Trabalho infantil e orçamento público: investimento na manutenção das desigualdades
E duas crianças se encontraram
Uma dentro, outra fora do carro importado
Que estava ali sorridente
Havia passeado num natal abençoado com pai, mãe, parentes
No banco traseiro, vários presentes, diversas cores, fitas reluzentes
No encosto do banco tem até um vídeo game
Hipnotizada não desviava o olhar a frente
Mal notou a outra criança
Parada na janela, que ao ver a cena ficou alerta
Nunca tinha visto uma tela
Tão pequena, suspirou um encanto de uma forma tão serena
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro importado
O local? Precisamente um semáforo. Tão vermelho como o rosto do João queimado
João olhava no carro como se fosse um espelho
Equilibrava balinhas, chicletes e um pouco de dinheiro
Nos poucos segundos da cena João sonhou com o vídeo game que nunca jogou
Se perguntou: se eu fosse ele e se ele fosse eu?
E o mesmo respondeu: Seria tão bom experimentar o Danone
Sem o gosto azedo do aterro desde ontem
Fome? Eu acho que ele não tem, problemas? Eu acho que ele não tem
Um pai? Com certeza ele tem, mas ‘peraí’ pensando bem
Tanto eletrônico pra esse menino brincar, ninguém olha pra ele, ambos no celular
Ele me viu, chamou o pai tocando no ombro
O pai respondeu gritando, quase tive um assombro
O pai dele parece irmão com o meu que nessa manhã mesmo me bateu
Pois acordei tarde pra trabalhar, queria um pai que brigasse comigo pra eu estudar
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro importado
E mesmo com o fumê se enxergaram, por alguns segundos se olharam (…)
O que ele faz com doce, balinha? Abordando os carros num calor de meio dia?
Não está com uniforme de escolinha
Qual será a melhor vida a dele ou a minha?
São apenas crianças, são apenas crianças
Querem pais de verdade, mães de verdade, família de verdade. Querem infância!
E duas crianças se encontraram, uma dentro e outra fora de um carro
Por alguns segundos se olharam e um pequeno sorriso trocaram
Até o sinal abrir, uma seguir, outra ficar
Uma para possivelmente se “divertir” e a outra pra trabalhar, pra trabalhar (…)
Música Duas Crianças, de Markão Aborígine
A música e a arte são poderosos instrumentos de denúncia das violências que acometem nossa sociedade. O rapper e compositor Markão Aborígine em sua música ‘Duas Crianças’ revela de forma sensível e inteligível as desigualdades existentes que impactam diretamente as infâncias no nosso país. O trabalho infantil é um dos termômetros mais infalíveis para medir o nível de desenvolvimento social, político, cultural e econômico de uma nação. Quanto maior a desigualdade ou o empobrecimento do país, maior a taxa de trabalho infantil, que pode ser determinada também por uma incapacidade institucional de promoção de políticas de proteção social ou mesmo por uma escolha política de geração de riqueza concentrada num grupo pequeno da população, como tem acontecido no Brasil.
O aumento de crianças e adolescentes vendendo balinhas no semáforo, como ilustrado na música, não se deu somente pela catástrofe que foi e está sendo a pandemia da Covid-19 no mundo, mas sim pela gestão do país que decidiu por não investir em políticas sociais antes e no período desta crise mundial. O que reverberou no agravamento da pobreza e da fome, em fragilidades educacionais pela necessidade do isolamento social, na elevação do desemprego e de informalidade e, consequentemente, no aumento do trabalho infantil. Mesmo sem termos pesquisas recentes, é possível perceber no nosso dia-a-dia o número crescente de meninos e meninas nas mais diversas situações de trabalho, muitas delas de alta periculosidade.
O trabalho infantil no Brasil acontece desde os anos 1500, como menciona Elisiane Santos: “A história da infância pobre é uma história de trabalho. O Brasil, desde a colonização, utilizou a mão de obra infantil”[1]. E isso caracteriza o perfil das crianças e adolescentes nesse contexto hoje, onde 66,1% são negras, de acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). O ciclo de empobrecimento e entrada no mundo de trabalho precarizado e de forma precoce é engendrado pelo racismo estrutural do Brasil, país marcado pela escravização e pela falta de políticas públicas de emprego, renda, acesso à terra e educação de qualidade após a dita abolição da escravidão.
