‘Mãe, está difícil respirar’: 25% de crianças e jovens sofrem com depressão
“Minha filha de 14 anos acorda, diz que a vista fica embaçada e o corpo treme. Eu não sei como ajudar, ela fala que não quer mais ir às aulas e, quando vai, preciso buscar no meio do dia, porque ela passa mal”, conta Angélica*, dona de casa e moradora da Vila Industrial, zona leste de São Paulo.
Já são mais de dois anos de vida em pandemia. Para crianças e adolescentes, o tal “novo normal” trouxe o retorno às aulas com obrigatoriedade do uso de máscara e também muitas perdas e medos. Tudo isso vem pesando na bagagem emocional de crianças e adolescentes.
No caso da adolescente Isabelly, filha de Angélica, o que mais a abalou foi a morte da bisavó materna, no ano passado. A mãe conta que elas eram muito apegadas. Isabelly não pode se despedir, porque estava fora da cidade e, com receio de encontrar outros familiares e expô-los à contaminação por Covid, não foi ao enterro.
A partir daí, as crises de ansiedade da adolescente ficaram graves. No nono ano do ensino fundamental, a frequência dela nas aulas está comprometida.
Levo na psicóloga do SUS, mas a consulta é de 20 em 20 dias. Às vezes, sinto que eu também estou ansiosa, mas sei que, se passar mal, a casa cai para a gente.
Angélica é mãe solo de mais duas crianças, de 2 anos e de 9 anos. “Juntou nosso luto com o momento da pandemia”, avalia.
Ela conta que uma vizinha passa pela mesma situação com a filha de 11 anos. “Encontrei essa mãe no hospital dizendo que a menina também começou a ter crises de ansiedade na rua. Ela passou, então, a tomar remédios. Parece que é algo desencadeado por esse momento”.
Cena pós-apocalíptica
Em abril deste ano, seis ambulâncias do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) foram encaminhadas para a Escola de Referência em Ensino Médio Ageu Magalhães, de Recife. O motivo: 26 alunos tiveram crise de ansiedade coletiva e precisaram de atendimento médico. Falta de ar, choro, sudorese e taquicardia foram os principais sintomas apresentados pelos adolescentes.
“Parecia uma cena pós-apocalíptica. Nunca tinha visto nada parecido com aquilo”, disse ao UOL, na época, uma aluna de 17 anos que presenciou as cenas.
Segundo o psiquiatra Fernando Asbahr, coordenador do Ambulatório de Ansiedade na Infância e Adolescência do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das
Clínicas, em São Paulo, cenários de crise de ansiedade coletiva entre adolescentes podem acontecer quando há fatores específicos, como o grupo estar vivenciando algo ao mesmo tempo, ou estar exposto a uma situação potencialmente perigosa.
Ele afirma que transtornos como automutilação -mais comuns em adolescentes, como um mecanismo perigoso de tentar reduzir a dor emocional-, podem ter uma dose de comportamento social influenciado pelo grupo. “É quando o jovem acha que isso vai ser um jeito de aliviar a angústia, porque um amigo falou sobre isso”, diz o psiquiatra.
Depressão e ansiedade
Os primeiros estudos sobre as consequências da pandemia na dos jovens têm menos de um ano, mas já denotam a gravidade da situação. Segundo um deles, que reuniu 29 trabalhos realizados em diversos países, 25% de crianças e adolescentes no mundo sofrem de depressão e 20% estão lutando contra a ansiedade.
As mesmas proporções apareceram em um estudo feito pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) com 7.000 crianças e adolescentes, em 2020, no Brasil.
Em um relatório divulgado no início do ano, a Associação Americana de Psicologia constatou que, de uma amostra de 3.300 estudantes do ensino médio no país, um terço se sentia “infeliz e deprimido muito mais do muito mais do que o normal”.
