Infância vulnerável: estudo revela que mais de 500 crianças vivem em 30 ocupações na área central da cidade

Veículo: O Globo - RJ
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Levantamento contabilizou na região 69 espaços ocupados por moradia, onde estão pelo menos 2.475 famílias

Infância vulnerável
Foto: Gabriel de Paiva

Ao cruzar um portão de ferro no número 140 da Rua Santo Cristo, a quantidade de crianças impressiona, tanto quanto a precariedade e a insalubridade do lugar, batizado de Morar Feliz. Perto dali, no 53 da Avenida Venezuela, na Gamboa, os pequenos que vivem na Zumbi dos Palmares sobem e descem com agilidade os degraus parcialmente quebrados de um antigo prédio de nove andares do INSS, interditado pela Defesa Civil, infestado de ratos e com lençóis fechando os vãos das janelas.

As duas ocupações ficam justamente na Região Portuária, que passa por um processo de revitalização. Levantamento feito pelo Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ) e pela Central de Movimentos Populares (CMP) contabilizou, na área central do Rio — inclui 14 bairros, entre eles, Centro, São Cristo e Gamboa — 69 espaços invadidos, onde moram pelo menos 2.475 famílias. Nas visitas a 30 deles, os pesquisadores contabilizaram mais de 500 crianças e concluíram que, em 25% dos cômodos, residem mães solo, que sustentam sozinhas os filhos.

— Nossa casa é pobre — resume a menina de 6 anos, que mora com a avó Márcia Gomes Carlota dos Santos e a irmã de 5, na Ocupação da Paz, num casarão na Rua Visconde de Inhaúma (Centro), onde há um banheiro por andar, que precisa ser compartilhado.

Esperta, a menina está no primeiro ano do ensino fundamental, diz que quer “ser trabalhadora”, mas seu sonho, mesmo, é virar modelo. De férias e com poucos brinquedos, todos escangalhados, passa boa parte do tempo correndo na calçada com outras crianças do casarão.

Estudar faz parte da rotina da meninada que vive nas ocupações. Até porque, para as mães, a comprovação da frequência escolar dos filhos é uma das exigências para receberem o dinheiro do Bolsa Família, fundamental para bancar as despesas da casa. Já, na saúde, agentes de postos batem de porta em porta nas ocupações para vacinar e pesar as crianças.

Mães de seis

A Morar Feliz tem pouco mais seis anos. Num galpão abandonado, com dois prédios de três e quatro andares nos fundos, há cerca de 150 pequenos quartos improvisados, onde muitas vezes um colchão tem que ser compartilhado pelas famílias; a luz puxada da rua é fraca; e o esgoto transborda em alguns pontos.

É lá que vive Aline Martins, de 36 anos. Ela tem que acomodar no seu pedacinho cinco de seus seis filhos, com idades de 1 a 10 anos — a mais velha, de 18, saiu de casa. Aline passou por orfanato e foi moradora de rua. Hoje, depende do Bolsa Família e da venda de balas:

— O pai deles sou eu mesma. Com o mundo do jeito que está, não deixo minhas crias com ninguém. Se saio e meus filhos não estão na escola, carrego todo mundo.

Suzane Maria Alves, de 34 anos, também é mãe solo de seis e trabalha como camelô nas redondezas, além de ser secretária da associação de moradores da ocupação. O mais novo tem 1 ano e dois meses; o mais velho, 15.

— Todos vão ser pessoas do bem. — Um quer ser jogador de futebol; uma, advogada; outra, dançarina; outro, bombeiro; e outro, lutador de jiu-jítsu. Só o menorzinho ainda não escolheu — conta, orgulhosa.

Moradora da mesma ocupação, a cozinheira Josicleia Lima, de 38 anos, chegou há um mês da Paraíba. Veio com a filha, que é cardiopata e já fez nove cirurgias, apesar de só ter 11 anos. Conta que saiu de João Pessoa por causa da violência e em busca de trabalho. Seu maior sonho é semelhante ao de Aline e Suzane.

