Mesmo com número maior de pretendentes a pais e mães, crianças permanecem na fila de adoção, no Ceará; entenda

Veículo: Globo.com - BR
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Adoção: Especialistas apontam que o racismo no Brasil é um dos fatores que torna os perfis de crianças e adolescentes não-brancos mais rejeitados

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Foto: TJMT

O pequeno Samuel ganhou um novo lar aos cinco anos. Ele foi adotado por um casal de São Paulo, Filipe Loyola e Mayumi Itami, que quiseram deixar as opções abertas no processo de adoção.

A criança convive com uma síndrome rara, mas isso não foi empecilho para o casal – muito menos sua etnia. No entanto, a história de Samuel não reflete o cenário da adoção no Ceará, que é o de rejeição à perfis como o dele.

Crianças com, no máximo, três anos, do sexo feminino e brancas: este é o perfil padrão ‘desejado’ por pretendentes a adoção no Brasil.

Novos dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento revelam, no entanto, uma disparidade entre os perfis mais solicitados e a realidade: no país, quase 70% das crianças aptas para adoção têm mais de oito anos e são negras.

No Ceará, a história não é diferente. O mesmo levantamento mostra que há 164 crianças e adolescentes disponíveis para adoção e mais de mil pretendentes a pais e mães.

Destas 164, 67,7% são pardas – uma maioria de 111 pessoas.

Especialistas apontam que o racismo no Brasil é um dos fatores que torna os perfis de crianças e adolescentes não-brancos mais rejeitados. Em nota, o Conselho Nacional de Justiça explicou que a classificação racial do SNA tem como referência a do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

“Sobre quem classifica, isso depende. Se a criança ou adolescente for capaz de compreender, ele pode se autodeclarar. Caso não seja possível, cabe ao magistrado, como gestor do SNA, declarar a etnia.”, disse o conselho.

Mas, além disso, o que explica a preferência pelo perfil citado no início da matéria durante o processo de adoção? E qual o impacto social dessa predileção?

Adoção romantizada

A defensora pública Noêmia Landim, do Núcleo da Infância e da Juventude da Defensoria Pública do Ceará, explica sobre a primeira parte do problema.

Segundo ela, um aspecto cultural muito importante opera na lógica: a preferência pelo sexo feminino vem de uma ideia sexista de que as meninas seriam mais “dóceis e fáceis de lidar”.

“Está dentro desse contexto estrutural de como a mulher é identificada, como essa pessoa mais dócil, tranquila. Entretanto, a gente percebe que as famílias estão felizes com os meninos adotados. A gente não tem tanto retorno negativo por conta do sexo da criança”, explicou.

A predileção por crianças mais novas também segue a mesma lógica, de acordo com a defensora. Existe a ideia comum de que um recém-nascido é mais fácil de se adaptar a uma nova família e de que as vivências trazidas por crianças mais velhas ou adolescentes possam trazer muita complexidade.

Para ela, existe um processo de romantização da adoção. Ou seja, quando um pai ou mãe pretendente decide adotar, as expectativas sobre como a criança deve ser são altas, como se pudessem “fabricar” uma criança sob medida. A ideia, por si só, é falha, como aponta a defensora:

“Basta fazer uma analogia: quando você engravida, não sabe se aquele teu filho vai ter algum problema de saúde, não sabe como vai ser a personalidade dele, se vai ter algum tipo de deficiência. Mas a família, geralmente, acolhe da melhor forma possível. Da mesma forma, quando você adota uma criança, não sabe se vai se adaptar tão facilmente. Mas, a pessoa que se cadastra, passa por todo um procedimento para ter noção da responsabilidade dela.”, disse Noêmia.

Ela comenta que essa romantização também é um dos fatores que explica a disparidade entre crianças disponíveis para adoção (164 no Ceará) e pais e mães pretendentes (mais de mil).

Conhecido por ser um processo demorado, um estudo recente do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) mostrou que o tempo médio de espera para se adotar em Fortaleza é de quatro anos e cinco meses.

A estimativa na capital cearense, no entanto, já chegou a ser de dois anos e dez meses em janeiro de 2020. Segundo o órgão, a pandemia contribuiu para que o tempo aumentasse e chegasse ao número atual.

Até serem adotadas, as crianças e adolescentes ficam em acolhimento. Em Fortaleza, são 22 locais preparados para isso. Eles estão divididos entre organizações não governamentais e abrigos da prefeitura.

