De medo de gente a prejuízo afetivo, pandemia atinge crianças em cheio

Veículo: Metrópoles - DF
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Para uma legião de crianças que nasceram nos últimos anos, a pandemia da Covid-19 tem sido a primeira experiência de contato com o mundo e representa uma ligação muito mais restrita e limitada do que na geração imediatamente anterior. No Brasil, de janeiro de 2020 até agora, quase 3 milhões de nascimentos foram registrados – 2,6 milhões no ano passado e 336,7 mil este ano, segundo dados do Portal da Transparência do Registro Civil. São crianças que nasceram e estão crescendo em uma realidade mascarada, de sorriso escondido e de limitações que dificultam a construção das relações sociais, tão necessárias nessa fase das primeiras descobertas, e dos laços afetivos, até mesmo com os avós – considerados do grupo de risco e, portanto, afastados, em muitos casos.

A tendência é que as marcas e as lembranças dessa vivência inesperada perdurem. Especialistas temem

desenvolvimento de ansiedades, de transtornos obsessivos compulsivos (TOC) ou mesmo de uma regressão comportamental. E é isso que preocupa mães e pais, que já conseguem identificar nos pequenos as consequências do isolamento e da falta de contato com as pessoas. Henry, de 2 anos e 9 meses, sente medo e fica assustado quando vê gente reunida. Matteo estranha o colo dos avós, chora e só se tranquiliza quando a mãe está por perto. Antônio fica eufórico com o som do caminhão de lixo chegando. É a única hora do dia em que ele interage, pelo portão, com pessoas fora do ambiente de casa. Ele dá tchau e chora, em seguida.

Esses foram alguns dos relatos ouvidos pelo Metrópoles de pais e mães de crianças recém-chegadas ao mundo. No caso, um mundo pandêmico que já vai para o segundo ano de enfrentamentos e restrições. A falta de socialização e contato, até mesmo com outras crianças, coloca essa geração em uma condição peculiar, que deve ser observada e acompanhada de perto.

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Dificuldades

A neuropsicóloga infantil Fernanda Bioni explica que, para um adulto, é mais fácil lidar com a falta de interação social, pois é possível recorrer ao telefone, ao computador e aos meios digitais, em geral. Para uma criança muito pequena, não. “É a interação social que faz a criança se desenvolver. É uma necessidade humana que fortalece a pessoa emocionalmente. Elas precisam do olho no olho, e isso foi retirado delas”, diz.

Com 4 meses de vida, em geral, uma criança começa a vocalizar, sorrir e expressar reações. Normalmente isso é consequência do contato com as pessoas. Bioni aponta que, quando essa relação é restrita, gera-se timidez, a criança fica com medo de conversar ou receosa na presença de desconhecidos, e isso pode ocasionar um futuro marcado por ansiedades sociais.

“Crianças precisam de previsibilidade e de muito afeto para se desenvolverem bem. Mas como podemos ter previsibilidade neste cenário? A gente não sabe quando tudo isso vai passar”, pondera a neuropsicóloga, que já percebe no dia a dia do consultório algumas mudanças comportamentais características do momento.

Entre os mais novos, ela relata que tem lidado bastante com casos de regressão comportamental. Crianças que já tinham feito o desfralde, por exemplo, voltaram a fazer xixi na cama. Já entre os acima de 5 anos, percebe-se irritabilidade, silêncio e certa obsessão pelo uso de álcool em gel. “Em uma sessão de 20 minutos, observo que algumas chegam a usar de seis a sete vezes”, conta ela. Um mundo inédito, com implicações também desconhecidas na percepção dessa nova geração. A família teve de se adequar ao momento. A mãe, Vanessa Rebouças, diz que, quando teve o filho, não imaginava que a pandemia fosse virar o que virou.​

Quando Matteo Christian Rebouças nasceu, em 5 de março do ano passado, em Goiânia, nenhum caso de Covid-19 havia sido confirmado, ainda, em Goiás. Ele foi uma das 79.449 crianças registradas no estado, em 2020. Sete dias depois, viria a notícia da primeira confirmação de contágio pelo coronavírus em território goiano.  A mãe, representante comercial Vanessa Ferreira Rebouças, não imaginava que a pandemia fosse chegar a tanto, mas, já no nascimento, com as primeiras notificações de casos no Brasil, alguns cuidados foram tomados. Matteo só conheceu o avô dois meses depois de nascido. Até hoje, mais da metade da família, entre primos e tios, ainda não o conhece.

