Falta de saneamento afasta crianças da escola na primeira infância e impactos vão até a vida adulta

Veículo: Diário do Nordeste - CE
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Ágata, de um ano e meio, dá os primeiros passos com os pés expostos ao esgoto a céu aberto que divide uma rua de terra batida na Comunidade da Paz, no Bom Jardim, em Fortaleza. Ao lado dos irmãos Ester, 6, e Elias, 11, são frequentes as vezes que precisa ficar em casa por até uma semana devido a doenças ligadas à falta de esgotamento sanitário.

“Isso atrasa os estudos e eles podem até repetir de ano. Eu quero que eles progridam, mas se adoecer têm que ficar em casa”, compartilha Andreza Costa, 30, sobre a preocupação com o futuro dos filhos.

Enquanto deveriam arrumar a mochila rumo à escola, 19.886 crianças de até seis anos precisaram, em vez disso, ir ao hospital por causa de doenças de veiculação hídrica ou respiratórias associadas à falta de saneamento básico, no Ceará, em 2022.

Além disso, a ausência da estrutura elementar causa um atraso escolar de quase dois anos e, lá na frente, reduz o desempenho em vestibulares. Esse retrato foi publicado no estudo “Futuro em risco: efeitos da falta de saneamento na vida de grávidas, crianças e adolescentes”, lançado pelo Instituto Trata Brasil em outubro de 2024.

Esta é a primeira reportagem da série Rede Vital, na qual o Diário do Nordeste aborda os atrasos e prejuízos cotidianos que a falta de esgotamento sanitário – uma amostra ainda real da desigualdade – causa para a Educação, Saúde e Meio Ambiente.

Os prejuízos para a formação dos pequenos que faltam às aulas devido a problemas como dor de barriga, diarreia e doenças respiratórias, por exemplo, podem avançar até a vida adulta, contribuindo para um ciclo de pobreza. Uma estimativa do estudo aponta que a diferença salarial entre quem tem acesso ao esgoto e quem não tem é de 46,1%.

No Brasil, aproximadamente quatro a cada 10 crianças com idade até seis anos se afastaram de atividades rotineiras em razão de diarreias e doenças transmitidas por insetos e animais, em 2019. Foram 6,6 milhões de pessoas impactadas no País e, em média, cada criança brasileira ficou quatro dias longe da escola.

Não há um recorte específico dessa realidade para o Ceará, mas o estudo “Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento no Ceará”, de novembro de 2023, também produzido pelo Instituto Trata Brasil, indica que o Estado teve 26.273 internamentos por essas doenças, sendo a maioria dos pacientes pessoas com até 14 anos no período analisado.

As doenças de veiculação hídrica são diarreia e gastroenterite, cólera, leptospirose, dengue e até esquistossomose. Já as doenças respiratórias são influenza e pneumonia, que também podem ser transmitidas devido à falta de água limpa para higienização das mãos.

Um dos pontos centrais dessa situação é que as crianças afetadas pelo problema têm infecções recorrentes e menos dias dedicados aos estudos, como analisa a médica endocrinologista pediátrica Izabella Vasconcelos.

“Agudamente, essas doenças podem levar à desidratação grave, às vezes, até com desfecho fatal. Pensando em crianças que estão constantemente expostas a esse risco, com infecções de repetição, até o quadro de desnutrição vai ser frequente e vai potencializar os efeitos deletérios dessas infecções”, completa.

Outra consequência das infecções é a desnutrição, que impede o crescimento e o ganho de peso adequados. Além disso, quadros de anemia comprometem o desenvolvimento cognitivo, o que, associado às faltas escolares, prejudica o processo de formação.

“É importante garantir que essas crianças tenham acesso aos serviços de saúde para conseguir o diagnóstico e tratamento dessas doenças infecciosas mais prontamente”, conclui a médica.

Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, contextualiza que o Ceará tem uma taxa de 23 casos de diarreia para cada 1.000 crianças menores de 2 anos de idade. Em relação à desnutrição, essa proporção é de 8 casos para cada 1.000.

