Alerta ligado contra o bullying nas escolas do Distrito Federal
O bullying pode afetar, significativamente, o bem-estar e o desenvolvimento das crianças, de acordo com especialistas. Dados mais recentes da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, no Distrito Federal, em 2019, 21,8% dos estudantes entre 13 e 17 anos, tanto de escolas públicas quanto de particulares, sofreram algum tipo de humilhação ou provocação por parte dos colegas, duas ou mais vezes — o percentual sobe para 22,1% quando se contabiliza apenas a rede pública e cai para 20,8% no recorte das instituições privadas. O cenário é tão grave que, desde 15 de janeiro deste ano, praticar bullying e cyberbullying vira crime (leia O que diz a lei?).
No início do mês, um adolescente de 15 anos que estuda no Centro Educacional São José, em São Sebastião, feriu colegas e professores da instituição de ensino. Durante o interrogatório prestado na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), o menor confessou o crime e disse que sofria bullying em razão da aparência física e relatou que era xingado frequentemente.
A autônoma W.F., 30 anos, conta que seu filho, 10, foi vítima de bullying por causa de seu aspecto emocional, desde 2021, em uma escola pública do Setor O. “Todas as vezes que ele fazia uma atividade, ele se sentia mal por não acertar e acabava chorando. Por isso, ele era zombado. Alguns alunos ficavam rindo dele, em grupos. Falando: ‘Vai chorar de novo?’; ‘Só consegue fazer as coisas chorando’; ‘vai lá chorar para sua mãe’. Esse tipo de zombaria”, relata.
Segundo W.F., isso mexeu com o filho ao ponto de ele pedir para não ir à escola. “Tinha medo, pois, se fosse, sabia que ia chorar”, comenta. Ela teve que mudar o filho de escola, em 2022, matriculando em outra escola pública, em Ceilândia. Mesmo assim, o bullying continuou. “Achava que o problema era a escola, mas acabei percebendo que é uma questão de cultura”, lamenta. A moradora de Ceilândia afirma que as coisas só mudaram no ano passado, quando ela foi até a escola. “Foi preciso conversar com a professora e ir atrás das pessoas que estavam fazendo aquele tipo de zombaria, para ele ter vontade de continuar naquele ambiente”, conta a mãe.
“A professora da criança chegou a fazer um projeto sobre bullying. Isso fez com que o problema amenizasse dentro dos muros da escola”, elogia. Só que, de acordo com W.F., a questão continuou fora da escola. “Se encontram com ele na rua, ainda tem gente que zoa e fica jogando piada. Ele acha que não consegue fazer amigos por causa disso”, lamenta a mãe.
A autônoma desabafa que se sente impotente em relação ao problema. “A gente não tem controle de tudo. A minha parte eu fiz, falei para ele não se importar com aquilo, mas, é muito difícil, porque não basta eu orientar, se a educação que vem de outras pessoas não está fluindo”, ressalta. “Por mais que a escola fale, explique e tenha trabalhos referentes ao tema, a constância vindo da família, às vezes, não acontece. Sinto que falta, no núcleo familiar, essa questão de intervir, de conversar e de orientar”, avalia.
Traumas
Isabella Cerqueira, 19, também foi vítima de bullying, ainda criança, enquanto cursava o ensino médio em uma escola particular no Riacho Fundo, em 2012. “Elefante colorido”, “botijão com roupinha” e “boizão” foram alguns dos insultos que ela recebeu de um grupo de meninos, devido ao seu peso. A mãe dela estava internada, por causa de uma gravidez de risco e, segundo Isabella, essa mudança de aparência foi uma reação negativa à falta que sentia da mãe.
Mais tarde, os insultos se tornaram violência. “Chegou a acontecer de eles me baterem. Jogaram vários livros na minha cabeça e me empurraram na parede”, narra Isabella. O mesmo grupo também fez piada da morte do irmão-bebê, que não resistiu à gravidez de risco. A vítima conta que desenvolveu ansiedade e depressão.
Segundo Isabella, o processo de superação não foi fácil. “Foi quando comecei a crescer, mas, mesmo assim, não me via como o padrão das meninas que eu tinha contato. Certa vez, entrei em depressão profunda, após o término de um relacionamento, e emagreci 18kg”, recorda. “Depois dessa fase de sofrimento, passei a me olhar no espelho e me sentir maravilhosa. Só conseguia pensar que eu venci a pior fase da minha vida. Hoje, me sinto realizada com o corpo que tenho, mas foi muita luta para chegar até aqui”, descreve.
