Saúde mental de jovens: vilão não é o tempo de tela, mas o uso abusivo, sugere estudo; entenda

Veículo: O Estado de S. Paulo - SP
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Enquanto os Estados Unidos buscam respostas para o aumento dos casos de comportamento suicida entre jovens, muitos formuladores de políticas públicas têm se concentrado em um dado preocupante: o número de horas diárias que crianças passam diante de telas.

Um estudo publicado no respeitado Journal of the American Medical Association (JAMA), que acompanhou mais de 4 mil crianças em todo o país, chegou a uma conclusão surpreendente: passar mais tempo diante de telas aos 10 anos de idade não esteve associado a taxas mais altas de comportamento suicida quatro anos depois.

Em vez disso, os autores descobriram que os jovens com maior risco eram aqueles que relataram um uso “adictivo” da tecnologia — isto é, dificuldade de largar os dispositivos ou sensação de precisar usá-los cada vez mais. Alguns apresentavam comportamentos de adicção mesmo tendo um tempo de tela relativamente baixo, segundo os pesquisadores.

Segundo novo estudo, comportamento ‘adictivo’ associado às telas é mais perigoso para a saúde mental do que o tempo que as crianças passam nos dispositivos Foto: Seventyfour/Adobe Stock

Os pesquisadores descobriram que o comportamento de uso adictivo é muito comum entre crianças — especialmente no uso de celulares, onde quase metade apresentava níveis elevados desse padrão. Aos 14 anos, crianças com comportamento altamente adictivo ou em crescimento tinham de duas a três vezes mais chances de ter pensamentos suicidas ou de se automutilar, segundo o estudo.

“Este é o primeiro estudo a identificar que o uso adictivo é importante e, na verdade, está na raiz da causa, em vez do tempo do tempo (de tela)”, diz Yunyu Xiao, professora-assistente de psiquiatria e ciências da saúde populacional na Weill Cornell Medical College e autora principal da pesquisa.

Esse tipo de comportamento pode ser mais difícil de controlar durante a infância, antes que o córtex pré-frontal — região do cérebro responsável por frear impulsos — esteja totalmente desenvolvido.

Segundo Yunyu, as intervenções deveriam focar no comportamento adictivo da criança, que normalmente é tratado com psicoterapia cognitivo-comportamental, em vez de se limitar a restringir o acesso às telas.

“Se houver sinais de alerta precoce, é importante que os pais busquem ajuda profissional para crianças com esse tipo de adicção”, afirma Yunyu. “Não sabemos se simplesmente tirar o celular da criança ajuda. Às vezes, isso pode gerar conflito familiar, o que é ainda pior.

O estudo analisou as mudanças no uso de telas entre 4.285 crianças, a partir dos 10 anos, acompanhando de forma contínua sinais de uso adictivo, dificuldade de se desconectar e sofrimento quando privadas do acesso.

Aos 14 anos, quando os participantes foram avaliados quanto ao comportamento suicida e à saúde mental, 5,1% apresentaram comportamentos suicidas (como tentativa ou preparação para uma tentativa) e 17,9% relataram ideação suicida.

Por causa do desenho metodológico, o estudo não comprovou uma relação causal direta entre uso adictivo e comportamento suicida aos 14 anos. No entanto, segundo Yunyu, os dados demonstraram que um padrão prolongado de uso adictivo antecedeu os problemas de saúde mental.

O foco no comportamento adictivo tem implicações importantes para as políticas públicas, ao transferir maior responsabilidade para as empresas de tecnologia que projetam dispositivos e plataformas de redes sociais, afirma Mitch Prinstein, diretor científico da Associação Americana de Psicologia (APA).

Segundo ele, é possível enfrentar a adicção exigindo que essas empresas adotem um “design apropriado para a idade”, limitando recursos que os adolescentes têm mais dificuldade de resistir. O Reino Unido implementou um código com esse objetivo em 2020. “Simplesmente não fazemos isso aqui”, diz. “Incorporamos o uso adictivo ao design dos produtos.”