O estudo sobre o retrato das crianças, inclusive, mostra que o atraso escolar médio pela falta de saneamento é de 1,78 ano. “Ou seja, uma criança que não teve acesso ao saneamento durante a infância e a adolescência, em média, estuda 1,78 ano a menos do que quem a criança com acesso ao saneamento básico”, completa Luana.

Enquanto profissionais da Educação debatem ferramentas e estratégias mais eficazes para o ensino, a histórica falta de esgoto ainda é uma realidade para milhares de estudantes. “Isso vai impactar na renda média futura dessa criança, na possibilidade de mobilidade social e de desenvolvimento da família”, frisa Luana.

Por isso, a universalização do saneamento ganha maior destaque. “Estamos falando de uma futura geração mais próspera e que não vai sofrer com essa doenças de veiculação hídrica, podendo ter um desenvolvimento físico, intelectual e neurológico melhor. isso vai impactar de maneira muito positiva no aprendizado”, projeta Luana.

Conviver com o esgoto

O Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), detalha a situação dos cearenses em relação ao esgotamento sanitário e aponta que apenas 37,2% têm acesso à rede geral ou pluvial de esgotamento sanitário.

As fossas rudimentares (feitas de forma improvisada) ou mesmo buracos ainda são realidade para 34,7% dos domicílios no Ceará. As fossas sépticas ou fossas filtro, também não ligadas às redes, são comuns em 20% das moradias no Estado. Em menor escala, aparecem valas e outras formas de despejo.

A família de Ágata – bebê retratada no início desta reportagem – vive numa casa que depende de uma fossa para onde vai todo o esgoto do banheiro e cozinha. “Toda vez que chove, e até no verão, entope e vai para um rêgo na frente da casa do pessoal e incomoda”, admite a mãe e dona de casa Andreza.

Por lá, a comunidade improvisou um encanamento de concreto e pedaços de madeira para cobrir parte do líquido escuro que corre na frente das casas. “Meu marido teve que tampar o buraco que tinha, quanto mais limpava mais tinha. As crianças vinham brincar, caíam dentro e começavam a ter doenças de pele e diarreia.”

A situação é ainda mais delicada para o servente Paulo Henrique, 30, que precisa despejar todos os resíduos numa vala lateral à casa e que escoa pela rua. A família vive na Comunidade da Paz há quase seis anos, mas só agora conseguiu comprar o material para construir uma fossa.

Nesse período, os filhos de 9, 12 e 13 anos adoecem constantemente devido ao contato com o esgoto. Além da água suja que deixa a casa ilhada, há uma criação de porcos próxima ao local.

“Eles ficam com febre e fracos, vamos na UPA (Unidade de Pronto Atendimento), eles tomam remédios e ficam bons, mas têm diarreia e cansaço (falta de ar)”, detalha Paulo, sobre o cotidiano da moradia onde vive com a esposa e os três filhos.

“Eles ficam uns quatro dias sem ir pra aula, a diretora liga e pergunta porque faltaram, é arriscado até perder o Bolsa Família. Mas não é por causa da gente, é a doença mesmo”, pondera Paulo.

Ao ser perguntado sobre o motivo pelo qual acredita que o esgotamento sanitário ainda não é uma realidade para toda a população, o servente não sabe apontar uma razão, mas sim um desejo coletivo: “espero que melhore pra nós e pra vizinhança”.

Impactos na Educação

Pensar no desenvolvimento infantil exige analisar os aspectos social, cognitivo, afetivo, cultural e de relação com o ambiente, como avalia Ticiana Santiago, psicopedagoga e doutora em Educação.

“O desenvolvimento humano, especialmente o infantil, encontra nessa fase um período crítico, uma janela de oportunidades. Tudo que se vive na infância tem um peso e um significado muito constitutivo da noção de si e da percepção do mundo”, resume

“Crianças que vivem nesse contexto, não por uma questão delas ou das famílias, estão na precarização da vida. Então, é muito importante que a gente consiga fornecer todos os recursos necessários para esse desenvolvimento”Ticiana Santiago, Doutora em Educação.

