dos adolescentes em conflito com a lei, por exemplo, é que a escola os receba. A escola não percebe que eles também são crianças. As crianças chegam à escola com uma história de muita violência e negação. Não podemos mais tratar racismo como bullying. Racismo é racismo.
Precisamos voltar para a afropedagogia e trazer a nossa linguagem, cultura e história para combater o racismo. Quando a escola não trabalha na diversidade e silencia, está legitimando o racismo. O dia em que a ERER for a base da educação pública estaremos em outro patamar de discussão.”
Natalie Slopen
Professora assistente de Ciências Sociais e Comportamentais na Harvard T. H. Chan School of Public Health (Escola de Saúde Pública Harvard T. H. Chan) e membro do corpo docente afiliado do Center for the Developing Child (Centro para a Criança em Desenvolvimento) da Universidade de Harvard.
“As persistentes disparidades étnicas e raciais na área da saúde da criança estão presentes no mundo inteiro e a ciência do desenvolvimento na primeira infância fornece uma estrutura científica robusta para compreendermos como o racismo gera desigualdades na saúde. As formas estruturais, culturais e interpessoais de racismo são centrais para entendermos as disparidades. Políticas e programas com foco no confronto ao racismo nos primeiros anos de vida fazem-se de urgente necessidade.
Dados de 2018 dos Estados Unidos mostram que as taxas de mortalidades infantil mudam de acordo com a raça e em outros países a história é muito parecida. Enquanto a taxa de mortalidade entre brancos é de 4,6 para mil nascidos, a taxa de mortalidade entre negros é de 10,8 para mil nascidos.
No Brasil, a taxa de mortalidade de brancos em meio urbano é de 17,6 para mil nascidos, contra 22,2 negros para mil nascidos. Já no meio rural, a morte entre brancos é de 25,3 para mil nascidos entre brancos e 31,6 para mil nascidos entre negros.
A desigualdade se repete entre os índices de mortalidade de mães afrodescendentes e mães brancas, assim como aqueles relacionados à educação, renda e saúde.
A primeira infância é a base para o desenvolvimento infantil saudável, impactando na conquista educacional, econômica e na saúde física e mental. O racismo estrutural e institucional impactam diretamente nessa base para o desenvolvimento saudável, levando a inúmeras desvantagens que resultam em uma pior saúde, como o estresse.
Para interromper o ciclo intergeracional de disparidades na saúde de crianças negras é preciso promover o enfrentamento à discriminação interpessoal e ao racismo cultural. É preciso priorizar pesquisas na construção de uma base de evidências, abordando questões territoriais como vizinhança e moradia, apresentando a quebra de estereótipos na mídia para influenciar positivamente as crianças e desenvolver estratégias de redução de preconceito racial entre adultos que trabalham com elas.”