Sergipe é o 3º estado do Nordeste com maior percentual de trabalho infantil
Mesmo a Constituição Federal garantindo a proteção de crianças e adolescentes, muitos são obrigados a dividir, quando podem, o tempo entre a escola e o trabalho. Muitos largam os estudos e se arriscam nas mais diversas atividades com o objetivo de arrecadar o mínimo para sua sobrevivência e para ajudar suas famílias.
Não é raro encontrar em ruas, praças, feiras crianças e adolescentes vendendo produtos e serviços, a todos eles expostos aos diversos riscos à segurança e à saúde. Um estudo da Fundação das Nações Unidas para a Infância (Unicef) revelou que 76% das crianças e adolescentes de Sergipe, na faixa etária de 5 a 17 anos de idade, vivem em situação de pobreza nas suas múltiplas dimensões (renda, educação, moradia, água, saneamento, informação e trabalho infantil).
Recentemente, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) divulgou um estudo intitulado de O Trabalho Infantil no Brasil: análise dos microdados da PnadC 2022 e que mostra que Sergipe era o terceiro estado nordestino com o maior percentual de crianças e adolescentes em condição de trabalho infantil.
Segundo o levantamento, em Sergipe eram 27.292 crianças e adolescentes, ou seja, 6,2% da população na faixa etária de 5 a 17 anos de idade. O estado apareceu empatado na terceira colocação com o Maranhão e abaixo somente do Piauí (8,3%), que liderava na região, e a Bahia que tem índice de 6,6%.
Os dados são graves porque o percentual de crianças e adolescentes em trabalho infantil em Sergipe era 3,5% em 2019, com 16.753, e passou para mais de 27 mil, isto é, 6,2% em 2022.
Registros na feira de Cedro de São João
“Comecei aos 10 anos porque não tinha dinheiro pra lanchar. Ganho uns R$ 40,00 por domingo. O trabalho é cansativo, pesado e sinto dores na coluna, mas só assim consigo meu dinheiro. Minha mãe está doente e a gente é pobre”, diz um menino de 13 anos sentado à sombra de uma árvore ao lado do seu carrinho de mão.
Esse menino é uma das 20 crianças e adolescentes que todos os domingos trabalham transportando compras na feira livre do município de Cedro de São João/SE, 94 km de Aracaju.
A rotina é acompanhar os clientes enquanto fazem as compras e só depois levar até a residência. A depender do tipo de serviço e da distância percorrida, eles recebem entre R$ 5,00 e R$ 10,00.
O menino que faz “carrego” na feira disse que o trabalho desde pequeno é comum em sua família. A mãe dele, uma senhora de 51 anos, desde os 12 anos de idade já se arriscava em um trabalho perigoso. “Meu pai já me botava para acender o fogo de lenha, varrer o lugar, coar leite e botar no fogo”, relembra ela.
Mesmo desempregada, ela não gosta de ver o filho trilhando o mesmo caminho que ela viveu no passado, mas não encontrou outra forma. Para completar, há mais de um ano que ela espera por uma cirurgia para retirar um mioma e que há três meses não para de sangrar.
“Só lamento que meu filho vai ficar homem e sentir mais tarde o que eu sinto hoje. Comecei a trabalhar com 12 anos com minha mãe. Vendia balas e nunca mais parei. Tem horas que me desespero”, desabafa.
A força de trabalho exercida sem dificuldade na feira livre de Cedro de São João fica concentrada em frente à escola municipal, contraditoriamente o local onde um outro menino, de 14 anos de idade, prefere manter distância de segunda a sexta-feira. No ano passado, um conselheiro tutelar tentou impedir que o menino continuasse no trabalho infantil, mas não aditou muito, ele sempre está na feira.
“Não gosto muito de estudar não. Perdi o sexto ano duas vezes. Agora estou na sétima série e minha maior nota é cinco em Ciências e a menor zero”, conta o adolescente, na atividade há três anos.
Um outro rapaz, de 16 anos, disse que com os carregos da feira dos domingos compra suas roupas, e a sobra ajuda nas despesas da casa onde moram ele, os pais e outros três irmãos. A ajuda do Bolsa Família não supre a necessidade da família.
“Não penso em ter alguma profissão, não. O que gosto mesmo é de andar a cavalo. Com o trabalho aqui na feira, levo toda semana cerca de R$ 50,00 para casa. Aí ajudo meus pais que estão desempregados”, explica o adolescente.
Piores formas de trabalho infantil
As atividades laborais em espaços com exposição ao sol e a chuva, acorrendo o risco de atropelamento e outros problemas de saúde estão na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 2019, cerca de 46% das crianças e adolescentes se enquadram neste perfil.
Cerca de 13% dos meninos e meninas de 5 a 17 anos desempenhavam atividades na agricultura; 12,8% estavam na criação de bovinos; 10,2% em atividades de manutenção e reparação de veículos automotores; 8,4% trabalhavam com atividades de produtos de alimentos, bebidas e fumo; e 6,2% como vendedores de quiosques e pontos de mercados.
