Guia ensina prefeituras a criar políticas antirracistas na educação infantil
Em um país onde o racismo molda desigualdades desde o nascimento, lançar um olhar antirracista sobre a primeira infância é urgente e indispensável. Esse período, decisivo para o desenvolvimento físico, emocional e social das crianças, precisa ser amparado por políticas públicas que garantam o direito a uma educação que acolha, valorize e fortaleça identidades.
Para as crianças negras, historicamente excluídas e marginalizadas, esse compromisso é ainda mais vital, significa criar condições para que cresçam com autoestima, pertencimento e oportunidades reais de florescer.
Para construir proposições que contemplem o desenvolvimento pleno dos pequenos, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal lançou, em fevereiro de 2025, o guia “Primeira Infância no Município: Promoção do Antirracismo”, que propõe práticas essenciais a serem adotadas por escolas, comunidades e municípios para garantir uma educação inclusiva e antirracista.
Só para se ter uma ideia da importância dessas políticas para promoção do desenvolvimento dos pequenos, de acordo com a publicação, as crianças negras, indígenas e quilombolas enfrentam desigualdades desde a gestação.
Dados mostram que 55% das mulheres indígenas não realizam o pré-natal adequado, índice que chega a 77,3% na região Norte. Além disso, o acesso precário a creches, UBSs, CRAS e escolas reflete o racismo estrutural na distribuição dos serviços públicos.
Para combater essas iniquidades, o documento recomenda o uso de indicadores por raça/cor, como mortalidade infantil, baixo peso ao nascer, insegurança alimentar e acesso à educação e saneamento.
Além disso, destaca a importância da aplicação das leis federais 10.639, de 2003, e 11.645, de 2008, e da valorização das culturas negra e indígenas na escola e na saúde.
A publicação ainda reúne recomendações práticas voltadas a prefeituras, escolas, unidades de saúde e demais setores da gestão pública local. A ideia é que essas ações sejam aplicadas de forma intersetorial, com diagnósticos territoriais, formação continuada com letramento racial, investimentos estruturais e monitoramento de indicadores capazes de refletir a realidade das infâncias diversas.
“A equidade racial precisa estar no centro das decisões municipais. Cada território tem suas especificidades, e reconhecê-las é essencial para garantir que nenhuma criança fique para trás”, destaca o texto do guia.
Com o apoio de parceiros como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) e a Secretaria da Igualdade Racial do Ceará, a iniciativa também apresenta ferramentas de planejamento como as mandalas da equidade racial, que auxiliam municípios a integrarem a perspectiva antirracista nas áreas de educação, saúde, assistência social e segurança alimentar.
Embora tenha sido pensado principalmente para gestores públicos, o material também é útil para conselhos tutelares, lideranças comunitárias e organizações da sociedade civil comprometidas com a superação das desigualdades raciais desde a infância.
Impacto do racismo no desenvolvimento e formação de identidades
Em entrevista à Alma Preta, a especialista em primeira infância e antirracismo Maíra Souza destaca a importância de compreender como o racismo impacta o desenvolvimento infantil, um tema essencial na abordagem da educação e da saúde pública.
Segundo Maíra, o racismo é um fator adverso considerado um promotor de “estresse tóxico”, um conceito desenvolvido pela Universidade de Harvard. “Isso significa que o racismo é uma forma de violência que desencadeia uma série de gatilhos de medo e trauma, afetando diretamente a construção da autoestima, da autoconfiança, da identidade racial e de toda a subjetividade da criança”, explica.
A especialista ressalta que o impacto desse fenômeno é particularmente significativo durante os primeiros mil dias de vida, entre os oito meses e os dois anos, período crucial para a formação da identidade e da percepção de si mesmo. “É nesse estágio que a criança começa a perceber as diferenças físicas, tanto entre outras crianças quanto entre os adultos”, afirma.
Segundo Maíra, é nesse momento que ela começa também a entender as relações étnico-raciais e a perceber a valorização de características associadas à branquitude, como o tipo de cabelo e a aparência física. “Essas características são vistas como desejáveis e valorizadas, não só no campo da beleza, mas também no contexto cultural e de ancestralidade”, aponta.