— Quero morar numa casa própria com minha filha. Não me separo dela.

Impacto nas crianças

Segundo a psicóloga infantil Francilene Torraca, crianças que crescem nesses espaços, mesmo que tenham uma proximidade grande com as mães, são impactadas pelo ambiente:

Tamanha violência, acrescenta ela, causa danos ao neurodesenvolvimento. O que pode provocar quadros clínicos de depressão e de ansiedade, e até de suicídios na adolescência e no início da juventude.

— Elas não são blindadas; ficam expostas à violência em todos os aspectos. A começar pela violência de viver em áreas insalubres, com construções precárias. Estão ainda expostas à violência sexual, a maus tratos. As mães precisam prover, levar alimentos para casa para que a família não passe fome, e não conseguem estar presentes todo o tempo. Moram ainda em cubículos, e acabam presenciando a relação sexual dos pais, que acham que os filhos estão dormindo. É outra forma de violência. Nessa fase do seu desenvolvimento, não era para estarem vendo isso

Dupla invisibilidade

Doutoranda do Ippur que trabalhou no levantamento, Bruna Ribeiro explica que, neste novo estudo, não foram pesquisados cortiços, onde há o pagamento de aluguel, o que não ocorre nas ocupações, embora eventualmente sejam cobradas taxas para a manutenção dos espaços. Das ocupações estudadas, 72,5% (50) estão em imóveis privados e 27,5% (19), em públicos. Do total, 34 estão em prédios, 18 em casarões, 11 em conjunto de casas, 5 em terrenos e 1 em galpão.

Bruna chama a atenção para os segmentos sociais mais vulneráveis que vivem nessas ocupações; mães solo e crianças, egressos do sistema penitenciário, pessoas LGBTQIA+, migrantes, pretos e vítimas da violência, entre outros.

— É muito expressiva a quantidade de pessoas que precisam morar na região central, por conta do trabalho e da infraestrutura, mas não existe uma política de habitação pensada para elas. Elas não estão incluídas nos projetos de intervenção urbana em curso. Há uma dupla dimensão da invisibilidade. De um lado, o poder público adota uma política de não reconhecimento das ocupações. De outro, essas ocupações se protegem nessa invisibilidade para que permaneçam no Centro — analisa a pesquisadora.

Coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do estado (Nuth), Viviane Silva Santos também cita a falta de políticas públicas que garantam o direito à moradia a pessoas em situação de vulnerabilidade social, seja reformando o local onde vivem, se não houver risco, ou instalando-as na própria região. Na área central, a Defensoria atua em ações para impedir a desocupação de 60 espaços (imóveis federais não são da competência do órgão).

— Temos legislação urbanística que permite criar de áreas de especial interesse e a destinar à habitação popular imóveis abandonados há muito tempo e com altas dívidas de IPTU. O que falta é implementar essas leis — afirma Viviane.

Presidente regional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), Marcela Abla lembra que o programa Minha Casa, Minha Vida, Entidades pode ser usado no caso de ocupações que tenham uma organização por trás delas.

— Não dá para pensar, de maneira alguma, em tirar alguém do Centro da cidade e levar para outro lugar. Ali, essas pessoas têm acesso ao trabalho e ao transporte. Têm uma vida — argumenta a arquiteta e urbanista. — Não existe cidade sem habitação. E a gente não pode construir moradia sem construir cidade. Então, essa relação é importantíssima. Por isso, acho que é tão importante entender quem mora no Centro.

Moradora da Zumbi dos Palmares, Larissa Rodrigues, que completa 27 anos em setembro, se vira: faz cabelo e maquiagem. Tem um bebê de 4 meses, concebido na prisão, onde seu companheiro está preso, condenado por latrocínio (roubo seguido de morte). Com o rapaz, Larissa tem ainda duas gêmeas, de 5 anos, que vivem na ocupação, e um menino de 11 anos, que está com a mãe adotiva dela:

— Achei melhor deixar meu filho com ela por ser homem. Fica difícil controlar.