Mas, na contramão disso, muitas crianças estão em locais que oferecem “ameaças” pelo contato com o esgoto bruto e água contaminada.

“Essa relação com a natureza, com o outro e com o ambiente é muito importante na primeira infância de uma forma lúdica e vivencial. Quando esse ambiente é precarizado e contaminado pela falta de saneamento, acaba adoecendo”, acrescenta.

Um exemplo disso está no estudo do Trata Brasil, que também aponta uma disparidade entre as notas médias no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de quem não tem acesso aos serviços de coleta de esgoto, com base nos dados de 2021.

Para ter uma noção, enquanto a média de quem está em lares com cobertura adequada de tratamento de esgoto é de 519 pontos, essa nota cai para 460 pontos entre quem está de fora do serviço básico.

Jovens atentos ao tema

Como usar a comunicação para falar com as pessoas sobre os benefícios do saneamento? A questão é exercitada por Isaac da Silva Campos, 17, estudante do 1º ano do Ensino Médio na Escola Governador Adauto Bezerra, em Fortaleza, dentro do Projeto Pioneiros.

A iniciativa é do Instituto Aegea, executada pela Ambiental Ceará e Ambiental Crato, responsável pelos serviços de coleta, afastamento e tratamento de esgoto em 24 municípios cearenses.

Por meio de uma Parceria Público-Privada com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), a Ambiental Ceará deve garantir, do Cariri ao litoral, que o serviço de coleta e tratamento de esgoto chegue a 90% da população até 2033, avançando para 95% em 2040.

Além disso, algumas ações de educação ambiental acontecem em paralelo, como o Projeto Pioneiros para incentivar jovens a criar soluções de saneamento nas comunidades onde vivem. No Brasil, 500 estudantes participam de atividades imersivas na área do saneamento, entre maio e dezembro deste ano.

No caso de Isaac, a ideia é usar as redes sociais para incentivar a população a realizar a conexão junto às redes disponíveis. “A gente pensou em criar uma página com uma linguagem mais jovem e que chegue em diferentes classes sociais, envolvendo outros projetos de mobilização como para coleta de garrafas plásticas”, detalha.

“A gente planeja usar as redes sociais a favor da nossa causa e o objetivo do nosso grupo é alcançar mais pessoas. A fala pode mover o mundo e usando as redes para incentivar as pessoas a fazer isso já é algo muito útil para o meio ambiente”, observa.

Ampliação da rede

Sobre a situação das famílias da Comunidade da Paz, a Ambiental Ceará contextualiza que o trecho entre as ruas Franciscano, Nova Friburgo e Verdes Mares, no bairro Bom Jardim, ainda não possui rede de esgoto.

“A região deverá ser contemplada com obras de implantação do sistema de coleta e tratamento. Até lá, os moradores são responsáveis por dar destinação adequada ao esgoto gerado pelos imóveis”, informou por meio de nota.

Abrangendo os 24 municípios cearenses, um total de R$ 6,2 bilhões será investido para as obras de infraestrutura de esgoto. Ao todo, serão construídas 27 Estações de Tratamento de Esgoto (ETE), 249 Estações Elevatórias e implantados mais de 4.000 km de novas redes de esgoto. Com a ampliação da infraestrutura, serão coletados e tratados, por mês, mais de 1 bilhão de litros de esgoto.

Os municípios atendidos pela PPP são:

  • Aquiraz
  • Cascavel
  • Caucaia
  • Chorozinho
  • Eusébio
  • Fortaleza
  • Guaiúba
  • Horizonte
  • Itaitinga
  • Maracanaú
  • Maranguape
  • Pacajus
  • Pacatuba
  • Paracuru
  • Paraipaba
  • São Gonçalo do Amarante
  • São Luís do Curu
  • Trairi
  • Juazeiro do Norte
  • Barbalha
  • Farias Brito
  • Missão Velha
  • Nova Olinda
  • Santana do Cariri

 

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