A defensora Noêmia Landim também conta que o processo de adoção é composto por diversas etapas, desde o momento em que o pretendente mostra interesse em adotar até a guarda permanente (abaixo entenda o passo a passo) – e isso pode explicar um pouco a demora.

“Primeiro tem que se cadastrar no Sistema Nacional de Adoção e entregar toda a documentação. Depois do cadastro, eles vão participar de cursos. Depois, são feitas entrevistas e visitas nas casas dessas pessoas. Existe uma reclamação de que a Justiça é morosa. Mas, mesmo com tantas diligências, existem casos de devolução. Se a Justiça vai entregar uma criança ou um adolescente que já passou por toda uma situação de negligência, abandono, violência física e sexual, você só pode entregar se tiver todos os registros de que aquela família pode receber aquela criança”.

O g1 solicitou ao Conselho Nacional de Justiça o número de crianças que foram devolvidas nos últimos cinco anos no Ceará e aguarda resposta.

Em casos em que há devolução, uma indenização é colocada pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública. A devolução, no entanto, pode trazer sequelas para o resto da vida:

“A criança já é sofrida. Se ela foi inserida no SNA, é porque a família biológica foi destituída. E, se foi instituída, é porque algo grave aconteceu, exceto naqueles casos de entrega legal. Isso gera um dano para a criança. Essa indenização é uma ação de reparação de danos emocionais e morais. A reparação financeira é a medida que se tem mas, mesmo assim é insuficiente, muitas vezes, para os danos que a criança vai levar para o resto da vida. A gente teve um caso em que a criança foi devolvida e hoje ela se culpa”, relatou Noêmia.

No Brasil, para que uma criança esteja disponível para adoção, é preciso, obrigatoriamente, o aval do Judiciário – o que só ocorre em duas situações:

  • Quando a mãe entrega voluntariamente o/a filho(a) para este fim;
  • Quando, após ter direitos violados, essa criança ou esse adolescente é retirada(o) do ambiente onde vive, levada(o) para abrigo público, destituída(o) do vínculo familiar pela Justiça e cadastrada no Sistema Nacional de Adoção (SNA).

Por fim, a defensora diz que a preferência por crianças de um perfil específico é também o reflexo de uma sociedade estruturada de forma racista. No entanto, o tema precisa ser estudado com mais profundidade, até para facilitar a criação de projetos que mudem esse cenário.

“É tentar desmistificar um pouco essa ideia de que existe um perfil de criança ou adolescente ideal. O amor acontece em diversas situações que a vida apresenta. É importante fazer com que as pessoas percam o medo, o receio, e se deem a chance de conhecer essas crianças. Os casos que a gente vê que se permitiram, as famílias estão extremamente felizes”, disse Noêmia Landim, do Núcleo da Infância e da Juventude da Defensoria Pública.
Preconceito pode levar a “crise social e humanitária”

A secretária executiva da Igualdade Racial do Ceará, Martir Silva, concorda que os dados podem mostrar uma repercussão do racismo estrutural, que faz com que pessoas negras sejam preteridas desde a infância (e em várias áreas da vida).

“Muitas vezes somos levados a acreditar que o racismo é um problema da sociedade adulta. Não é. O racismo é um problema da sociedade em todas as dimensões e fases da vida da pessoa. A sociedade nasce bebê e muitas vezes é possível detectar o racismo antes do nascimento”, explicou Martir.

De acordo com a secretária, é possível atribuir a baixa adoção de crianças não-brancas à essa “prática racista” de criar expectativa sobre uma pessoa “ideal”.

“O sujeito ideal é uma pessoa branca. Até a estética (do que é bonito) é muito atribuída à brancura, aos olhos claros, aos cabelos lisos. Então, não seria de todo absurdo, do ponto de vista de análise social dessa situação, concluir que o racismo é um dos elementos que levam as pessoas a preferirem adoção de crianças brancas”, refletiu a especialista.

Martir também chama atenção para outro perfil excluído: o de crianças com deficiências. Conforme dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, em relação ao recorte, o Ceará tem o seguinte cenário:

  • Sem deficiência: 117
  • Deficiência Intelectual: 28
  • Deficiência Física e Intelectual: 14
  • Deficiência Física: 5

“Apesar de todos os avanços, temos uma sociedade muito higienista, capacitista. As deficiências são vistas como um estorvo.”, apontou.

