Cresce o acesso, persiste a desigualdade: os desafios da educação infantil para crianças negras no país

Veículo: Alma Preta Jornalismo
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O aumento das matrículas de crianças negras em creches públicas é um avanço importante, mas ainda longe de significar equidade. A desigualdade no acesso à educação infantil de qualidade continua sendo um retrato fiel do racismo estrutural que atravessa a sociedade brasileira — e impacta, desde cedo, o direito ao cuidado e à aprendizagem de crianças negras no país.

Segundo o Censo Escolar 2024, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), em abril de 2025, pela primeira vez, a proporção de crianças negras matriculadas em creches (40,2%) superou a de crianças brancas (38,3%).

No ano anterior, os percentuais estavam praticamente empatados. O crescimento foi impulsionado principalmente pelas redes públicas, o qual a presença de crianças negras saltou de 38% para 45%. Já em 2023, eram 35,1% brancas e 34,7% negras.

Embora os números indiquem avanço, o acesso de crianças negras às creches continua longe de ser igualitário. O Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades 2024, lançado em agosto do mesmo ano, pelo Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades, revela que o percentual de crianças não negras nas creches ainda era superior (36,0%) ao de crianças negras (33,3%).

Ainda segundo o relatório, a desigualdade se acentua quando cruzada com gênero e raça, isto é, meninas negras têm a menor presença nas creches (29,6%), enquanto meninos não negros alcançam a maior taxa (37,6%).

A oferta de vagas, segundo o relatório, é insuficiente exatamente nos territórios com maior presença da população negra e de famílias de baixa renda. “A necessidade de creches é maior nos territórios periféricos e com maior população negra”, aponta o documento.

Em outras palavras, as crianças que mais precisam do serviço são justamente as que enfrentam mais barreiras para acessá-lo. O cenário também evidencia o descumprimento de metas nacionais — o Plano Nacional de Educação (PNE) previa que 50% das crianças de 0 a 3 anos estivessem em creches até 2024.

Em 2023, no entanto, a taxa nacional era de somente 33,2%. Estados do Sul e Sudeste, como Santa Catarina (49,4%) e São Paulo (48,4%), puxam a média nacional para cima — regiões onde há maior concentração de crianças não negras.

A diferença entre os dois levantamentos pode ser explicada pela natureza de cada base de dados. O Censo Escolar contabiliza as crianças efetivamente matriculadas, enquanto a Pnad Contínua — usada no relatório — avalia a proporção de crianças atendidas em relação à população total de 0 a 3 anos.

O contraste revela que, embora o número de matrículas de crianças negras tenha aumentado, a cobertura ainda pode estar aquém do necessário, especialmente nas regiões de maior vulnerabilidade.

Acesso em crescimento, mas qualidade desigual

A professora Lucimar Rosa Dias, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do grupo de Estudos em Educação para as Relações Étnico-Raciais (ErêYá), observa que, apesar do aumento das matrículas, “nem sempre essas unidades são as que possuem melhor estrutura”.

A pesquisadora também questiona o destino dos recursos públicos destinados à educação infantil, sugerindo a necessidade de investigar se os investimentos estão, de fato, chegando aos territórios onde vivem a maioria das crianças negras.

Segundo Lucimar, essa é uma questão essencial, já que “desde a década de 1990 há estudos que mostram que os equipamentos públicos acessados por pessoas negras — incluindo crianças e jovens — tendem a ser de pior qualidade”.

Falta de estrutura em creches nas periferias e territórios tradicionais

A localização geográfica e a precariedade da infraestrutura agravam ainda mais essa desigualdade, sobretudo em regiões periféricas e em territórios como o Nordeste e o Sul do país, como menciona a especialista.

Lucimar alerta que a situação é ainda mais crítica quando se trata de crianças quilombolas e ribeirinhas. “Quando consideramos esses grupos, a situação se torna ainda mais grave”, afirma.

Segundo a pesquisadora, crianças negras, quilombolas e indígenas ainda não têm a garantia do cumprimento dos parâmetros de qualidade recentemente estabelecidos para a educação infantil no Brasil.

Essa precariedade também se manifesta nas periferias urbanas, onde a oferta educacional costuma ignorar as especificidades e demandas dessas populações.

Diante desse cenário, a professora reforça a necessidade de atenção ao que está sendo efetivamente ofertado às crianças desses territórios. Para ela, o Brasil ainda tem uma dívida histórica nessa área.

“O país ainda não fez seu dever de casa no que diz respeito à garantia de infraestrutura educacional de qualidade, especialmente para comunidades periféricas, indígenas e quilombolas”, acrescenta.

