Palmadas comprometem desenvolvimento cerebral de crianças, mostra estudo
A palmada, punição corporal muitas vezes aplicada por adultos em crianças, causa impactos negativos sobre o funcionamento cerebral similares aos provocados por agressões físicas mais violentas e abusos sexuais.
Essa é a conclusão de um estudo novo que foi publicado nesta sexta (9) pela “Child Development”, um dos mais prestigiados veículos científicos na área de desenvolvimento infantil.
Segundo os autores do trabalho, é a primeira vez que fica comprovada a ligação entre palmadas e reações neurais exageradas à percepção de risco no meio ambiente.
A descoberta preenche uma importante lacuna na pesquisa acadêmica sobre as possíveis consequências de diferentes formas de violência contra as crianças.
Estudos já haviam mostrado que tanto palmadas quanto formas mais severas de agressão, como espancamento e abuso sexual, impactavam o comportamento, a aprendizagem e a capacidade de adaptação, ainda que em intensidades diferentes.
Mas, até agora, só havia a comprovação de que essas mudanças eram causadas, de fato, por alterações no funcionamento cerebral nos casos de violências mais lesivas física ou psicologicamente.
“Os estudos anteriores [sobre palmadas] olham para diferentes avaliações educacionais ou registros do comportamento, mas sem medir o desenvolvimento cerebral e biológico das crianças”, disse Jorge Cuartas, um dos autores do novo estudo, em entrevista à Folha.
“Descobrir que a punição corporal pode afetar o desenvolvimento do cérebro é muito forte. Por isso, decidimos fazer esse estudo”, afirmou o economista.
Cuartas está terminando seu doutorado em educação na Universidade Harvard e tem pesquisas anteriores sobre os efeitos de punições corporais, inclusive na Colômbia, seu país natal.
Os outros autores do estudo são David Weissman e Katie McLaughlin, ambos também de Harvard, Margaret Sheridan, da Universidade da Carolina do Norte, e Liliana Lengua, da Universidade de Washington.
Diretora do laboratório de estresse e desenvolvimento de Harvard, McLaughlin é a principal formuladora de um modelo que já indicava a alta probabilidade de que vivências adversas —incluindo palmadas e testemunho de violência— teriam impacto parecido sobre o desenvolvimento emocional e neural, variando apenas em intensidade.
A contribuição do novo estudo —intitulado “Punição corporal e respostas neurais elevadas a ameaças em crianças” (em tradução livre)— é comprovar, na prática, parte do que McLaughlin havia previsto na teoria.
“O modelo dizia que toda exposição à violência, provavelmente, produziria efeitos em áreas semelhantes do cérebro, mas que eles seriam escalados de acordo com o nível da violência”, disse Cuartas.
As áreas mencionadas por ele se concentram no córtex pré-frontal, envolvido em várias funções que incluem a habilidade de prestar atenção, controlar emoções e impulsos, fazer distinções de ordem ética e moral, tomar decisões e reavaliar opiniões após o processamento de novas informações.
A metodologia usada pelos pesquisadores envolveu mapear, por meio de exames de ressonância magnética, as respostas neurais de diferentes pontos dessa região à percepção de ameaça.
A amostra final foi composta de 147 crianças, de raças e contextos socioeconômicos variados, com idades entre 10 e 12 anos, que têm sido acompanhadas, desde os três anos, em um estudo longitudinal mais amplo nos Estados Unidos.
Elas foram divididas em dois grupos, cujos resultados foram comparados. Um deles foi composto pelas 40 crianças que reportaram ter recebido palmadas algumas vezes ou muitas vezes. O outro foi formado pelas 107 que afirmaram ter sido alvo desse tipo de punição corporal apenas uma vez ou nunca.
Os resultados de outras 26 crianças também vítimas de agressões físicas mais severas e abusos sexuais foram avaliados, mas não incluídos na análise dos efeitos de palmadas.
Os participantes foram expostos —durante as sessões de ressonância magnética— à exibição de sequências de fotos dos rostos de atores com três grupos de expressões faciais diferentes.
Um deles era de rostos que demonstravam medo, como, por exemplo, a aparência de choro iminente. Outro era de faces neutras, que não esboçavam nenhuma reação específica de alegria, tristeza ou temor. Um terceiro apresentava faces totalmente embaralhadas por computadores, que mais pareciam um código de barras do que um rosto humano.
As faces bagunçadas funcionaram como uma espécie de contraponto entre as duas expressões bem definidas, permitindo aos pesquisadores avaliar como a resposta cerebral das crianças oscilava na transição desses rostos “ilegíveis” para os demais.