Sinais
Professor de medicina do Ceub, o psiquiatra Lucas Benevides afirma que o bullying é um problema grave, que pode afetar significativamente o bem-estar e o desenvolvimento das crianças. “Pode levar a sentimentos de tristeza, ansiedade, baixa autoestima e, em casos graves, a pensamentos suicidas”, alerta. “A criança também pode se isolar, ter dificuldades em fazer ou manter amizades, e desenvolver desconfiança em relação aos outros”, acrescenta.
Benevides reforça que o lado cognitivo da criança e do adolescente também é afetado. “O desempenho escolar pode cair, com possíveis notas baixas e desinteresse pelos estudos. Além disso, o estresse crônico, causado pelo bullying, pode resultar em problemas de saúde física, como dores de cabeça, distúrbios do sono e problemas digestivos”, detalha.
De acordo com o psiquiatra, no caso de algum desses sinais, os pais desempenham um papel fundamental no apoio à criança. “Mostre que você está lá para ouvir e acredite no que seu filho está dizendo. Validar seus sentimentos é fundamental”, aconselha. “Ofereça conforto, assegure que seu filho não está sozinho e que o bullying não é culpa dele”, orienta.
O especialista ressalta a necessidade de comunicar os casos de bullying à escola. “Entre em contato com a unidade para informar sobre a situação e trabalhar em conjunto para encontrar soluções. É importante que a escola tome medidas para prevenir e combater o bullying”, afirma. “Além disso, ajude seu filho a desenvolver formas de lidar com o bullying, como técnicas de assertividade, ignorar provocações, e buscar apoio de amigos ou adultos de confiança”, assinala Benevides.
Diálogo
Especialista e também gerente em educação, o pedagogo Renato Domingues lamenta que o bullying nas escolas seja um assunto do que, normalmente, pais, unidades de ensino, educadores e até as próprias crianças e adolescentes preferem fugir ou deixar de lado. “É um tema delicado de ser tratado e, muitas vezes, mesmo com um grau de importância tão relevante, as pessoas preferem fazer de conta que nada está acontecendo”, comenta. “Isso corrobora mais ainda para que o bullying se perpetue ou acabe iniciando em alguns ambientes de ensino”, observa Domingues.
De acordo com o pedagogo, o poder público deve falar mais sobre esse assunto com escolas e famílias. “É preciso conscientizar, tanto aqueles que praticam o bullying, sobre o problema de se fazê-lo, quanto quem sofre, falando quantas alternativas ele tem e o que ele pode fazer em situações como essa”, ressalta. “Também pode-se conversar com o terceiro, que é o espectador passivo que, normalmente, está assistindo o colega sofrer bullying e nada faz para coibir”, enfatiza.
Para Domingues, as escolas e o poder público também podem trabalhar com a inteligência emocional. “Quando um aluno agride alguém com o bullying, significa que ele tem, emocionalmente falando, traumas que não resolveu. E uma forma de ele se ver livre desse trauma é fazendo bullying com outro”, explica. “Ao mesmo tempo, aquele que sofre com a prática, conhecendo a si mesmo, suas emoções e seus limites, o bullying não vai afetá-lo”, conclui.
Ações
Apesar dos impactos negativos para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, a Secretaria de Educação (SEEDF) não tem nenhum levantamento sobre o número de casos ocorridos na rede pública. Os dados mais recentes consolidados pela pasta, do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), apontam que 84% dos diretores, em 2019, tinham algum projeto voltado para o bullying na escola gerida por eles. Como só recentemente a prática virou crime, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) também não tem informações consolidadas. Os dados de 2024 serão colhidos ao longo do ano pelo IBGE e divulgados no ano que vem.
Ao Correio, a chefe da Assessoria Especial pela Paz nas Escolas da SEEDF, Ana Beatriz Goldstein, afirma que a pasta desenvolve ações com vistas a promover a paz, a cidadania, a solidariedade, a tolerância e o respeito ao pluralismo e à diversidade nas unidades escolares da rede pública de ensino do DF. “Temos atividades com os professores, como oficinas, palestras e formações que são promovidas pela Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação (Eape), ao mesmo tempo em que preparamos esses profissionais para o entendimento dos aspectos que envolvem o combate ao bullying e ao cyberbullying”, ressalta.