A especialista também faz um alerta sobre as consequências duradouras desse processo, que vão além da infância e afetam a adolescência e a vida adulta. Ela destaca que as repercussões desse impacto não são restritas ao indivíduo, mas têm reflexos profundos em toda a sociedade.
“Esse processo é fundamental, pois, à medida que a criança internaliza essas diferenças e desigualdades, isso pode afetar sua visão de si mesma e suas relações com o mundo, perpetuando ciclos de discriminação e exclusão”, acrescenta.
Desafios e necessidades de implementação de políticas antirracistas
Maíra ainda destaca a necessidade de um olhar atento e inclusivo nas políticas públicas voltadas para essa fase da vida. Segundo ela, essas políticas devem considerar não somente os aspectos socioeconômicos, mas também marcadores raciais, de gênero e de territorialidade.
“É essencial que as políticas públicas voltadas para a primeira infância incluam o recorte racial, porque sem isso elas são superficiais, incompletas e acabam reforçando as desigualdades do nosso país”, reforça.
A profissional ressalta que uma política pública verdadeiramente antirracista na primeira infância deve se basear em diagnósticos etnorraciais detalhados, reconhecendo as especificidades das populações negras, indígenas e outras em situação de vulnerabilidade.
“Quando a gente pensa na saúde e na saúde materna e infantil, por exemplo, é necessário considerar condições como a anemia falciforme, que tem maior incidência na população negra, e a desnutrição crônica, que atinge predominantemente crianças indígenas”, explica.
Maíra também aborda a implementação da lei 16.639, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. Ela defende que as políticas públicas precisam não apenas ser desenhadas, mas também efetivamente aplicadas, o que exige a alocação de recursos financeiros e um compromisso contínuo.
“É muito simples: garantir orçamento. Quando falamos de políticas públicas antirracistas, elas não podem ser sazonais, limitadas a um mês como o novembro negro. Elas precisam ser uma prioridade o ano todo, com financiamento adequado”, defende.
A especialista também aponta que, apesar das boas intenções, muitas políticas ainda falham em sua implementação devido à falta de recursos, o que faz com que fiquem somente no papel, sem impactar a realidade das comunidades.
Importância do recorte racial nas políticas para as crianças negras
Por sua vez, a gerente de Políticas Públicas na Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Karina Fasson, destaca ser essencial que as políticas públicas voltadas para a primeira infância considerem o recorte racial.
“No contexto brasileiro, temos uma população majoritariamente negra, com cerca de 55% da população se identificando como preta ou parda, e o racismo é um dos pilares das desigualdades no país”, afirma.
Para a gestora, a sobreposição entre classe e raça é um reflexo desse racismo, onde a população negra se encontra, de forma desproporcional, em situações de vulnerabilidade social. “Mesmo quando avançamos no acesso a políticas públicas e serviços, o racismo continua a impactar a qualidade do atendimento prestado”, alerta.
A especialista destaca que, por exemplo, no caso do acesso à educação infantil, apesar de algumas conquistas, as taxas de atendimento ainda estão aquém do ideal, especialmente para as crianças de classes mais baixas, que na maioria das vezes são negras. “Esses são desafios que não se limitam ao acesso, mas se estendem à qualidade do serviço oferecido.”
A gerente enfatiza que é necessário que a educação infantil seja ativamente antirracista. Isso envolve revisar todas as referências apresentadas às crianças — como nas brincadeiras, livros, brinquedos e até na música e na arte.
“Se as referências forem predominantemente brancas, e as poucas referências negras forem estereotipadas, isso afeta diretamente o desenvolvimento da criança, especialmente sua autoestima”, explica. Para ela, em situações as quais as criança sofre racismo, seja por parte de colegas ou até mesmo por profissionais da educação, o dano é ainda mais profundo.