Alguns anos antes da Lei Aurea, foi sancionada a Lei do Ventre Livre, que dava “liberdade” às crianças nascidas a partir daquela data. Contudo, quando completados os 8 anos, elas deveriam prestar serviços aos senhores de suas mães até os 21 anos, caso contrário ficariam a cargo do Estado e este pagaria uma indenização ao senhor de engenho. Essas indenizações estão vigentes até hoje, mas em outra roupagem. Quando o Estado abre mão de proteger suas crianças do trabalho infantil, ele está dando permissão à exploração dessa população, em que 337 mil estão na faixa etária de cinco a 13 anos. Isso beneficia e gera riqueza para grupos específicos. E as consequências para quem o vivencia é a manutenção do ciclo de pobreza, de pouca ou nenhuma escolarização, de acesso precário ao emprego e não ascensão social que se perpetua entre as gerações de diversas famílias brasileiras.
Explorar o trabalho infantil é um projeto de governo
A análise do orçamento público voltado para o enfrentamento do trabalho infantil mostra o quão importante é a atuação do Estado nesta área. Entre os anos de 2016 e 2019, quando o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil ainda recebia recursos federais mais volumosos, foi possível diminuir em 0,6 pontos percentuais a quantidade de meninas e meninos na situação de trabalho. O que significa uma diferença de 335 mil crianças e adolescentes. Ainda assim, não foi um número significativo considerando o tamanho do problema: 1,8 milhão de crianças e adolescentes em trabalho infantil em 2019. Portanto, ainda há grande necessidade de atuação do Estado e da sociedade para eliminar a sistemática violação desse direito.
No entanto, o descaso no governo federal é generalizado. Se o Brasil não agir com celeridade e efetividade nas políticas de proteção social para crianças, adolescentes e suas famílias, a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “acabar com todas as formas de trabalho infantil até 2025” não será alcançada. Como pode ser observado na Tabela 1, os recursos para o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), de responsabilidade do Ministério da Cidadania, foram zerados no governo Bolsonaro.
Tabela 1[2]
Os recursos federais disponíveis para o programa, que até 2020 estavam dispostos numa rubrica intitulada Ações Estratégicas para Enfrentamento ao Trabalho Infantil, e em 2021 e 2022, como Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, diminuíram 94,4% (em termos reais) em 2019 na comparação com 2015, início da gestão anterior. E no que tange à execução financeira, a diferença nesse mesmo período foi de 84,1%, o que significa uma perda de R$ 27,8 milhões. Mas se compararmos com 2016, início da vigência do Plano Plurianual (PPA) do período, essa diferença sobe para 94,7%, uma perda de R$ 108 milhões.
A situação nos anos seguintes é ainda mais catastrófica. Recursos autorizados em 2021 em míseros valores não foram executados, e em 2022, apesar do valor disponível de R$ 9,4 milhões, até maio não havia um centavo gasto, nem ao menos empenhado. Esse contexto se relaciona com a extinção da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti) em 2019. Apesar de ter sido reinstituída em 2020, enfrenta sérias limitações de participação de organizações historicamente comprometidas com a erradicação do trabalho infantil no Brasil, como é o caso do FNPETI, Conanda e Ministério Público do Trabalho. Sem participação social e sem recursos, a consequência é a não realização das ações e metas do III Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil que finaliza em 2022.
O PETI não deixou de existir e integra a política de assistência social, que também vem sendo desmontada pelos últimos governos, principalmente a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95 que impõe um teto de gastos para as despesas com políticas públicas. Os munícipios não têm condições de financiar a política de assistência sozinhos, portanto, os repasses do governo federal são essenciais para o fortalecimento do atendimento às comunidades. A capital do Brasil, por exemplo, tem demonstrado, vergonhosamente, o que significa esse sucateamento da assistência, com pessoas dormindo em filas em frente aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) para conseguir uma vaga de atendimento com o objetivo de atualização de seus dados no Cadastro Único para recebimento de benefícios.