O impacto negativo dessa rejeição chega primeiro, logicamente, nas crianças e adolescentes. No entanto, a sociedade inteira pode sofrer um “prejuízo social e humanitário” com o preconceito durante o processo de adoção, como chama Martir Silva.

Porque nós vamos ter uma parcela da população que vai estar dentro da sociedade e que não teve acesso a condições fundamentais da humanização: o afeto, o carinho, o cuidado, o amor recebido e doado. Vamos conviver com pessoas que não vão ter uma formação humana integral — Martir Silva, secretária executiva da Igualdade Racial do Ceará

Para a secretária executiva da pasta de Igualdade Racial do Ceará, para mudar esse cenário e começar a pensar na possibilidade de um mundo sem preconceito, a infância precisa ser um tema prioritário.

No Ceará, alguns projetos vêm sendo pensados para tentar investigar as consequências do preconceito racial desde a infância:

  • Oficinas

“Oficinas Municipais de Fortalecimento do Pertencimento Étnico Racial a partir da Infância com as Comunidades Quilombolas” tem o objetivo de sensibilizar os profissionais da Assistência Social, Educação e Saúde sobre os impactos do racismo no desenvolvimento infantil, além de trabalhar a temática com lideranças e povos de comunidades quilombolas.

  • Primeira Infância Antirracista (PIA)

Outro exemplo é a iniciativa Primeira Infância Antirracista (PIA), lançamento da Unicef. O projeto quer chamar a atenção de profissionais brasileiros da educação, assistência social e saúde sobre os impactos do racismo no desenvolvimento infantil.

A ideia é também “garantir um atendimento qualificado e humanizado, que leve em consideração as especificidades étnico-raciais das crianças e suas famílias, apoiando mães, pais ou cuidadores a exercer uma parentalidade positiva e estruturante das bases do desenvolvimento infantil.”

No Ceará, o PIA está em fase de desenvolvimento e tem sido feita uma conversa desde maio com prefeitos e secretários de Educação, Saúde e Assistência Social dos 34 municípios cearenses selecionados para a iniciativa:

Acaraú, Aquiraz, Araripe, Baturité, Beberibe, Brejo Santo, Caucaia, Crateús, Crato, Fortaleza, Granja, Horizonte, Icapuí, Iracema, Itapipoca, Itarema, Maracanaú, Mauriti, Missão Velha, Monsenhor Tabosa, Novo Oriente, Pacatuba, Pacujá, Poranga, Porteiras, Quiterianópolis, Quixadá, Salitre, São Benedito, São Gonçalo do Amarante, Sobral, Tamboril, Trairi e Tururu.

“Talvez tenhamos uma sociedade que é ignorante, do ponto de vista étnico-racial: aquela sociedade racista que não se enxerga como racista. Sabe que o racismo existe, mas está fora, não é com você e nem dentro da sua casa. Ao mesmo tempo, penso que o próprio Sistema de Adoção precisa criar um debate, um mecanismo de sensibilização das famílias para isso. Quais mecanismos? Uma formação para os pretendentes, formação dos profissionais que trabalham, etc”, concluiu Martir Silva.

Casal de São Paulo adotou criança cearense com síndrome rara

O pequeno Samuel ganhou um novo lar aos cinco anos. Filipe Loyola e Mayumi Itami tentavam engravidar há quase uma década quando decidiram adotar. Eles foram habilitados para adoção em 2019, mas não é que o casal teve uma grande surpresa?

No mesmo período em que entraram para a fila de adoção, Mayumi engravidou – um horizonte que parecia distante por questões de saúde. O presente foi em dobro: no ano seguinte, eles ganharam outro bebê.

Ainda assim, o casal não saiu da fila de adoção e, em abril deste ano, receberam a confirmação de que havia um menino disponível para conhecer uma nova família.

“A gente já tinha decidido que gostaria de ser pai e mãe, mas não tinha decidido qual seria a forma: se seria natural ou adoção. Resolvemos dar nosso nome para adoção e passamos pelo processo (psicólogo, assistente social). Fomos habilitados para adoção em 2019 e no mesmo mês minha esposa ficou grávida.”

O casal é de São Paulo, mas a distância não importava – muito menos a etnia ou possíveis deficiências. Assim que foram colocados em contato com uma assistente social de Fortaleza, a profissional explicou a condição de saúde de Samuel, que convive com a síndrome rara de Klippel-Feil, que afeta a coluna vertebral.