Os resultados —dos quais foram descontados efeitos que poderiam ser atribuídos à privação por renda, idade e sexo— mostraram que as crianças submetidas a palmadas reagiram à percepção de medo de forma mais intensa do que as demais.
Dependendo da região cerebral analisada —e da função que ela exerce— isso ocorreu de maneiras distintas.
No balanço, a área que regula reações emocionais e reavalia riscos (chamada giro frontal medial) reagiu mais fortemente a faces temerosas do que às expressões neuras no caso de crianças que apanhavam.
Mas isso não aconteceu por uma resposta excessiva dessa região cerebral nas vítimas de violência às faces temerosas, na comparação ao ocorrido nas demais crianças. O resultado foi consequência da menor ativação dessa parte do córtex pré-frontal das crianças que recebiam palmadas às expressões que denotavam neutralidade.
Segundo os pesquisadores, isso pode ter ocorrido porque, à primeira vista, faces neutras costumam ser lidas como ambíguas.
Essa ambiguidade costuma causar receio nas crianças inicialmente. Mas, em seguida, o cérebro infantil consegue “processar” a informação melhor e concluir que não há o que temer, já que a face não exprime pânico, mas neutralidade.
Essa interpretação, porém, exige um esforço cerebral que ocorre em menor intensidade em crianças que apanham, indicando que elas têm dificuldade em ajustar suas expectativas, tendendo a superestimar a existência de riscos em seu entorno.
Já a parte do córtex pré-frontal envolvida em funções como a memória autobiográfica e a compreensão de sentimentos e intenções de outras pessoas foi mais ativada pelas faces temerosas e responderam menos às expressões neutras no caso dos participantes do estudo que relataram receber palmadas em relação aos demais.
Segundo os autores do estudo, isso indica que as crianças que apanham mobilizam mais recursos cerebrais para entender a fonte do temor de outras pessoas, por terem se acostumado a ser vigilantes a ameaças potenciais no ambiente.
“Essa maior vigilância pode ser adaptativa no curto prazo (…) ao permitir que crianças expostas a violência identifiquem potenciais riscos prontamente”, ressalta um trecho da pesquisa.
“Mas essas respostas tendem a causar má adaptação no longo prazo, já que podem promover reatividade emocional elevada, dificuldades na regulação emocional, tendências hostis e maior risco de psicopatologia”, diz o estudo.
Na conclusão, os autores afirmam que seus resultados sugerem que as palmadas podem influenciar a resposta neural de crianças a “deixas emocionais de uma forma qualitativamente similar a formas mais severas de violência”.
Os pesquisadores ressaltam que, como é comum em estudos científicos, seu trabalho tem limitações. Uma delas é o fato de que não foram avaliados —devido ao tamanho da amostra— a severidade das palmadas ou a identidade de quem as aplicava.
Mas, segundo Cuartas, o passo dado por eles é significativo pois pode ajudar a influenciar tanto o comportamento de famílias quanto as políticas públicas e legislações nacionais relativas a punições corporais.
Senado aprova ‘Lei da Palmada’
Estudos anteriores do economista e de outros pesquisadores contribuíram, por exemplo, para a recente aprovação de uma lei contrária a punições corporais na Colômbia.
Atualmente, 62 países têm legislação clara, já promulgada, proibindo qualquer forma de punição a crianças em qualquer ambiente.
O Brasil deu esse passo em 2014, ao aprovar a Lei Menino Bernardo, popularmente conhecida como lei da palmada.
No entanto, outras 137 nações ainda não baniram, totalmente, a punição física, segundo a “End Corporal Punishment”, iniciativa de uma parceria público-privada global para o fim da violência contra crianças, apoiada pela ONU, por governos e empresas.
Antes de ter filhos, a então advogada Elisama Santos, 36, acreditava em uma ideia que se tornou comum em muitas sociedades: a de que palmadas eram um método aceitável e eficiente de educação comportamental.
Até que, no fim da gravidez de seu primeiro filho —Miguel, hoje com 8 anos— viu uma mulher aplicando essa punição a uma criança dentro de um supermercado.
“Meu olhar cruzou com o olhar da criança, que chorava, percebi a dor dela e senti uma dor imensa. Minha memória resgatou momentos da minha infância em que, ao apanhar, eu olhava para a porta, esperando que alguém aparecesse”, diz.
Santos conta que teve uma crise de choro e prometeu para o filho, ainda na barriga, que nunca bateria nele.
