Fórum liderado por Apib e MPF tratará de crimes e violações históricas contra a população indígena no Brasil

Fórum liderado por Apib e MPF tratará de crimes e violações históricas contra a população indígena no Brasil

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“Nunca foi esbulho renitente, sempre foi remoção forçada. Sempre. Nunca foi um crime do Código Penal, mas um crime contra a humanidade”. Assim o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida definiu a perspectiva dos trabalhos do Fórum “Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça”, um espaço de diálogo e articulação para investigar, resgatar a memória e garantir que o Estado brasileiro faça a reparação integral às violações cometidas contra os povos indígenas no país, especialmente durante a ditadura militar. O Fórum também vai elaborar uma proposta para a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), que deve ser instituída pelo Estado brasileiro.

A iniciativa é coordenada conjuntamente pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pelo Ministério Público Federal (MPF), pelo Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (Obind) da Universidade de Brasília (UnB) e pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR).

Ele será composto por organizações indígenas, entidades da sociedade civil, como o Instituto Socioambiental (ISA), representantes de órgãos públicos e instituições acadêmicas. Especialistas em direitos humanos e outras instituições envolvidas ou interessadas no tema também farão parte do fórum. A adesão é voluntária e aberta a entidades que aceitarem os termos da Carta de Princípios. As solicitações de participação serão avaliadas pelos coordenadores da iniciativa e podem ser enviadas via e-mail para forum-memoria-lista@mpf.mp.br.

Violências históricas

O relatório final da CNV, divulgado em 2014, apontou que pelo menos  8.350 indígenas foram mortos entre 1946 e 1988, sendo essa contagem feita apenas entre 10 dos 278 povos indígenas existentes no Brasil. Além das mortes, as violências incluíam remoções forçadas de comunidades de seus territórios tradicionais e a destruição de suas culturas. Apesar dessas evidências, o Estado brasileiro ainda não implementou de forma ampla as recomendações da CNV, o que torna o trabalho do Fórum uma etapa crucial na busca por justiça.

Ana Borges, subprocuradora-geral da República, ressaltou que os crimes contra os povos indígenas no Brasil não começaram na ditadura militar, mas desde a chegada dos invasores. Ela lembrou que o processo de genocídio, remoções forçadas e violação de direitos faz parte de uma longa trajetória de violências. “Desde o momento em que os invasores aqui chegaram, tragédias e genocídios marcaram a história deste país”, destacou. Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe um viés de pacificação nacional, o esquecimento não pode ser a solução, afirmou Borges. “Conhecer a verdade é essencial para garantir reparação e evitar que os erros do passado se repitam.”

Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, destacou a importância de abordar as violações cometidas contra os povos indígenas não apenas durante a ditadura militar, mas também antes e após esse período. Segundo ele, “a expectativa é muito positiva em relação ao Fórum, por reunir várias entidades, tanto associações civis quanto acadêmicos e especialistas no debate sobre justiça de transição, além de órgãos do governo, com o objetivo de aprofundar esses debates sobre os crimes e violações cometidos contra os povos indígenas, não apenas na ditadura”.

Karipuna sublinhou a relevância de trazer para o centro do debate a violência que continua a atingir os povos indígenas, muitas vezes ligada à questão fundiária. “O Fórum pode se debruçar sobre essa discussão, que gira em torno das violações, violências e assassinatos que continuam a ocorrer hoje, relacionados ao contexto de demarcação de Terras Indígenas e às disputas territoriais com invasores.”

Ele ainda mencionou a importância de o Fórum orientar o Estado brasileiro e seus três poderes, além da sociedade civil, na adoção de mecanismos e medidas que garantam a não repetição desses crimes. Em relação à criação da CNIV, Kleber destacou a frustração com a lentidão do governo. “É uma morosidade do governo atual, um governo muito mais próximo da pauta de direitos humanos e dos direitos territoriais dos povos indígenas, que ainda não criou a Comissão Nacional da Verdade Indígena”, afirmou. Ele lembrou que, em 2023, houve uma pressão significativa junto ao governo e aos Ministérios de Direitos Humanos e Justiça para avançar nessa questão, mas não foi suficiente.

