Sociedade civil quer veto integral ao PL do Marco Temporal

Sociedade civil quer veto integral ao PL do Marco Temporal

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Aprovado pelo Senado na última quarta-feira (27/9), o Projeto de Lei do Marco Temporal (PL nº 2903/2023) agora está nas mãos do presidente Lula. É ele quem tem a atribuição de vetar ou sancionar a proposta que, além de inconstitucional, ameaça a integridade das Terras Indígenas (TIs), os povos isolados e o futuro do planeta.

Organizações indígenas, indigenistas e a sociedade civil pedem o veto integral do projeto que pretende transformar em lei o “marco temporal” – tese já declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Caso o presidente decida pelo veto, o texto volta  para análise do Congresso Nacional, que pode derrubá-lo. Nessa hipótese, a lei entraria em vigor e poderia ser questionada na Suprema Corte.

“O texto aprovado pelo Congresso Nacional constitui a mais grave violação dos direitos constitucionais dos povos indígenas desde a redemocratização do País e contraria frontalmente o interesse público”, afirma o Instituto Socioambiental (ISA) em Nota Técnica enviada à presidência da república. “Além disso, o PL pode inviabilizar políticas públicas socioambientais que constituem a essência do projeto de governo apresentado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.

O PL ressuscita princípios de um projeto racista da Ditadura Militar, que previa a assimilação cultural forçada dos indígenas. Isso porque, entre outros absurdos, institui a possibilidade de que os indígenas percam suas terras caso o Estado verifique “alteração dos traços culturais da comunidade” ou “outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”.

Além disso, ao premiar os invasores de Terras Indígenas e flexibilizar a política de não-contato com povos indígenas isolados, a proposta do Senado pode fazer com que esses grupos sejam dizimados.

Veja os pontos mais graves do PL do Marco Temporal:

– Permite que a demarcação seja contestada em todas as fases do processo, inviabilizando sua conclusão
– Permite a anulação de “reservas indígenas”;
– Impede a retirada de invasores das TIs enquanto o processo de demarcação não for concluído;
– Autoriza a instalação de empreendimentos predatórios sem consulta livre, prévia e informada às comunidades;
– Impõe um “marco temporal” já julgado inconstitucional pelo STF;
– Autoriza contatos forçados com indígenas isolados, especialmente vulneráveis a doenças e conflitos;
– Autoriza a plantação de transgênicos em TIs, o que hoje é proibido

Apelo à ONU

Na terça-feira (3/10), organizações indígenas e não indígenas da sociedade civil enviaram à Organização das Nações Unidas (ONU) um apelo urgente para que a organização recomende ao Estado brasileiro o veto integral à proposta “como única medida capaz de garantir a dignidade existencial dos povos indígenas e suas terras”.

O documento foi endereçado ao relator especial sobre direitos dos povos indígenas, José Francisco Cali Tzay, e à relatora especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, Mary Lawlor.

O apelo é assinado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Comissão Arns, Conectas Direitos Humanos, Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Greenpeace e pelo Instituto Socioambiental (ISA).

“Sancionar um projeto como esse contraria os  padrões internacionais de direitos humanos e os compromissos assumidos pelo presidente na agenda socioambiental”, analisa Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. “Infelizmente, temos um Congresso Nacional que ainda quer impor pautas da extrema direita, com ataques sistemáticos e gravíssimos aos povos indígenas e às florestas. Essa afronta atinge não apenas os povos indígenas, mas toda a sociedade brasileira. Merece a indignação de todos nós que desejamos um país mais socialmente justo e ambientalmente diverso. Por isso, o veto integral é a única saída para o Presidente Lula.”

Em outra nota técnica, divulgada em agosto de 2023, o ISA já apontava para a inconstitucionalidade da proposta e sugeria sua rejeição pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Confira abaixo detalhes de alguns dos pontos mais graves do PL aprovado pelo Congresso:

É uma ameaça a todas as Terras Indígenas do país

As Terras Indígenas com processos de demarcação não finalizados são as que mais diretamente podem ser impactadas pelo PL. O projeto pode retroceder processos que estão há mais de 30 anos na fila de espera por um desfecho positivo, isso porque todos os processos em curso terão que ser adequados à nova Lei.

Existem hoje 240 processos de demarcação ainda não finalizados, em diferentes etapas. São 66 TIs declaradas; 46 delimitadas e outras 128 em estudo, incluindo seis áreas com portarias de interdição para proteção de povos indígenas isolados. Quase metade dessas TIs já têm limites reconhecidos pela Funai e abrigam cerca de 300 mil pessoas indígenas – que estarão em grave vulnerabilidade se as demarcações não forem finalizadas.

Permite a anulação de reservas indígenas

O artigo 16 do PL coloca em risco as Reservas Indígenas ao prever a retomada desses territórios pela União a partir de critérios subjetivos e racistas como a “alteração dos traços culturais da comunidade” ou “outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”.