De acordo com Ana Beatriz, a Secretaria de Educação disponibilizou no início do ano para todas as escolas da rede o Guia de Valorização da Vida — Orientações e prevenção ao bullying, automutilação e suicídio na escola. “O documento visa promover ações pedagógicas, debates e reflexões com os profissionais da secretaria, relacionadas ao bullying, suicídio e automutilação”, detalha.
“A ideia do documento é orientar os profissionais para além de uma ótica remediativa e punitiva, visando refletir de que forma podemos trabalhar no cotidiano da escola de maneira preventiva, alinhando propostas de ações que contribuam para a formação e para o desenvolvimento integral dos estudantes, famílias e comunidade escolar”, acrescenta Ana Beatriz.
Presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Distrito Federal (Sinepe-DF), Ana Elisa Dumont reconhece a gravidade do bullying nas escolas do DF e reitera o compromisso em combater essa prática. “Trabalhamos em estreita colaboração com as escolas associadas, educadores, pais e autoridades locais para promover uma cultura escolar de respeito e inclusão, implementar políticas e procedimentos claros para lidar com o tema e fornecer apoio adequado para vítimas e agressores”, comenta.
Ana Elisa acredita que, juntos, é possível criar um ambiente escolar seguro e positivo para todos os alunos. “O Sinepe-DF tem realizado diversas ações em parceria com o Batalhão Escolar, Polícia Militar e Secretaria de Segurança, por considerarmos que o ambiente escolar é um espaço de desenvolvimento e acolhimento dos estudantes. Estamos empenhados em prevenir o bullying e auxiliar os colaboradores da escola a identificar possíveis casos”, reforça.
A presidente ressalta a importância da educação socioemocional. “Por meio dela, fortalecemos nossos estudantes para lidar com situações adversas, seus sentimentos e atitudes”, afirma. “Destacamos que o tema foi abordado nos seminários para gestores realizados em 2022 e 2023, complementando os esforços no âmbito da segurança escolar”, conclui Ana Elisa.
O que diz a lei?
Bullying — Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais. Pena: multa, se a conduta não constituir crime mais grave;
Cyberbullying — Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real. Pena: reclusão de dois anos a quatro anos e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Fonte: Lei nº 14.811/2024
Prevenção
– O “Caderno Orientador – Convivência Escolar e Cultura de Paz”, que aborda as temáticas em questão, sendo suporte aos professores, gestores e demais profissionais da educação;
– “Fluxo de encaminhamento de estudantes com demandas de saúde mental e/ou dificuldades no desenvolvimento e aprendizagem”, que é uma parceria da Secretaria de Educação com a Secretaria de Saúde. O objetivo é que o atendimento seja integrado, garantindo a troca de informações entre as pastas;
– Orientação educacional em parceria com pedagogos e psicólogos escolares do Serviço Especializado de Apoio à Aprendizagem (SEAA), que atuam na prevenção, acolhimento, intervenção educacional e acompanhamento das situações relacionadas às de violências múltiplas, entre elas, o bullying. Nesse sentido, as equipes de apoio favorecem a promoção do desenvolvimento integral dos estudantes, bem como da promoção da cultura de paz junto à comunidade escolar.
Fonte: SEEDF
Principais tipos
Bullying físico
Agressão física direta, como bater, chutar, empurrar, ou qualquer forma de violência que cause dano físico;
Bullying verbal
Uso de palavras para humilhar, insultar, fazer piadas maldosas ou ameaçar a vítima;
Bullying psicológico ou emocional
Ações que causam dano emocional, como exclusão social, espalhar boatos, manipulação de amizades, ou qualquer outra forma que cause isolamento ou sofrimento psicológico;
Cyberbullying
Bullying praticado por meios eletrônicos, como redes sociais, mensagens de texto, e-mails, e outros. Pode incluir todos os tipos de bullying verbal e psicológico, mas realizado on-line.
Fonte: Lucas Benevides, psiquiatra e professor de medicina do Ceub
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