“O que esperamos é que o Fórum também contribua para dar essa pressão política e técnica, com insumos da sociedade civil e dos órgãos de controle e justiça, para que a criação da comissão aconteça o quanto antes. Isso é fundamental para que possamos avançar com a reparação e garantir que essas atrocidades não se repitam”, sublinhou Karipuna.

Tatiane Klein, antropóloga e uma das pesquisadoras do ISA que colaborou com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ressalta a importância da iniciativa para dar seguimento às investigações iniciadas em 2014. “Faz dez anos que o relatório da CNV foi publicado, reconhecendo que as pesquisas de violações dos direitos humanos dos povos indígenas feitas ali eram parciais e insuficientes – e que deviam ser continuadas por uma comissão específica. Com o Fórum, teremos condições de articular forças para construir uma proposta de funcionamento para a comissão, de forma que o Estado brasileiro não possa mais se esquivar desse compromisso.”

Comissão Nacional Indígena da Verdade

O procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, um dos idealizadores do Fórum, destacou que a Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) será fruto de uma construção coletiva, o que garantirá sua legitimidade e capacidade de articulação. No entanto, lembrou que cabe ao Estado brasileiro a responsabilidade de investigar e revelar a verdade, além de adotar medidas concretas de reparação e garantir que as violações não se repitam.

Paulino Montejo, assessor político da Apib, alertou que não adianta apenas discutir as violências e os crimes cometidos no passado sem que o Estado se responsabilize e tome medidas estruturais. “A correção de rumos deve ocorrer por meio de políticas governamentais”, afirmou. Marco Antônio Delfino de Almeida, procurador da República e coordenador do Grupo de Trabalho Prevenção contra Atrocidades contra Povos Indígenas e Formas de Reparação do MPF, reforçou a necessidade de acabar com a “guerra silenciosa” contra os povos indígenas. Para Delfino, é fundamental tornar visível essa luta, permitindo que o Brasil reescreva sua história com justiça.

Papel das instituições parceiras

Durante o evento, representantes de diversas instituições como a Funai, o Ministério dos Povos Indígenas, a Defensoria Pública da União, além de organizações da sociedade civil como o ISA, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) manifestaram apoio ao Fórum. Além dessas organizações, o processo conta com a participação de especialistas em direitos indígenas, como Carlos Marés e Ela Wiecko, além do acompanhamento de observadores internacionais, como o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU (ACNUDH) e embaixadas de diferentes países.

Daniela Greeb, diretora do IPR, e Elaine Moreira, coordenadora do Obind, lembraram o papel fundamental do Armazém Memória e do pesquisador Marcelo Zelic, falecido no ano passado, que foi uma das principais figuras nos estudos sobre as violências contra os povos indígenas realizados pela CNV. Elas destacaram que o trabalho coletivo é essencial para garantir que o Fórum atinja seus objetivos.

Desafios e próximos passos

Além de discutir os aspectos legais, administrativos, políticos e metodológicos para a criação da CNIV, o Fórum tem como meta sensibilizar a sociedade brasileira e internacional para a importância da revelação da verdade e da reparação integral. A demarcação de territórios indígenas será um ponto central do debate, conforme recomendação da Comissão Nacional da Verdade como uma das formas de reparação.

A primeira reunião do grupo está marcada para 5 de novembro, e o prazo para a apresentação de uma proposta inicial para a criação da CNIV é de 12 meses. Durante esse período, o Fórum apoiará iniciativas que promovam a memória, verdade, justiça e garantias de não-repetição, além de incentivar o intercâmbio de experiências com povos indígenas de outros países que enfrentam desafios semelhantes.

O Fórum “Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça” marca um passo crucial na luta pelos direitos indígenas no Brasil, com a expectativa de promover mudanças estruturais que assegurem justiça, reconhecimento e respeito pleno aos direitos dos povos indígenas.

 

Fonte: Instituto Socioambiental

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