O impacto da tragédia do Rio Grande do Sul para crianças e adolescentes
Em meio à tragédia do Rio Grande do Sul, vi numa reportagem a reprodução de um desenho de uma criança de seis anos, abrigada numa instituição do estado, que me emocionou. A imagem, um emaranhado de rabiscos sem forma, com um sol escondidinho no alto da página, traduz, em preto e branco, a dramática situação que essas crianças e adolescentes estão vivendo.
De acordo com o relatório Crianças, adolescentes e mudanças climáticas no Brasil, publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 2022, por estarem em uma fase mais sensível de desenvolvimento, crianças e adolescentes são os que mais sofrem os impactos das mudanças climáticas. Também são os que vão conviver por mais tempo com as suas consequências.
Em entrevista a esta coluna, o médico Halim Girade, que atuou 18 anos no Unicef no Brasil e hoje é coordenador do Comitê Técnico da Primeira Infância do Instituto Rui Barbosa, uma associação civil criada pelos Tribunais de Contas do país, lembra que as consequências de eventos climáticos extremos, como o do Rio Grande do Sul, são “gravíssimas” para as crianças, especialmente as pequenas, e incluem deslocamentos forçados, eventual separação dos pais, ausência de serviços de saúde, falta de água potável e alimentação, afastamento das aulas, sem falar nos abusos a que estão expostas em abrigos, além de situações traumáticas que necessitam de atendimento emocional e psicológico com urgência.
“A situação do Rio Grande do Sul, que já não é ideal para as crianças nos indicadores socioeconômicos, com esse desastre tende a se agravar e a aprofundar ainda mais as desigualdades”, diz ele, com base nos dados do Portal do Pacto Nacional pela Primeira Infância que aponta diversos índices em amarelo (cuidado e alerta) e no vermelho (alerta máximo) no estado, como o percentual da população atendida pela rede de coleta de esgotos (36%, em 2022) e de crianças em creches (42,8%, em 2022).
Responsável durante muitos anos pelo enfrentamento às emergências no Unicef, Halim atuou em catástrofes, como a das enchentes na Bolívia e a do terremoto no Haiti. Segundo ele, nessas situações uma das principais iniciativas era providenciar cadernos, livros, canetas e, principalmente, um lugar improvisado, mas seguro para as atividades escolares. “As crianças precisam urgentemente retomar suas atividades, mesmo que de forma improvisada”, diz ele.
PREJUÍZOS NA EDUCAÇÃO
Dados preliminares do governo do estado, divulgados no dia 10/5, indicam que pelo menos 976 escolas estaduais foram afetadas, impactando, no total, 338.744 estudantes, mais da metade da rede, que tem 750 mil alunos.
O número de escolas municipais atingidas está sendo levantado pela União dos Dirigentes Municipais de Educação do Rio Grande do Sul (Undime-RS) com os secretários de Educação dos municípios. Ainda há municípios que não conseguiram informar os dados em função da falta de comunicação ou mesmo de acesso físico à secretaria.
Segundo levantamento preliminar realizado pela Undime do Rio Grande do Sul, 843 das 3.745 escolas municipais foram afetadas. No total, cerca de 1,8 mil escolas estaduais e municipais foram impactadas pela tragédia.
“Não conseguimos ainda ter uma noção do tamanho dos estragos”, desabafa Maristela Guasselli, presidente da Undime Rio Grande do Sul e secretária de educação de Novo Hamburgo (RS), em entrevista à coluna. Segundo ela, os números vêm sendo constantemente atualizados e certamente ainda há muito trabalho pela frente. “É necessário uma força-tarefa para retirar os entulhos e dar acesso às escolas, investimento para colocá-las em pé de novo, além de cuidado com a saúde mental das famílias, crianças, professores e funcionários das secretaria, todos extremamente abalados”, enumera.
Por enquanto, ainda não há previsão para o retorno às aulas. Gestores municipais de educação do estado descrevem um cenário desolador, com destruição total de escolas, falta de acesso à alimentação escolar e número elevado de professores e profissionais de educação que tiveram suas moradias alagadas.
O cenário é considerado ainda mais grave do que o da pandemia de Covid-19, quando os professores conseguiam pelo menos dar aulas de casa. Agora, muitos tiveram suas residências completamente destruídas.
Diante de todos esses problemas, o calendário escolar deve ser reorganizado e as regras e os procedimentos educacionais flexibilizados, como aconteceu durante a crise sanitária.
NÃO HÁ ESTIMATIVA DO NÚMERO DE PESSOAS SEM DOCUMENTOS, UM DIREITO BÁSICO
De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), “ainda não é possível precisar, nem estimar, a dimensão quantitativa das pessoas que estão sem acesso à documentação”, um direito básico que permite o acesso a outros direitos. Esse levantamento está sendo feito pelo MDHC, em conjunto com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o governo estadual.
Do início da catástrofe até o dia 9/05, o canal de denúncias Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do MDHC, registrou ainda 54 denúncias e demandas da sociedade civil.
O Unicef calcula que, no mundo todo, passa de dois bilhões o número de crianças expostas a mais de um risco, choque ou estresse climático/ambiental. No caso do Brasil, a organização estima que mais de 40 milhões de crianças e adolescentes (60% do total) estão expostos a mais de um risco climático, sendo que mais de 7,3 milhões deles estão expostos aos riscos decorrentes de enchentes fluviais, como aconteceu no Rio Grande do Sul.
Durante a abertura da cúpula do clima, em outubro de 2021, em Glasgow, na Escócia, António Guterres, secretário-geral da ONU, já alertava que a humanidade está “cavando a própria sepultura” por causa do ritmo crescente das emissões de gases do efeito estufa em que estamos imersos desde a Revolução Industrial.
O Brasil é parte relevante da crise global e também dos caminhos para enfrentá-la, lembra o relatório do Unicef. O país está entre os maiores emissores brutos de CO² e, ao mesmo tempo, abriga em seu território 60% da floresta amazônica, um dos ecossistemas essenciais para o clima e a biodiversidade do planeta. As dramáticas imagens das enchentes no Rio Grande do Sul mostram, ao vivo e em cores, que precisamos agir rápido. Não há mais tempo a perder e as crianças e adolescentes, como sempre, são as principais vítimas.
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