“Eu e minha esposa conversamos muito. Tivemos acesso ao histórico de saúde dele. Ficamos bastante impactados por uma criança ter passado por tanta coisa. Mas a gente resolveu dar continuidade, porque entendemos que foi uma criança que veio para a gente. Se tivesse sido pela gravidez tradicional, não iríamos dizer que não queríamos mais. Foi uma criança ligada a nós e nós a ela. A gente acredita que tinha de ser dessa forma”, comentou Filipe.

O professor e engenheiro biomédico é taxativo. Para Filipe, é preciso repensar o perfil da criança a ser adotada para abranger mais opções. Esta é a dica que ele dá para outros pretendentes a pais e mães:

“Nós colocamos que aceitaríamos crianças de até seis anos. Se você parar para pensar, até seis anos a criança ainda está na primeira infância. Mesmo que não venha um bebê, dentro da primeira infância, ainda está formando toda a parte cognitiva, afetiva, uma parte muito importante da vida que a gente pode participar. Outra coisa é a deficiência: às vezes a criança nasceu com uma coisa tão pequena e você vai deixar de aceitá-la por uma questão orgânica muito simples. Acho que vale a pena repensar esse perfil para abranger mais crianças que precisam de uma família, de um lar.”

Samuel, então, foi uma escolha muito fora da curva do que é praticado no Brasil: ele tem cinco anos, é negro e convive com uma deficiência. Tudo isso, no entanto, é muito pequeno para os pais, que agora esperam a guarda permanente do menino.

A nova família equipou a casa para receber o filho, que já está em São Paulo. Todos os procedimentos para o cuidado com sua saúde também foram ajustados. O período de adaptação tem sido um desafio, os pais não negam, mas conhecer Samuel é motivo de muita felicidade:

“Quando a gente começou a se envolver pela história do Samuel e percebeu a grandeza de um espírito que passou por tantos problemas e mesmo assim persistiu e lutou pela vida, isso nos comoveu bastante e tínhamos certeza de que ele era nosso filho e nós éramos os pais dele. O Samuel é uma criança muito amorosa. Ele quer estar junto, quer colo, carinho, quer abraçar. Ele dá risada por coisas simples e acho que a gente consegue suprir essa necessidade de uma forma muito natural. É gostoso e gratificante “, disse Filipe, emocionado.

A rotina da família, claro, sofreu mudanças. Como Samuel precisa de medicação e alimentação específicas, o casal precisou se movimentar sem deixar de lado as necessidades dos outros dois filhos – que até sentem um pouco de ciúmes, mas já não querem desgrudar de Samuel por nenhum minuto.

O primogênito já está na escola e tem adorado o novo ambiente. Felizmente, os colegas de classe têm acolhido Samuel de uma maneira saudável. O preconceito, no entanto, é uma palavra que faz parte das conversas entre a família:

“A gente já presenciou algum tipo de preconceito, mas felizmente foi pela menor parte das pessoas. A maioria das pessoas admira a história, acha bonita, se oferece para ajudar e auxiliar. O preconceito infelizmente existe, até mesmo dentro da própria família. Mas, infelizmente a gente já sabia disso. É inevitável”, lamentou o pai.

Até adotarem Samuel, o casal passou por um longo período de treinamento, o que faz parte do processo de adoção no Brasil. E mesmo após estarem com o novo membro da família, ainda precisam encerrar uma última etapa: esperar a guarda permanente.

Durante a guarda provisória, período em que eles estão agora, ainda contam com o acompanhamento de uma assistente social. Depois da guarda definitiva, que deve chegar em até três meses, uma nova vida surge, inclusive no sentido burocrático, já que Samuel ganhará novos documentos. Por enquanto, a família celebra o primogênito com a certeza de que ele era a peça que faltava:

“A questão da etnia nunca foi um problema para a gente, muito pelo contrário. E o fato de ter uma deficiência muito impactante, em um primeiro momento, nos assustou um pouco, vendo apenas no papel. Mas, depois, a gente começou a entender que é uma criança que tem o direito de ser amada, de ter uma família e que precisa de uma família para passar por algumas dificuldades existentes. É um ser humano que tem o direito de ter a melhor qualidade de vida possível.”, concluiu Filipe.

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