Antes de permitir que repórteres do GLOBO fossem até seu quarto, Larissa teve uma preocupação:

— Posso arrumar a casa? Está muito bagunçada.

No seu cômodo, Larissa tem fogão, dois colchões, dois armários velhos e uma TV usada. Tudo doado. Para garantir alguma privacidade, improvisou um banheiro, que não possui vaso nem chuveiro. Ela costuma acumular dejetos num balde, que descarrega no sanitário coletivo do seu andar.

Apesar da pouca idade, a jovem acumulou desventuras. Tinha 13 anos quando foi estuprada por um familiar. Grávida, fugiu de casa, foi levada para um abrigo e teve a primeira filha, entregue para adoção quando nasceu. Nunca mais a viu.

— Tomei trauma do abrigo. Tomam seus filhos, como se você não tivesse sentimento — desabafa ela.

Pouco tempo depois, Larissa perdeu a mãe, viciada em crack. Chegou a ser adotada, mas voltou para a rua, onde conheceu o pai de quatro de seus filhos.

— Não quero que meus filhos passem pelo que eu passei. Quero que estudem. O de 11 anos está fazendo futebol também. Eu parei na segunda ou terceira série. Não me lembro direito. Sei ler, mas em voz alta é difícil.

Na Zumbi dos Palmares, há quase 200 quartos. Bem pequena, a Ocupação da Paz, na Rua Visconde de Inhaúma 111, tem dez quartos. Lá, estão instalados oito mulheres, com seus 11 filhos e netos, e dois homens. No térreo, são guardadas as carrocinhas que moradores do local levam para eventos no Centro e para a porta do Maracanã, em dias de jogos. Vendem principalmente bebidas. Márcia dos Santos tem a dela, a barraca da Morena.

— Sou camelô com muito orgulho — afirma.

Na Ocupação da Paz, o combinado é de as mulheres se ajudarem, quando algumas saem para trabalhar e as crianças não estão na escola. Quem está livre, cuida de filhos das vizinhas. Um auxílio bem-vindo para Marcela Silva, de 40 anos, que tem quatro crianças, de 8, 10, 12 e 14 anos, e faz faxina em Botafogo.

— Depois que me separei do pai dos meus menores (ela tem um filho de 24), fui morar em Manguinhos com as crianças, mas o barraco enchia muito e tinha muito tiro. Estamos há um mês no casarão, que fica mais perto do trabalho e somos como uma família.

O que diz a prefeitura

Por nota, a Secretaria municipal de Habitação afirma que trabalha em conjunto com a pasta da Assistência Social “para identificar e cadastrar os ocupantes desses territórios, com o objetivo de desenhar programas voltados para essa camada da população”. Informa ainda que está retomando o Minha Casa, Minha Vida (MCMV) junto ao Governo Federal, e que a região central da cidade é uma das áreas prioritárias para receber a construção de novos conjuntos habitacionais dentro do programa. Conclui dizendo que, no fim do ano passado, uma portaria do Governo federal deu anistia aos beneficiários do MCMV inscritos nos programas Bolsa-Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Três vezes vulnerável: ‘Tento dar o melhor para meus filhos’

Preta, mãe solo e egressa do sistema penitenciário, Gisiele Ferreira, de 32 anos, teve sete filhos. Os três mais velhos estão com a família do pai. Outros três, dois gêmeos de 4 anos e uma menina de 6, vivem com ela num quarto da Ocupação Tiradentes, onde dividem um colchão. O caçula morreu com 1 ano e 5 meses, em outubro de 2022, sem ela saber a razão. Traficante, o pai dos mais novos foi assassinado no ano passado. E é a venda de balas e os cabelos que penteia que ajudam Gisiele a sustentar a família.

