‘Não estamos conseguindo contar os corpos’
A criança Yanomami já tinha vivido 1.095 dias, mas pesava o mesmo que um bebê que acabara de nascer. Três anos e 3,6 quilos. O número traduz o que uma série de fotografias recentes recebidas por SUMAÚMA mostram: corpos de crianças e velhos, com peles que recobrem apenas os ossos, tão fragilizados que mal parecem se equilibrar. Costelas que parecem perfurar os corpos minúsculos contrastam com barrigas enormes, povoadas por vermes. Dados obtidos por SUMAÚMA apontam que, nos 4 anos de governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), 570 crianças com menos de 5 anos morreram no território Yanomami pelo que as estatísticas chamam de “mortes evitáveis”. Isso significa que 570 pequenos indígenas poderiam estar correndo, rindo e inventando brincadeiras, neste momento, se houvesse atendimento adequado de saúde ou ações de prevenção. Não houve. O número oficial já é 29% maior do que nos 4 anos anteriores, dos governos de Dilma Rousseff (PT) e, após o impeachment, de Michel Temer (MDB). Como o território sofreu um apagão estatístico durante o governo de extrema direita, é provável que a realidade seja ainda mais aterradora. Este é o legado de Bolsonaro.
As imagens desta reportagem foram feitas por indígenas e profissionais de saúde que conseguiram vencer a barreira do garimpo criminoso e alcançaram a Terra Indígena Yanomami nos últimos meses. Para publicá-las, SUMAÚMA pediu autorização para lideranças da etnia. Algumas das imagens mais chocantes não foram liberadas por afrontarem a cultura Yanomami ou por colocarem em risco de morte o autor das fotos. Imagens são um tema difícil para os Yanomami. As lideranças que aceitaram a divulgação das fotografias só tomaram essa decisão porque estão desesperadas. Em uma delas, foi a própria liderança que pediu que uma foto fosse tirada para ser levada ao mundo. Essa atitude, tão rara para um Yanomami, dá uma medida do terror de ver crianças e velhos tombarem dia após dia.
“Não estamos conseguindo contar os corpos”, afirma uma das oito pessoas ouvidas pela reportagem nos últimos dias. Todas relatam um cenário de catástrofe dentro da maior terra indígena demarcada do país. No território entre os estados de Roraima e Amazonas, onde vivem quase 30 mil Yanomami, a fome se alastrou em uma terra farta de comida. Fragilizados, velhos e crianças sucumbem a doenças que têm tratamento, mas com frequência ele não chega. O descaso é uma sentença de morte.
Somado a isso, o desmonte da saúde indígena durante os 4 anos do governo Bolsonaro levou várias aldeias ao colapso sanitário. Com pouco acesso à saúde e medicamentos em falta, crianças e velhos morrem de desnutrição ou por doenças tratáveis, como vermes, pneumonia e diarreia. “Tá tendo muito garimpeiro, muita malária. Pega malária, não aguenta fazer roça”, afirma Mateus Sanöma. A malária, assim como a dengue, é transmitida por meio de um mosquito que, ao picar uma pessoa contaminada, passa a espalhar a doença. Ela se alastra na terra indígena por meio dos garimpeiros.
Nos últimos dois anos (2021 e 2022), a região de Auaris, onde vivem 896 famílias, teve 2.868 casos de malária. Dados obtidos por SUMAÚMA apontam que, apenas em 2022, 6 crianças com menos de 1 ano morreram por causas que seriam facilmente evitáveis se houvesse acesso a serviços de saúde ou medicamentos. Na região, 6 de cada 10 crianças menores de 5 anos apresentam déficit nutricional, ou seja, têm peso considerado inadequado para a idade, a maior parte delas já em desnutrição severa. Na Maloca Paapiu, outra região do território Yanomami, acontece o mesmo: 6 de cada 10 crianças dessa faixa etária estão desnutridas. É de lá que nos chega uma lista, feita à mão por uma pessoa da comunidade, com as mortes ocorridas entre dezembro e os primeiros dias de janeiro: foram 4 crianças, filhas de Catiusa, Beadriz, Geovana e Briscila. E ainda outros 4 velhos. “Oito [dos] meus parentes morreram”, diz o recado.
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