“Foi a promessa mais difícil que fiz na minha vida, porque tenho uma personalidade raivosa e fui educada em um contexto diferente. É difícil quebrar esse ciclo”, afirma.
Para aprender a se controlar, se formou em psicanálise e acabou se tornando palestrante, consultora parental e escritora. É autora dos livros “Educação não violenta” e “Por que gritamos”, ambos lançados pela Paz e Terra.
Santos diz não se surpreender em nada com os resultados da pesquisa, recém-publicada pelo periódico “Child Development”, que mostra os efeitos nocivos da palmada sobre reações do cérebro.
O problema, segundo ela, é que, mesmo com a proibição legal da palmada, essa forma de punição corporal ainda tem amplo aval social no Brasil.
A jornalista Paula Perim verificou isso na prática, durante seu mestrado na PUC-SP, ao fazer uma análise do discurso de comentários de leitores em reportagens sobre o tema, compartilhadas no Facebook pela Folha e por O Globo.
A semente dessa ideia surgiu alguns anos antes, quando Perim trabalhava na revista Crescer.
“Em 2010, quando a lei da palmada começou a ser discutida no Brasil, me impressionava muito o que as pessoas diziam sobre o assunto, manifestando opiniões normalmente favoráveis a esse tipo de punição”.
Por se dedicar a temas do desenvolvimento infantil, a Crescer já havia feito, na época, muitas reportagens sobre estudos que mostravam os efeitos deletérios da violência física contra crianças.
“Mas muitas pessoas continuavam defendendo a palmada, como se fosse algo menor do que outros tipos de violência”, afirma Perim, que hoje é diretora de comunicação da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, dedicada à melhora da qualidade da educação infantil.
Perim decidiu investigar o tema no mestrado, concluído em 2020, tentando entender os discursos antagonistas que prevaleciam a respeito da lei da palmada e do castigo físico como “forma de educação”.
Ela analisou comentários de leitores em posts que os dois jornais fizeram em suas páginas do Facebook, compartilhando suas reportagens sobre a legislação ou castigos físicos em crianças, entre janeiro de 2010 e outubro de 2019. No caso da Folha, a análise se estendeu até fevereiro de 2018, quando o jornal deixou de publicar conteúdo na rede social.
Após descartar textos não relacionados ao tema, Perim analisou 374 comentários, a vasta maioria favorável às palmadas e contrária à lei.
Uma das conclusões da pesquisa foi que a discussão, de fundo, entre os leitores não era a legitimação da palmada, em si, mas a ideia de querer “filhos bem educados”.
“Percebi que o principal objeto de valor do discurso é a formação de cidadãos de bem”.
Em defesa dessa formação, ainda são comuns frases como “eu apanhei e foi importante para a minha formação” ou “apanhei na infância e ficou tudo bem”.
Segundo especialistas, fatia expressiva da sociedade ainda diferencia a palmada de formas mais severas de violência, que ganham destaque, especialmente, quando ocorrem mortes trágicas, como o caso recente do menino Henry Borel, por suspeita de agressão física.
“Essa nova pesquisa é importante porque coloca a palmada no patamar de violência que ela deve ter”, diz Perim sobre o estudo que mostra o efeito da punição sobre o funcionamento cerebral.
Segundo Jorge Cuartas, um dos autores da pesquisa, o discurso de que a palmada pode ter efeitos pedagógicos positivos não é embasado em evidências científicas. Ao contrário. Ele cita uma meta-análise de estudos conduzidos nas últimas seis décadas, concluída em 2016.
“Os estudos analisados olharam efeitos das palmadas sobre diferentes comportamentos, como agressão, consumo de álcool na vida adulta e dificuldade de expressar sentimentos.”
“Os autores da meta-análise concluíram que não havia uma única pesquisa mostrando algum efeito positivo”, diz o economista.
Cuartas espera que sua pesquisa recente contribua para uma maior reprovação social à palmada.
“É importante que as pessoas saibam que as palmadas têm consequências ruins”, diz.
Tanto ele quanto os demais especialistas ouvidos pela Folha ressaltaram que também é crucial que pais e demais responsáveis saibam que é possível mudar seu comportamento e reduzir os possíveis riscos associados às palmadas.
“Inúmeros estudos já mostraram a enorme plasticidade do nosso cérebro”, diz Elisama Santos.
Mas é importante, segundo ela, que pais e mães que recorrem a punições físicas queiram mudar.
“Não é fácil. As pessoas, normalmente, me dizem: nossa, mas é muito difícil. E eu sei. é difícil para mim também. Mas bater no filho —e lidar com a culpa e as consequências disso depois— também é difícil”, diz.