Ele completou 1 ano de vida em pleno auge da pandemia em Goiás. O cenário, hoje, é marcado pela ocupação quase total dos leitos de UTI, tanto no sistema de saúde público quanto no privado, e pelo crescimento do número de mortes. A festa foi restrita, sem os avós, só com os pais e mais quatro pessoas. “Até hoje, ele não vai no colo dos avós. Ele chora. Chega a ser cômico, porque era para ser uma relação totalmente diferente, mas ele ainda não se acostumou com essas pessoas. Ele não fica sozinho com elas. É como se fossem desconhecidas para ele, quando, na verdade, vô e vó são como pai e mãe”, descreve Vanessa.

 

O carteiro e o caminhão de lixo

A festa de 1 ano do pequeno Antônio Araújo França virou notícia no Brasil. A decoração do bolo com fotos de alguns dos infectologistas mais famosos do país chamou a atenção. O pano de fundo dessa história é a vida de um bebê que, por ter o primeiro ano de vida marcado pela pandemia e pelo isolamento, até hoje não conheceu um outro bebê da mesma idade.

A mãe, produtora cultural Sílvia Amélia de Araújo, conta que as interações sociais do filho, fora do ambiente do lar, são com o carteiro e com os trabalhadores que passam recolhendo o lixo. “Ele fica eufórico quando eles chegam. O carteiro fala com ele, e ele fica muito animado de ter qualquer outro contato com pessoas”, relata. O lamento é pelo choro que vem depois. “Tonico”, como ele também é chamado pela família, demonstra-se ávido pelo mundo que vê do lado de fora do portão de casa. Neste um ano, o contato com a vó materna foi só na primeira semana de vida. “Ainda não sei como vai ser. A relação afetiva dele com a minha mãe vai ser totalmente diferente da relação dela com os meus sobrinhos, por exemplo”, acredita. Ele vive com a família na Cidade de Goiás, antiga capital goiana.

Veja o relato de Sílvia:

Medos

Boa parte da ainda curta vida do garoto brasiliense Henry Krawczyk, de 2 anos e 9 meses, foi marcada pela pandemia do novo coronavírus, o que fez com que a criança desenvolvesse certos receios.

Mãe do garoto, a professora Jéssica da Silva Teles Krawczyk, de 30 anos, conta que, inicialmente, Henry ficou bastante assustado, devido à pandemia, e não queria falar com ninguém.

“Ele desenvolveu um certo receio ao barulho. Então, quando nos juntamos e tem um pouco de barulho, ele acha ruim e chora”, relata a mãe, que mora com o marido e o filho em Brasília.

Se, por um lado, as crianças são normalmente poupadas dos desfechos físicos negativos da pandemia, por outro, são consideravelmente atingidas no aspecto neuropsíquico. É o que explica o médico psiquiatra Luan Diego Marques.

“A escola tem um grande papel como suporte social e averiguação na garantia dos direitos da criança. Quando limitamos a criança deste ambiente, podemos ter o que chamamos de ‘crianças invisíveis’”, ressalta.

As brincadeiras de Henry foram sempre muito solitárias, uma vez que a mãe é professora e, no ano passado, teve que dar aula on-line e o pai é profissional de segurança pública, serviço essencial, o que o força a trabalhar presencialmente.

“Quanto estamos em casa, cantamos e dançamos as músicas que ele gosta, procuramos ler livros infantis, fazer brincadeiras pedagógicas e até mesmo ensinar algumas coisas”, detalha.

Henry já conta até 20 em português e até 10, em inglês. Também é “bilíngue” quando o assunto é cores e sabe todas as formas geométricas de cor. Aos fins de semana, tem ido para as chácaras dos avós.

“Precisamos ajudar os jovens a se manterem conectados socialmente, tanto quanto possível, de maneiras seguras. A proximidade social e emocional é mais importante do que nunca”, explica Marques.