A vice-presidente da Comissão da Infância e da Adolescência da Ordem dos Advogados do Brasil/Sergipe (OAB-SE), Verônica Oliveira, acompanha com preocupação o aumento no número de crianças, principalmente de 4 a 9 anos, em situação de trabalho infantil.
“Isso está relacionado à desigualdade social, aumento da miséria, questão da pandemia também, e a falta de suporte nas famílias mais vulneráveis, levando as crianças menores para o trabalho infantil. Quanto antes começam a ser exploradas, mais rapidamente abandonam a escola e não conseguem retornar e não conseguem sair da situação de pobreza”, analisou Verônica.
Apesar dos relatos, das imagens testemunhadas e dos números alarmantes, a situação do trabalho infantil ainda permanece em certa invisibilidade. Em razão disso, em junho passado, a FNPETI lançou a campanha “Trabalho infantil que ninguém vê”. A ação é uma forma de alertar para essa realidade de grave violação aos direitos humanos e com sérios riscos à vida de crianças e adolescentes.
O Observatório da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil (Smartlab), que considera os registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) entre 2007 e 2022, constatou que os acidentes graves com crianças e adolescentes em situação de trabalho somavam 34.805 no país. No mesmo período, Sergipe ficou com a última colocação no Nordeste somando 52 notificações, já a Bahia liderava com 895 casos. Só em 2022 foram 3.077 no país e quatro em Sergipe.
O enfrentamento à violação
O Ministério Público do Trabalho (MPT-SE) da 20ª Região, através da Procuradoria Regional de Aracaju, realiza ao longo do ano ações para combater o trabalho infantil em Sergipe. “Estamos tratando de trabalhos penosos, difíceis, que comprometem a formação dessa criança, desse adolescente, até mesmo do ponto de vista físico, e que tiram dela a possibilidade de escolha e perspectiva de um futuro melhor”, observa o procurador do Trabalho, Alexandre Alvarenga.
Em Sergipe, feiras livres, lixões, matadouros públicos e até mesmo atividades domésticas estão entre as piores formas de trabalho, segundo o procurador. Ele explica que dentro do enfrentamento das práticas delituosas também existe “uma atuação importante no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes”, complementa Alexandre Alvarenga.
Quando o MPT-SE constata trabalho infantil, o caso é enquadrado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Penal, quando se verifica exploração sexual. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 trouxe 1.255 casos de exploração sexual em 2023 e uma taxa de 2,6 por 100 mil habitantes. Mais de 60% das vítimas tinham entre 14 e 17 anos.
“No âmbito civil, trabalhista, é possível que a empresa ou quem venha a explorar aquela criança ou aquele adolescente possa ser compelido a assinar um termo de ajuste de conduta ou eventualmente responder a uma ação civil pública”, completa o procurador.
Sobre as feiras livres, o procurador disse que “o município muitas vezes acaba sendo responsabilizado por permitir, às vezes de forma bastante ampla, que se dê a exploração do trabalho infantil de crianças e adolescentes naquele espaço”, completa Alvarenga. O trabalho e a exploração infantil precisam ser denunciados. As denúncias devem ser encaminhadas à rede de proteção composta pelo Ministério Público do Trabalho, Conselhos Tutelares, Centros de Referência de Assistência Municipais e o Ministério Público Estadual.
Trabalho infantil nas eleições 2024
Muitas crianças sequer chegaram aos 16 anos de idade e já são convocados para o trabalho irregular em campanhas de políticos descompromissados com os direitos humanos, seja na capital seja no interior.
Na semana passada, o MPT-SE e o Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe (TRE-SE) assinaram o Pacto Contra o Assédio, Discriminação e Trabalho Infantil nas Eleições 2024. O documento também envolve a OAB-SE, as polícias Federal e Civil, além de representantes de prefeituras e partidos políticos.
O procurador-chefe do MPT-SE, Márcio Amazonas, explicou que a exposição de crianças e adolescentes em atividades eleitorais é uma das piores formas de trabalho infantil. “O pacto é contra o assédio eleitoral, mas também, de uma maneira muito feliz, abrange esse combate ao trabalho da criança e do adolescente”, explicou.
“O engajamento de todos os partidos, órgãos públicos e civis e outras entidades, nos ajudará a combater práticas que impedem o exercício da cidadania. O objetivo é garantir o direito de votar da(o) cidadã(ão), sem que ela ou ele seja coagido. Que todos possam votar de acordo com suas escolhas e com liberdade”, afirmou o presidente do TRE-SE, o desembargador Diógenes Barreto.
A procuradora Regional Eleitoral do Ministério Público Federal, Aldirla Albuquerque, reforçou o compromisso da instituição para distanciar as crianças e os adolescentes desses espaços de assédio, assim como punir os responsáveis dos atos criminosos. “Nós queremos prevenir, mas se os crimes forem cometidos iremos reprimir e a repressão pode vir muito cara. O cidadão deve reunir o maior número de provas como vídeos, fotos, fazer um relato rico em detalhes pra gente fazer um bom trabalho”, detalhou a procuradora.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.