Acolhimento na infância: desafio de educar com afeto e equidade

Para a professora Geisa das Neves Giraldez, mestra em Artes e educadora da rede municipal do Rio de Janeiro, o acolhimento é a base de uma educação infantil comprometida com o desenvolvimento integral das crianças — especialmente das negras.

Segundo ela, o primeiro grande desafio enfrentado pelas crianças ao ingressarem na escola é justamente esse, ou seja, se sentirem acolhidas em um novo ambiente, distante do seio familiar.

“Elas estão tendo contato com pessoas diferentes da família, muitas vezes pela primeira vez. Estão saindo daquele núcleo familiar para um ambiente maior, com mais gente. Essa transição exige acolhimento — acolhimento de verdade”, afirma.

Geisa ainda ressalta que acolher vai além de gestos afetivos superficiais — está diretamente ligado à maneira como cada criança é percebida no ambiente escolar.

A professora menciona estudos que indicam que bebês negros, com frequência, recebem menos toques do que bebês brancos, o que evidencia desigualdades no acesso ao afeto e à atenção desde os primeiros anos de vida.

Para a educadora, toque, cuidado e colo são dimensões fundamentais do processo educativo. “O colo é currículo”, afirma. “É ele que faz a criança se sentir confortável naquele espaço, permitindo que se sinta segura para explorar, tocar e interagir com o ambiente ao redor”.

Geisa também destaca que a ausência de acolhimento adequado está frequentemente ligada às expectativas desiguais impostas às crianças negras. “A criança preta muitas vezes tem o direito de ser criança negado ao ser percebida como menos criança, menos merecedora de cuidado, suporte e proteção”, observa.

Para mudar esse cenário, Geisa defende ações institucionais articuladas com a rotina escolar. Ela cita a Gerência de Educação das Relações Étnico-Raciais (Gerer), da prefeitura do Rio de Janeiro, como exemplo de política pública que tem promovido formações para professores e gestores da educação infantil.

Segundo a professora, o desafio é acolher com intencionalidade e afeto diariamente, por meio de práticas que considerem os diferentes modos de ser e estar no mundo. “A dimensão do encanto é muito importante nessa faixa etária. A criança precisa se encantar, se envolver para se conectar”, explica.

Ela também defende que a educação das relações étnico-raciais deve ser compreendida como um “saber de fronteira”, em diálogo com outras áreas do conhecimento, e não tratada como conteúdo isolado.

“Acolher de forma respeitosa muitas vezes exige repensar concepções de infâncias, do que pode ou não uma criança, do que merece uma criança e até mesmo quem é criança”, pontua.

Estratégias para uma educação infantil equitativa

Para Lucimar Rosa Dias, as políticas públicas devem ser intersetoriais, envolvendo também saúde e assistência social. A professora defende que quanto maior a articulação entre essas áreas, melhor será a qualidade da oferta educacional, sobretudo para crianças negras.

No entanto, destaca que ainda há escassez de pesquisas que abordem essa intersetorialidade com foco racial e territorial — lacuna que dificulta a construção de ações afirmativas eficazes.

“Precisamos começar a realizar pesquisas que investiguem essa intersetorialidade, porque ainda não temos estudos suficientes para fundamentar os argumentos em torno da necessária ação afirmativa”, afirma.

Para Dias, é essencial investir em estudos com recortes de raça e território, além de assegurar que as políticas públicas tratem explicitamente da questão racial. Caso contrário, os grupos historicamente excluídos continuarão a receber serviços públicos de forma desigual — o que afeta diretamente crianças negras, indígenas e quilombolas.

Lucimar também chama atenção para a importância de envolver os três poderes na formulação de políticas públicas com esse olhar interseccional. Segundo a especialista, quando câmaras municipais conservadoras ou secretarias se recusam a discutir a questão racial, os avanços se tornam limitados.

“Tenho falado muito sobre a importância de gestores, legisladores e legisladoras com um olhar atento à questão racial”, destaca.  Dias reconhece que as mudanças ainda ocorrem de forma lenta, dado o racismo estrutural presente nas esferas de poder — como também apontam outros pesquisadores e pesquisadoras negras.

Ainda assim, Lucimar mantém a esperança. “Eu continuo acreditando na possibilidade de transformação.” Para ela, a inclusão recente da dimensão racial nos parâmetros de qualidade da educação infantil representa uma conquista significativa e um passo importante para a melhoria da oferta educacional às crianças negras.

 

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