Casamento infantil: 2,2 milhões de adolescentes brasileiras são casadas
Na última semana, veio a tona uma notícia que gerou revolta no país: o prefeito de Araucária (PR), Hissam Hussein, de 65 anos, se casou com uma adolescente de 16 anos. Entretanto, apesar da repercussão, o casamento não é ilegal, pois no Brasil é permitido casar a partir dessa idade, se houver consentimento dos pais. Segundo dados da ONG Girls not Brides, mais de 2,2 milhões de brasileiras adolescentes são casadas, o que representa 36% das menores de idade do país. Além disso, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) aponta que, em números absolutos, o país é o quarto do mundo com registros de casamentos infantis.
Mais de 7 mil menores de idade se casaram no Brasil de 2021 até março deste ano, de acordo com dados enviados ao Correio pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). Em 2021, foram registrados 3.334 casamentos infantis, outros 3.176 ocorreram em 2022 e nos três primeiros meses de 2023 foram contabilizados 718 casórios de menores de idade.
Apesar de ter a brecha legal no Brasil, o casamento antes dos 18 anos é visto como uma “violação” pela Organização das Nações Unidas (ONU), pois pode prejudicar o alcance da igualdade de gênero e o pleno exercício dos direitos femininos. “O casamento infantil quase sempre precede a gravidez na adolescência. Em países em desenvolvimento, as meninas que são casadas são a maioria das que dão à luz. Estas gravidezes precoces representam riscos sérios a meninas cujos corpos ainda não estão prontos para a maternidade. Em todo o mundo, complicações da gestação e nascimento de crianças são a principal causa de morte de meninas entre 15 e 19 anos”, pontua a ONU.
O advogado e sócio do escritório Nelson Wilians Advogados Sérgio Vieira explica que, com o casamento, as adolescentes passam a adquirir direitos e deveres de alguém maior de idade. “Após o casamento, a adolescente é emancipada, o que permite a jovem ter direitos e deveres de alguém maior de idade, possibilitando realizar transações bancárias, responder a processos judiciais, ter emprego formal, administrar seus próprios bens e assinar contratos em seu próprio nome”, ressalta o especialista.
A ONU chama a atenção para esse aspecto. “Nem todas as uniões infantis resultam de decisões de pais ou guardiães do menor. Existem adolescentes que decidem se casar para exercer sua independência, escapar de dificuldades incluindo pobreza, violência familiar ou porque são restringidos do sexo fora do casamento. Conflito, deslocamentos, desastres naturais e mudança climática agravam os fatores do casamento infantil destruindo subsistências, sistemas de educação e aumentando os riscos de violência sexual. Além disso, a situação eleva receios com a segurança das meninas”, emenda a instituição.
Casamento infantil x igualdade de gênero
A igualdade de gênero é um dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, a serem alcançados até 2030. E eliminar os casamentos prematuros é visto como uma das ações fundamentais para chegar a um cenário de equiparação de direitos, além de empoderar meninas e mulheres.
“Muitas mudanças são necessárias para acabar com o casamento infantil incluindo o fortalecimento das leis contra a prática, avançando com igualdade de gênero e assegurando os direitos das meninas. Mas muitas jovens também devem ter autonomia para saber e reclamar seus direitos. Isso significa informações corretas sobre saúde sexual e reprodutiva, oportunidades de educação e habilidades para desenvolvimento e participação na vida civil”, aponta a ONU.
Além disso, a ONG Girls not Brides frisa que investir em educação é primordial para enfrentar essa realidade. “A maioria das meninas que se casam abandona a escola antes de se casar e, portanto, o acesso à educação afeta o momento do casamento mais do que o casamento afeta o acesso à educação. Fornecer 12 anos de educação de qualidade para uma menina não apenas atrasa o casamento desse indivíduo, mas também atrasa o casamento de gerações de meninas e mulheres que a seguirão”, diz a organização.
Para a psicóloga Marília Veiga, da Universidade de Brasília (UnB), a ausência ou insuficiência de políticas de proteção e acessos aos direitos básicos contribuem para que as meninas se casem. “Nesse cenário, figuram meninas negras e pobres que enxergam na união informal uma saída para a situação de risco e vulnerabilidade a qual estão submetidas. Apesar de as meninas se juntarem com a esperança de melhores condições de vida, frequentemente o casamento se torna mais um fator de risco”, comenta a especialista, que pesquisou sobre o tema junto com a psicóloga Valeska Maria Zanello de Loyola.
“No interior de Goiás, onde fiz minha pesquisa de campo, as meninas que entrevistei se casaram aos 12, 13, 17 anos sem qualquer interposição estatal. Sendo psicóloga e não jurista, compreendo, entretanto, que o endereçamento legal desta questão imprime uma força simbólica à discussão, capaz de trazer luz a um problema que tem se mantido invisibilizado no Brasil. Não estamos enxergando essas meninas! E sabemos que, quanto mais velhas mulheres se casam e/ou têm filhos, menos propensas estão à violência doméstica”, acrescentou Marília.
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