Por que prefeitura mapeia, mas não acolhe 760 crianças que vivem sozinhas nas ruas de SP?
Duas crianças caminham perto de uma estação de metrô na zona norte de São Paulo com mochila nas costas. Não há nenhum adulto perto delas.
Alguns minutos se passam, elas se separam e entram em barracas de camping distintas, encostadas em um paredão.
O Censo divulgado há menos de um mês pela Prefeitura de São Paulo, aponta que há 760 crianças e adolescentes vivendo sozinhos nas ruas. Outras 423 estão acompanhadas de outras crianças e 1566 são acompanhadas de pais ou responsáveis.
De 2007 a 2022, o número de menores de idade vivendo nas ruas dobrou, passando de 1842 para 3759, um aumento de 104%, de acordo com o Censo de Crianças em Situação de Rua.
Aquelas que vivem sozinhas precisam pensar em como conseguir se alimentar, estudar e manter os cuidados de saúde sem a supervisão de um adulto. Sem pais ou responsáveis, as pessoas ouvidas pela reportagem dizem que os principais motivos para esse isolamento são crimes, prisões, mortes, abandono ou fuga de casa.
Mas por que centenas de crianças circulam sozinhas diariamente, muitas vezes passando frio e fome, pelas ruas da maior e mais rica cidade da América Latina? O poder público pode retirar essas crianças e levá-las a um abrigo?
A BBC News Brasil ouviu o secretário de Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo, promotores de Justiça, conselheiros tutelares, o presidente da Comissão de Adoção e Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB de SP e associações que defendem os direitos das pessoas menores de idade.
A intenção é entender de quem é a responsabilidade por essas crianças, já que elas não têm a supervisão de um adulto.
“Estão nas ruas por omissão da sociedade e do Estado, e pela negligência dos pais ou responsáveis. E, nas ruas, ficam em risco em razão das omissões da família, Estado e sociedade, e em razão das próprias condutas, como uso de drogas, cometimento de furtos e roubos, entre outras situações”, afirmou Ariel de Castro Alves, presidente da Comissão de Adoção e Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB de SP.
Segundo o advogado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que a prioridade é que essas crianças e adolescentes sejam encaminhados de volta ao convívio dos pais e responsáveis. Caso não seja possível, o poder público deve agir como tutor, dando apoio, orientando e oferecendo acompanhamento temporário. Também deve matriculá-lo em uma instituição de ensino fundamental e incluí-lo em um programa comunitário ou de auxílio à família.
“Precisa providenciar proteção integral e intervenção precoce das autoridades, assim que uma situação de perigo seja verificada. Fazer uma oitiva obrigatória com participação das próprias crianças e adolescentes, que devem ser ouvidas, além de ter responsabilidade parental e reintegração familiar”, afirma Ariel de Castro Alves.
O Artigo 100 do ECA, segundo o advogado, afirma que o poder público, ONGs e demais instituições devem atuar, caso sejam desrespeitadas essas previsões.
Entre as medidas de proteção aplicadas a crianças que estão em risco, como aquelas que estão em situação de rua, segundo Ariel de Castro Alves, estão a inclusão da família das crianças em programas de apoio social e geração de renda; encaminhamento para tratamentos médicos, psicológicos e psiquiátricos; ou inclusão em serviço de acolhimento institucional ou familiar.
O secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Carlos Bezerra, afirma que é possível que nem todas essas crianças estejam realmente sozinhas.
“Estar sozinha não significa que não tem um adulto perto, mas na hora que foi feita a abordagem, ela estava sem o adulto. E o adulto pode, inclusive, estar se escondendo”, afirma.
Ele disse em entrevista à BBC News Brasil que a cidade enfrenta a questão dos moradores de rua de maneira “corajosa, prioritária e qualificada” e que foi a única do país que fez o censo para crianças e adolescentes em situação de rua.
A intenção, segundo ele, é ter dados que possibilitem a destinação de políticas públicas para regiões prioritárias e de acordo com a necessidade de cada uma delas.
Ele cita que há diversos fatores que provocam a presença de crianças nas ruas. O primeiro, é a crise econômica, o segundo é a alta concentração de recursos e empregos, que atrai pessoas de todo o país e, por último, o desemprego, que faz com que essas pessoas percam a renda e, consequentemente, a moradia.
“A crise econômica causada pela pandemia jogou famílias nas ruas e esse aumento do número de famílias tem um impacto direto no aumento do número de crianças em situação de rua, sejam acompanhadas ou desacompanhadas”, diz.
O secretário afirma que o Censo pode ter contabilizado crianças em situações que poderiam não estar sozinhas.
“Você pode ter uma criança que mora numa casa ou ocupação com a família, que está na escola, mas duas horas por dia está na rua vendendo balas, com algum adulto a utilizando como escudo, entre aspas. Para isso, essa criança é considerada uma criança em situação de rua, porque ela permanece um tempo do seu dia na situação de rua”, afirmou.