Por outro lado, os debates centrados apenas no tempo de tela tendem a colocar a responsabilidade nos pais, que devem limitar o uso das plataformas, o que é uma tarefa especialmente difícil para famílias monoparentais ou de baixa renda, segundo Prinstein.

“Estamos falando de algo que simplesmente não é viável para muitas pessoas, que dependem desses dispositivos para acalmar os filhos por alguns minutos para poder dobrar a roupa, preparar o jantar ou sair para um segundo emprego”, comenta ele.

‘Grupo de risco’

O novo estudo identificou níveis mais altos de adicção ao uso de redes sociais, videogames e celulares entre adolescentes negros e latinos, bem como entre jovens de famílias com renda anual inferior a US$ 75 mil (aproximadamente R$ 410 mil, considerando a cotação atual), com pais não casados ou sem ensino superior completo.

Entre as crianças acompanhadas, quase metade apresentou uso adictivo de celular de forma consistente a partir dos 11 anos. Outros 25% começaram com níveis baixos, mas apresentaram um crescimento acentuado do uso adictivo ao longo do tempo.

Nesse último grupo, “o risco de comportamento suicida claramente aumentou e chegou a dobrar”, afirma Yunyu. “Se não medirmos esse comportamento de forma repetida, corremos o risco de não identificar esses jovens enquanto crescem.”

É o fim do tempo de tela?

Ainda assim, o novo estudo dificilmente vai dissipar as preocupações com o tempo de tela, que se tornou uma questão central de saúde pública. Segundo dados de 2023 da Gallup, adolescentes nos Estados Unidos passam, em média, 4,8 horas por dia em redes sociais como YouTube, TikTok e Instagram.

Em seu livro de 2024, A Geração Ansiosa, o psicólogo social Jonathan Haidt apontou o surgimento dos smartphones como um marco decisivo a partir do qual a saúde mental dos jovens nos Estados Unidos começou a se deteriorar. Desde então, parlamentares em diversos estados norte-americanos elaboraram leis que restringem o uso de redes sociais ou de telas, especialmente durante o horário escolar.

No entanto, muitos cientistas que estudam a relação entre redes sociais e saúde mental consideram prematuro emitir alertas generalizados. Eles argumentam que as pesquisas até agora apresentam um quadro misto, com potenciais riscos e benefícios, e que o mais relevante não é o tempo de uso, mas o que os jovens fazem online.

“Sabemos há mais de uma década que o tempo de tela é uma medida falha, mas ainda assim seguimos a contabilizá-la em vez de perguntar como e por que os jovens estão usando a internet”, aponta Candice Odgers, professora de psicologia e ciência da informação na Universidade da Califórnia em Irvine.

Jason Nagata, que já publicou estudos sobre tempo de tela e não participou da nova pesquisa, afirma que os dados apontam para limitações do tempo de tela como medida preditiva. Ainda assim, ele defende que a medida continua sendo útil, por ser mais fácil de medir.

Nagata e sua equipe encontraram uma associação entre maior tempo de tela aos 9 anos e comportamentos suicidas dois anos depois — com cada hora adicional diante da tela relacionada a um aumento de 1,09 nas chances de apresentar problemas de saúde mental. Um outro estudo de acompanhamento encontrou relação entre mais tempo de tela e diversos sintomas de saúde mental dois anos depois, embora os efeitos tenham sido considerados pequenos.

Nagata, que é professor associado de pediatria na Universidade da Califórnia em San Francisco, sugere que a diferença entre os achados pode estar no fato de que a equipe de Xiao mediu o tempo de tela aos 10 anos, mas avaliou a saúde mental apenas quatro anos depois. “Quatro anos é muito tempo”, comenta ele. “Não me surpreende que algumas associações tenham se enfraquecido nesse intervalo.”

A psicóloga Jean Twenge, que também não participou do novo estudo, chegou a uma conclusão semelhante. “O tempo de tela das crianças aos 10 anos provavelmente não se parece em nada com o que elas têm aos 14”, nota ela.

Ela afirma que tanto o tempo de tela quanto o uso adictivo são importantes, e que suas recomendações para lidar com ambos são as mesmas: manter crianças fora das redes sociais até os 15 anos e adiar ao máximo a entrega de celulares com acesso à internet.

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