Ainda sobre o orçamento do governo federal é importante mencionar que entre 2013 e 2017 havia uma rubrica intitulada Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil com recursos da ordem de R$ 4 a R$ 6 milhões de responsabilidade do Ministério do Trabalho. Tal rubrica deixou de existir em 2018. E no âmbito do judiciário, há um programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem criado em 2013, porém configurado com esse nome a partir de 2016 a cargo do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Tem como meta principal a sensibilização e mobilização da sociedade, dos profissionais que atuam com crianças e adolescentes e das mídias para a importância da prevenção e do enfrentamento do trabalho infantil por meio de campanhas, pesquisas, seminários e processos formativos no tema.
Tabela 2
Os recursos deste programa são distribuídos entre os tribunais regionais do trabalho mediante apresentação de planos de ação. A Tabela 2 mostra uma queda nos valores disponíveis para 2020, mas retomando em 2021 o patamar de 2019 em termos de recursos autorizados. No entanto, a execução financeira em 2021 foi muito baixa: apenas 24% do valor autorizado.
A “vontade” política precisa ser pautada pela promoção e proteção dos direitos
“Meu sonho é poder trabalhar, trabalhar para comprar comida, comer bem” (Menina, 11 anos, Itapoã-DF, maio de 2022)[3]
A crueldade de um país que violenta crianças e adolescentes por meio da fome, da pobreza e das desigualdades (porque todas essas condições são construídas) é retirar deles e delas a possibilidade de sonhar. As necessidades básicas não devem ser sonhos, porque são direitos e por isso devem ser cumpridos pelos responsáveis por sua efetivação.
O enfrentamento do trabalho infantil ancora-se no entendimento de que 1) o trabalho na infância é degradante e prejudica o desenvolvimento integral; 2) toda criança e adolescente, independentemente de classe, raça, cor, etnia ou território, é sujeito de direitos e deve acessá-los de modo a poder ampliar sua capacidade de sonhar. E para isso, os governos precisam investir, urgentemente, em políticas de proteção social e de educação de qualidade. O país convive atualmente com 33,1 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional grave por conta de decisão política. É preciso que nos mobilizemos nesse momento e que votemos nas próximas eleições em candidaturas que proponham mudar essa realidade e que tenham como prioridade os direitos das crianças e dos adolescentes em sua agenda.
Recomendações
– Revogação da Emenda Constitucional 95;
– Maior orçamento e execução do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil com transferência de renda para famílias com crianças e adolescentes e avaliações periódicas do programa;
– Ampliação do número de beneficiários e dos valores do programa de transferência de renda do governo federal (Auxílio Brasil ou Bolsa Família);
– Ampliação da Aprendizagem Profissional aumentando o piso para cotas de contratação de aprendizes;
– Cumprimento da meta 20 do Plano Nacional de Educação: atingir até 2024 10% do PIB em investimento em educação;
– Rever a composição da Conaeti por meio da alteração do decreto 10.574/2020;
– Maior aporte de recursos e execução para a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial;
– Proteger a lei atual que define a idade mínima para o trabalho no Brasil.
“Los ingresos fiscales que genera deben invertirse en programas y servicios que marquen la diferencia para los niños, sobre todo en materia de educación y protección social.” (OIT; UNICEF, 2021, p. 52)[4]
[1] Santos, Elisiane dos. Trabalho infantil nas ruas, pobreza e discriminação: crianças invisíveis nos faróis da cidade de São Paulo. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-01032018-123114/publico/Corrigida_ElisianeSantos.pdf>
[2] Aqui considera-se a linha histórica de 2014 a 2022, pois o Plano Orçamentário intitulado: Ações Estratégicas de Enfrentamento ao Trabalho Infantil só aparece no Siga Brasil (portal utilizado para análise dos dados orçamentários) a partir desse ano.
[3] Criança participante do Projeto Onda: Adolescentes em Movimento pelos Direitos do Inesc.
[4] OIT – Oficina Internacional del Trabajo y UNICEF – Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia, Trabajo infantil: Estimaciones mundiales 2020, tendencias y el camino a seguir, OIT y UNICEF, Geneva and Nueva York, 2021.
Fonte: INESC