Se o isolamento gerou problemas, retomar o convívio com os amigos e os professores, ainda que signifique voltar para um lugar conhecido, também pode trazer desafios emocionais. “Em um primeiro momento, ter ficado em casa pode ter sido uma boa. Mas, se era um aluno que sofria com ansiedade para se expor na sala e, na aula online, tinha dificuldade para ligar a câmera e interagir, isso pode ter se tornado um fantasma muito maior nesse retorno à escola”, explica o psiquiatra Fernando Asbahr.
Para o especialista, o que se vê, no entanto, é uma intensificação de problemas que já existiam e vieram à tona no espectro emocional dos pequenos e dos adolescentes.
Além disso, a pandemia também gerou impactos objetivos na vida dos adultos. A demissão de alguém, o aumento do custo de vida, as mortes por causa do vírus. Tudo isso, avaliam os especialistas, pode ser motivo da crise de saúde mental pela qual crianças e jovens estão passando dentro de casa.
Dar nome ao que sente
Para sentimentos conflitantes e experiências inéditas, dizem os especialistas, é importante dar nomes. A ansiedade, por exemplo, é um transtorno caracterizado pela “vivência antecipatória” das situações. “É o tipo de problema de saúde mental mais comum na população infantojuvenil e não deve ser tratado como ‘frescura de criança'”, explica o psiquiatra.
Há, ainda, a “síndrome da gaiola”, definida pela dificuldade de socializar e interagir depois do longo período de isolamento em casa; os “bebês bunkers”, aqueles nascidos durante a pandemia e que nos dois anos iniciais não se relacionaram com o mundo externo.
“É difícil para as crianças menores saberem mensurar os próprios sentimentos, mas elas podem apresentar irritação, insegurança com o afastamento dos adultos, agitação ou perda de sono. Também é importante observar se há mudanças de comportamento nas relações familiares e sociais. Porque talvez o pequeno não consiga dizer se está triste ou com medo” – comenta a psicóloga Fernanda Bittencourt, especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, que atende em Salvador.
Se identificar mudanças de comportamento na criança, ou o adolescente tiver ferramentas emocionais para falar o que sente, é importante que os pais encaminhem o jovem para tratamento psicológico.
Pais, escolas e poder público: o problema é nosso
No relatório sobre estresse e outros efeitos da pandemia nas crianças divulgado pela Associação Americana de Psicologia, a entidade dá pistas de que o problema de crise de saúde mental infantojuvenil é algo para ser resolvido com a participação de famílias, escolas e governos -principalmente porque a pandemia acirrou as desigualdades sociais, e o acesso ao atendimento para saúde mental é globalmente escasso.
Segundo levantamento da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) de outubro do ano passado, cerca de 2% dos orçamentos de saúde são alocados para gastos com saúde mental.
Os adultos, por sua vez, precisam ter confiança na capacidade adaptativa dos filhos e não cobrá-los, por exemplo, para “recuperar o tempo perdido” nas aulas presenciais no colégio. É também um exercício de equilíbrio do núcleo familiar, como explica a pedagoga e educadora parental Maya Eigenmann.
“Se a criança tem amparo emocional em casa e relação de qualidade com os adultos, ela terá mais resiliência emocional para a vida. E, mais: na escola, ela não tem que recuperar tempo perdido, porque para ela nem existe esse conceito. Nós não podemos cobrar uma maturidade em um cenário que até nós estamos nos sentindo incertos”.
Além de buscar tratamento com psicoterapia e psiquiatria, familiares entram na jogada com muito acolhimento. “O adulto precisa ouvir o filho e validar os sentimentos dele”, aponta a psicóloga Fernanda Bittencourt. “Há ainda mecanismos, como técnicas de respiração e de modificação de pensamento, que podem ajudar no pensamento ansioso. Se a criança continuar com medo, acolha.”
O compromisso principal deve ser entender as emoções dos pequenos e não desrespeitá-las. Transtornos de saúde mental não são frescura em nenhuma idade.
*Sobrenome não revelado a pedido da entrevistada