— Fiquei presa quatro anos e dez meses por roubo. Desde que saí da cadeia, em 2018, tento conseguir um emprego fixo, mas não me chamam, quando veem que passei pela cadeia. Mando meu currículo, e nada. É muita dificuldade, mas tento dar o melhor para meus filhos — diz ela.

Como tantas outras moças de ocupações, Gisiele teve um passado triste, que não esconde. Foi para abrigo, adotada, virou moradora de rua. Com a mãe de sangue, voltou a ter contato. E dela vem uma ajuda fundamental: por vezes, leva os gêmeos para sua casa dela, na comunidade Parque Arará, em Benfica, o que facilita a jovem na longa caminhada para levar a menina às aulas de balé.

O santista Bruno de Oliveira Souza, de 24 anos, se considera exceção. Condenado uma vez como menor e três já maior de idade, por roubo, no total passou quatro anos atrás das grades. Ele reconstituiu sua vida e conseguiu emprego numa obra em Copacabana. Hoje, vive com a companheira Brenda dos Santos Carvalho na Zumbi dos Palmares. O casal teve um menino, que está com três meses. E Bruno aproveita as férias no trabalho para ficar com o bebê no colo o máximo que pode:

— Tinha 4 anos, quando vi meu pai matar minha mãe. A gente morava em Santos. Quero dar a meu filho o amor que eu não tive.

Na luta para vencer o preconceito

Há sete meses, Alisson Oliveira de Almeida, de 26 anos, decidiu deixar a casa da mãe, na Posse, em Nova Iguaçu. Garante que não era reprimido por ela. Mas estava insatisfeito com o lugar que vivia:

— Ali é controlado por milícia, que mata muito. Um primo meu, que fez coisa errada, foi assassinado.

Uma amiga indicou um casarão da Rua Visconde de Inhaúma, colocado à Ocupação da Paz, onde se instalou em um quarto, com banheiro e cozinha comunitários. Ele conta que tem se empenhado em procurar um emprego fixo. Mas lamenta que o preconceito tenha falado mais alto:

— É difícil um gay arrumar emprego. No meu caso, que fiquei quatro meses preso, há dois anos atrás, ainda é pior. Não me dão oportunidade.

Para sobreviver, Alisson vende bebidas e guarda sua carrocinha na Ocupação da Paz. Mas não perde a esperança:

— Quero conquistar minhas coisas, alugar minha casa, dar uma vida melhor à minha mãe e tirar meus irmãos de comunidades. Um mora na CDD (Cidade de Deus) e outro, no Chapadão.

Também com 26 anos, a travesti negra Stephanny Muniz, registrada como Arthur Mattos, está há um ano vivendo num quarto do oitavo andar da Zumbi dos Palmares. Ela saiu de casa aos 11, ficou um tempo com a avó paterna e caiu na rua. Nunca mais viu a família. O pai, que roubava, soube que morreu há dois anos, durante um assalto.

— Sou um sobrevivente, e nunca fiz nada errado, mesmo com o mau exemplo do meu pai. Aprendi que dinheiro fácil vai embora fácil — filosofa.

Stephany vende balas para comer. Deu uma pausa na procura de emprego. Os sonhos, porém, não morreram. Só com a terceira série, acha que um dia pode chegar à faculdade:

— Adoraria fazer Direito. Para Deus, nada é impossível.

Bruno de Oliveira Souza, de 24 anos, por sua vez, se considera privilegiado. Condenado uma vez como menor e três já maior de idade, por roubo, passou quatro anos atrás das grades. Ele reconstituiu sua vida e conseguiu emprego numa obra em Copacabana. Hoje, vive com a companheira Brenda dos Santos Carvalho na Zumbi dos Palmares. O casal teve um menino, que está com três meses. E Bruno aproveita as férias para ficar com o bebê no colo o máximo que pode.

— Tinha quatro anos, quando vi meu pai matar minha mãe. A gente morava em Santos, e ele estava bêbado. Quero dar a meu filho o amor que eu não tive — garante.

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