Existem 54 Reservas Indígenas no país, áreas já consolidadas e a maior parte delas com extensões territoriais bastante reduzidas e com grande densidade demográfica. Com o PL, a situação dos povos que vivem em Reservas fica ainda pior, porque a expectativa de anulação desses territórios pode aumentar invasões e conflitos. A proposição do PL fere ainda o direito adquirido dos indígenas e o ato jurídico perfeito, direitos garantidos a todas as pessoas no Brasil.

Impede que invasores sejam retirados das Terras Indígenas enquanto não acabar o processo de demarcação

Outro ponto trazido pelo PL garante a indenização pela “terra nua” a posseiros –  realizada, de acordo com a decisão do Supremo, apenas nos casos de ocupação de boa fé e pelas benfeitorias realizadas até a conclusão da fase de identificação da TI.

Atualmente, o processo de indenização pode levar mais de 20 anos para ser concluído, como é o caso da Terra Indígena Xukuru, do povo Xukuru, em Pernambuco, que levou 24 anos para ser finalizado.

Além disso, o projeto também assegura a manutenção de invasores nos territórios indígenas até a conclusão do processo de demarcação, colocando em risco a vida dos povos e a preservação das áreas que mais barram o avanço do desmatamento e protegem a floresta.

Impõe um “marco temporal” já julgado inconstitucional pelo STF

No dia 21 de setembro, por 9 votos a 2, o STF rejeitou a tese anti-indígena do “marco temporal”. Na semana seguinte, entretanto, o Senado aprovou o PL do Marco Temporal. Para o STF, ficou definido o artigo 231 da Constituição Federal

Em contrapartida, com o PL, o Senado usa seus últimos subterfúgios para resgatar uma tese julgada inconstitucional, gerando ainda mais insegurança física e jurídica aos povos indígenas.

Põe fim à política de “não contato” com indígenas isolados

Na contramão de todas as políticas públicas já estabelecidas para a proteção dos povos indígenas isolados, o PL do Marco Temporal quer pôr fim à política de não contato com esses grupos, que optaram por viver afastados de outros povos indígenas ou dos não indígenas.

O Brasil é o país com maior número de indígenas isolados no planeta: são hoje 115 registros de isolados reconhecidos pelo Estado brasileiro, sendo 29 confirmados e outros 86 em investigação.

Sob a justificativa ampla e vaga de “interesse público”, o PL quer viabilizar o contato forçado com esses grupos, desconsiderando seu direito à autodeterminação e revivendo a desastrosa  política estabelecida na Ditadura, que resultou em uma escalada sem fim de violência, no contágio por doenças e no extermínio de povos inteiros.

Atualmente, a política de “não contato” é o que garante a esses povos o seu direito ao isolamento e ao território – e os contatos acontecem apenas em situações extraordinárias, de riscos à saúde e integridade física, ou em casos em que a aproximação seja feita pelo próprio grupo.

Permite que a demarcação seja contestada em todas as fases do processo, inviabilizando sua conclusão

Um dos dispositivos do PL visa modificar o procedimento de demarcação. Pela regra aprovada pelo Senado, qualquer interessado, em qualquer momento do processo, pode questionar o procedimento.

Atualmente, durante o processo de demarcação, todos os interessados podem se manifestar dentro de prazos determinados, assim como acontece em todo procedimento administrativo, sob pena de inviabilizar a atividade estatal. Na prática, o PL tornará as demarcações uma “corrida de obstáculos” para o Estado brasileiro, o que poderá inviabilizar novas  demarcações ou tornar ainda mais lento um processo que, em alguns casos, pode levar décadas para ser concluído. Desta maneira, o projeto condena gerações de indígenas a morrerem sem ter seu território demarcado e sem segurança para as gerações futuras.

Autoriza a plantação de transgênicos em TIs, o que hoje é proibido

O artigo 30 do PL libera o cultivo e a pesquisa de transgênicos em Terras Indígenas, o que é proibido pela lei 11.460/2007. Essa liberação poderá exterminar a diversidade biológica e agrícola desses territórios e colocar em risco a segurança alimentar das comunidades. As inúmeras sementes de milho crioulo, por exemplo, manejadas pelos indígenas milenarmente, poderão simplesmente desaparecer a partir da contaminação oriunda do milho transgênico.

As práticas e saberes dos povos indígenas, com sistemas agrícolas próprios, contribuem para proteger a agrobiodiversidade – alguns deles, reconhecidos como patrimônio cultural do Brasil. Existem registros de que populações pré-colombianas já manejavam mais de 120 espécies nativas, além de terem sido responsáveis pela domesticação de paisagens e plantas, como a mandioca, a erva mate e a castanha, e pela produção de solos de alta fertilidade, como as Terras Pretas de Índio (TPI) na Amazônia.

 

Fonte: Instituto Socioambiental

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