Dependência digital existe mesmo?
Dependência digital: Um em cada quatro adolescentes brasileiros faz uso excessivo de videogame e 28% atingiram os critérios do Transtorno de Jogo pela Internet (TJI)
Na novela Travessia, que acaba de encerrar, o personagem adolescente Theo sofre com um problema dos dias atuais: a chamada dependência digital ou tecnológica, ligada ao uso excessivo da internet, seja jogando online, assistindo a vídeos ou consumindo horas de vida nas redes sociais. Mas isso existe mesmo ou somente na teledramaturgia de Gloria Perez? Sim, é real e já está dentro das nossas famílias.
Vi algumas cenas da novela, inclusive a da consulta dos pais do garoto com um psicólogo, na qual relatam situações extremas, como a viagem para um sítio sem internet, quando o filho perdeu o controle. Não houve exagero nem sensacionalismo no trecho de quase 10 minutos. Resumidamente: explica que crianças ainda não têm um cérebro maduro que saiba a hora de parar. Por isso, quem trava uma batalha diária para que os filhos larguem o celular, ao menos na hora de comer, não está sozinho.
A teoria de como o excesso de telas afeta a saúde mental não é nova. Sua principal defensora é Jean Twenge, professora de psicologia na Universidade de San Diego, Califórnia. Por aqui, desde 2006 a Universidade de São Paulo (USP) mantém um grupo dedicado ao atendimento e estudo de dependência de internet e novas tecnologias.
De acordo com pesquisa realizada em 2022 pelo Instituto de Psicologia da mesma USP, um em cada quatro adolescentes brasileiros faz uso excessivo de videogame. E 28% atingiram os critérios do Transtorno de Jogo pela Internet (TJI), recentemente batizado e classificado como doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O TJI é um padrão de comportamento que prejudica a capacidade de controlar o tempo dedicado aos games, de modo a priorizá-los em detrimento a outras atividades. Esse problema entre jovens brasileiros é maior do que em todos os países já pesquisados, onde a média oscila de 1,5% a 20%. Se analisarmos o mapa mundi, dividido pelas horas que crianças dedicam à internet, fica evidente a diferença entre dois blocos, de países pobres e ricos. Nem preciso dizer em que metade o Brasil está.
A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que crianças de zero a três anos NÃO sejam expostas às telas, para o bem de seu desenvolvimento. Dos quatro aos seis anos, uma hora de uso supervisionado está adequado. Depois, até os 10 anos, mantém-se uma hora com mais liberdade. Dos 11 aos 14 anos, duas horas de entretenimento por dia são aceitáveis. No final da adolescência, o jovem pode ter até três horas de uso para diversão.
Não é fácil para pais e cuidadores controlarem nossos pequenos – muito mais articulados e argumentativos do que nós fomos com a idade deles – nem admitir que a tela virou um vício.
Por isso precisamos ficar atentos a sinais como:
- A criança ou adolescente está deixando de procurar outras atividades para ficar mais e mais no celular;
- Fica irritado ou até agressivo quando você pede para que largue do celular;
- O desempenho escolar, nos esportes ou num hobby começa a cair.
Uma vida familiar harmoniosa tende a ser mais protetiva aos pequenos. Comece sinalizando que ele está ficando mais horas nos jogos, deixando de dormir e acordando cansado por ter passado a noite jogando. Geralmente, tendem a não concordar e falar que os pais estão exagerando.
Há quem sugira que a sociedade moderna é mais aberta à discussão sobre saúde mental, então o que estamos vendo é também um aumento dos relatos.
Diante desse cenário, o que podemos fazer? Eu, como pediatra, digo: “educar não só as crianças, mas também os pais”. Como mostram os casos de obesidade e tabagismo, campanhas públicas e enfadonhas são pouco eficazes diante da força de um vício. Então o assunto precisa ganhar as casas, as ruas, as empresas; um amplo debate.
Não podemos esperar para ver que tipo de adultos serão as crianças hoje expostas aos estímulos digitais. Oferecer alternativas de lazer, segurança para que brinquem fora de casa, interajam, tenham uma pracinha para rolar na areia, uma quadra esportiva para jogar bola, um livro para ler, e pais bem-informados dentro de casa. Tudo isso é uma obrigação nossa, como sociedade.
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