Conselho Tutelar e Justiça
É responsabilidade do Conselho Tutelar solicitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança quando identificar uma criança ou adolescente necessitado, segundo o advogado.
Quando essas necessidades não forem atendidas, os conselheiros devem acionar a Justiça e encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente.
Os conselheiros devem encaminhar à Justiça os casos que necessitem intervenção para que sejam respeitados todos os direitos previstos no ECA e na Constituição, inclusive o direito à moradia e estudos.
Segundo Ariel, isso divide a responsabilidade de acolhimento e encaminhamento dessas crianças e adolescentes entre as esferas municipal e estadual por meio do Conselho Tutelar, Ministério Público, Tribunal de Justiça e a prefeitura.
“O poder público precisa ter equipes com educadores sociais para abordagens e educação social nas ruas visando o restabelecimento dos vínculos familiares das crianças em situação de rua com suas famílias. Mas na prática, em São Paulo, os órgãos, instituições e programas têm dificuldade de atuar conjuntamente”, afirma.
Segundo o advogado, o conselho tutelar pode encaminhar menores de idade para abrigos “em casos graves de violência por parte dos responsáveis e em casos graves e urgentes de abandono. Sempre verificando, na impossibilidade de a criança ficar com os pais, em razão do abandono e violência, se não tem avós ou tios para ficarem com ela”.
Conselheiros ouvidos pela BBC News Brasil que pediram para não ser identificados dizem que não têm condições de atender a tantos casos com uma “equipe reduzida, como a atual”.
“São cinco conselheiros. Quando a gente recebe uma denúncia, a gente tem que ligar para o 156 e fazer essa denúncia porque quem deve atender é o Serviço Especial de Abordagem Social (Seas). Também não sabemos como resolver porque nem mesmo fica claro de quem é essa responsabilidade pelas crianças nas ruas”, afirma uma conselheira que trabalha em uma unidade da zona oeste de São Paulo.
Uso de drogas
Em meio a esse imbróglio, as crianças permanecem abandonadas e em situação de rua. Os especialistas entrevistados pela reportagem afirmam que, sozinhas, diariamente essas crianças e adolescentes sofrem pressões para usar drogas e entrar para o mundo do crime. De acordo com o Censo, 104 delas são usuárias de álcool ou outras drogas.
O secretário de Desenvolvimento e Assistência Social foi questionado três vezes sobre quais ações a prefeitura vai tomar, já que hoje ela tem conhecimento, e inclusive a localização, de todas as crianças que vivem nas ruas.
“Nós temos que ter um senso de urgência com relação a isso. Estamos trabalhando com essa questão de forma prioritária. Agora, não adianta sair de forma atabalhoada, sem ter os dados quantificados, senão esse senso de urgência nos transforma e faz com que a gente aja de maneira desumana, desordenada”, afirma o secretário.
Ele diz que a administração municipal está acelerando as ações para abordar essas crianças e adolescentes para que elas sejam encaminhadas aos serviços especializados.
“O fato é que a gente precisa alinhar o nosso senso de urgência com a capacidade que nós temos de enfrentar, com planejamento. Queremos oferecer a resposta mais qualificada possível, no menor tempo, porque cada dia a mais que uma criança está na rua, aumenta a possibilidade de violação de direito dessa criança. É tudo o que a gente não quer”, diz.
Ele disse que a prefeitura está ampliando a capacidade de acolhimento nas regiões com as maiores concentrações de crianças vivendo nas ruas, principalmente no centro. Ele não descarta uma internação compulsória em alguns casos. Porém, ressalta que essa é uma decisão muito delicada e que deve respeitar uma série de processos.
“Normalmente, eles (agentes sociais) fazem a abordagem, identificam e encaminham, por exemplo, a um serviço de acolhimento. Aí são acionados todos os serviços de política social, como Ministério Público, os vários serviços do Judiciário e o suporte para que aquela criança possa ter todo esse respaldo necessário”, afirma.
Ele explica que o próprio espaço de acolhimento aciona os órgãos para que esse abrigado regularize sua documentação, seja capacitado, tenha acesso a serviços de saúde, educação etc.
Ariel de Castro Alves diz que as famílias que quiserem adotar uma criança ou adolescente deve procurar as varas da infância e da juventude e seguir os procedimentos para se habilitar no Cadastro Nacional de Adoção.
“Ela também pode se inscrever em programas de família acolhedora, se quiserem acolher provisoriamente uma criança em situação de risco e abandono, sem a finalidade de adotar”, afirmou.
Se a criança tiver desaparecido e a família feito um boletim de ocorrência, por exemplo, uma pessoa que leve para casa uma criança ou adolescente pode inclusive responder pelo crime de sequestro ou cárcere privado, com pena prevista de um a três anos de prisão. Ou ainda o crime de subtração de incapaz, que prevê pena de dois meses a dois anos.