Os desafios das crianças que nascem no meio da pandemia

Veículo: Época Negócios Online - RJ
Compartilhe

Quando a filha de um ano de Rachael Powell finalmente conheceu os avós, após meses de distância imposta pela pandemia de covid-19, ela “fez um escândalo”, já que “não sabia quem eles eram”.

A britânica de 39 anos estava de licença maternidade quando o primeiro lockdown foi anunciado em março de 2020 na Inglaterra e ela teve de ficar reclusa.

“Era uma época em que eu queria muito frequentar cafés, conhecer outras mães e fazer atividades voltadas para mães e bebês — e tudo parou de repente.”

“Eu me senti culpada por ela não participar de nada disso, por não viver nenhuma dessas interações”, acrescenta.

O possível impacto do distanciamento social sobre o desenvolvimento dos pequenos tem preocupado pais no Reino Unido, que entrou recentemente no terceiro lockdown para tentar conter a disseminação do novo coronavírus.

Escolinhas foram fechadas, reabertas e fechadas novamente. Grandes encontros que reúnem mães e seus bebês parece um luxo desfrutado em um passado distante.

Powell diz que toda a situação — que tirou dela coisas simples, como as visitas dos avós de Emmeline — a faz sentir como se vivesse uma licença maternidade pela metade.

“Ela só berrava, fez um escândalo em casa”, conta. “Eu não podia nem deixá-la no mesmo cômodo que eles. Ela não sabia quem eles eram.”

Emmeline finalmente teve alguma interação com outros bebês quando creches e escolas foram reabertas, mediante o cumprimento do protocolo de segurança estipulado pelo governo. A experiência, contudo, não foi igual à que o irmão mais velho, Charlie, hoje com sete anos, teve quando estava na mesma idade.

“No começo foi bom, porque ela participou das atividades, das músicas. Mas, como mãe, não consegui participar de nada — eu tinha de ficar sentada longe de todo mundo, inclusive de outras mães.”

“E, à medida que Emmeline foi ficando mais velha, ela passou constantemente a tentar sair do tapetinho para interagir com outras crianças, e tudo passou a se resumir a tentar mantê-la no tapetinho.”

Liz Osler, que administra a escola de música Little Groovers, localizada na região metropolitana de Manchester, concorda que as aulas sob os protocolos contra a covid-19 são “o contrário do que é a essência dessas atividades”.

“As crianças são incentivadas a socializarem, a escolherem seus instrumentos. Agora, elas recebem o instrumento em uma sacola e têm de manter a sacola o tempo inteiro no tapetinho.

Ela acredita, entretanto, que continua valendo a pena oferecer as aulas, que acabam sendo alguma distração para os pais nesses tempos difíceis.

Em geral, os adultos ficam felizes “por poderem fazem algo normal, ainda que não seja exatamente normal”.

Como dona do negócio, Osler conta que teve um aumento de custos considerável nos últimos meses, já que teve de comprar novos equipamentos para se adaptar aos protocolos e alugar espaços maiores para comportar os alunos dentro da distância recomendada.

Também tem sido mais difícil se concentrar. “Antes da covid, eu vivia o momento… e agora música é a última coisa na minha cabeça, já que tudo o que eu faço é pensar na segurança de todo mundo.”

“Não vejo a hora de as crianças poderem socializar de novo, fazer bolhas de sabão e curtir música juntas. Você só quer avançar o tempo para o momento em que tudo isso tiver acabado.”

A venezuelana Delimar Recio, que também vive em Manchester, conta que a pressão de policiar as interações da filha de apenas um ano é difícil.

No início, foi frustrante ver toda a rede de apoio que tinha à disposição lhe ser subitamente removida por causa do primeiro lockdown. Depois, a flexibilização das restrições e a curiosidade natural de um bebê da idade de Sabrina trouxe outro tipo de estresse.

“Ela queria tocar os outros bebês, engatinhar até eles”, conta ela, que tem 31 anos.

“Eu tinha que segurar, e ela chorava… até que pensei: ‘qual o sentido disso se ela vai ficar o tempo todo contrariada?'”

O psicólogo infantil Paul Kelly afirma que as interações são essenciais para o desenvolvimento dos bebês e que, assim, a pandemia de covid tem tido um impacto importante sobre os pequenos.

“Somos criaturas sociais, nosso cérebro está pré-programado para isso”, ressalta. “Quando o cérebro da criança é estimulado, ele cresce.”

Kelly acrescenta que a nova dinâmica também tem impacto sobre os pais, que perdem um elo de “apoio mútuo”.

“Uma reunião informal tem enorme benefício tanto para os pais quanto para as crianças”, exemplifica.

Para ele, as pessoas deveriam “aproveitar as oportunidades que têm, sempre que elas aparecerem” durante esses tempos de incerteza e focar em “como estimular o desenvolvimento do bebê em vez de ficar pensando em como ele pode estar sendo prejudicado”.

Passados alguns meses mais difíceis, tanto Powell quanto Recio dizem ter se surpreendido o comportamento mais recente das filhas.

Emmeline, que não largava a mãe quando começou no berçário e vivia “chorosa”, se acomodou melhor depois de uma ou duas semanas. Sabrina, por sua vez, agora está mais acostumada a videochamadas e vem lentamente se habituando a conhecer pessoas novas.

“No primeiro lockdown, ela chorava sempre que via uma nova pessoa”, diz Recio. “Agora está mais simpática.”

Temas deste texto: Epidemias