Promovendo o antirracismo na primeira infância
O guia mencionado acima sugere que os municípios comecem com um diagnóstico detalhado das populações negras, indígenas e quilombolas em seu território, incluindo a análise dos serviços disponíveis para essas populações. “Esse diagnóstico é o primeiro passo para entender a realidade local e ajustar as políticas para que sejam, de fato, inclusivas e antirracistas”, afirma.
Além disso, a formação e o letramento racial dos profissionais envolvidos nas políticas públicas é um eixo fundamental. A gerente observa que “os profissionais precisam ser capacitados e entender a centralidade do antirracismo no atendimento à primeira infância, especialmente em um país como o Brasil”.
Ela aponta ainda a necessidade de garantir recursos humanos e financeiros para sustentar essas políticas, destacando a importância de incluir essas ações no planejamento orçamentário, como no caso do Plano Plurianual. “É essencial que a promoção do antirracismo tenha previsão orçamentária, para que a execução das políticas seja eficaz”, argumenta.
Outro ponto crucial é o monitoramento contínuo dessas políticas, para avaliar a eficácia das ações e ajustar a rota quando necessário. O guia propõe que os municípios realizem um acompanhamento rigoroso para garantir que os objetivos sejam alcançados e que os recursos sejam bem aplicados.
Como medir o impacto das políticas antirracistas na primeira infância
Souza afirma que o primeiro passo é garantir que os processos de avaliação e monitoramento incluam o marcador racial de forma clara e sistemática. “O que a gente não vê, a gente não consegue medir”, resume.
Ela destaca a importância de trabalhar com indicadores desagregados por raça e etnia, tanto de processo quanto de resultados. “Quantas escolas promovem práticas pedagógicas que abordam especificamente a cultura afro-brasileira e indígena? Quantas crianças negras estão incluídas nos 95% de cobertura vacinal? E antes disso, como estão os índices de mortalidade neonatal, infantil e materna?”, exemplifica.
Maíra ressalta que é preciso ir além da promoção da equidade racial: é necessário também prevenir o racismo. “Uma coisa é promover a equidade, outra é prevenir o racismo — e essa é uma diferença importante. Um ambiente que promove equidade racial não impede, por si só, que uma criança seja xingada. A questão é como construir um espaço onde a criança se sinta representada, acolhida, pertencente.”
No campo da educação, ela aponta caminhos concretos: “A incorporação de elementos da educação antirracista nos Indicadores Nacionais de Qualidade da Educação Infantil (INDIC), algo que já está sendo feito pelo MEC, em parceria com a UNICEF e outras organizações, é uma possibilidade importante.”
Outro aspecto relevante, segundo Maíra, é o monitoramento da oferta de formações e capacitações continuadas para profissionais da educação, da saúde e da assistência social.
“Essa também é uma resposta para a pergunta sobre como garantir que as políticas saiam do papel. Não temos o hábito, no Brasil, de discutir raça, racismo, pertencimento racial. Criar espaços contínuos de aprendizado e discussão é essencial”, reforça.
A especialista ainda destaca que esses processos de monitoramento também podem se apoiar nos Planos Municipais e no Plano Nacional pela Primeira Infância, como estratégias viáveis para garantir políticas públicas antirracistas de fato efetivas.
Veja as recomendações do guia para gestores municipais
O guia “Primeira Infância no Município: Promoção do Antirracismo”, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, propõe um conjunto de recomendações práticas para que gestores públicos municipais implementem políticas voltadas à equidade étnico-racial na primeira infância.
As recomendações estão organizadas em sete frentes de ação interligadas. Confira:
1. Realizar diagnóstico
- Identificar desigualdades raciais na primeira infância;
- Mapear populações negras, indígenas e tradicionais no território;
- Analisar o acesso dessas populações a creches, pré-escolas, serviços de saúde, assistência social, saneamento e alimentação;
- Incluir marcadores étnico-raciais nos indicadores municipais;
- Escutar comunidades, lideranças e movimentos sociais na construção do diagnóstico.
2. Promover e zelar pela qualidade e equidade das ofertas de políticas públicas
- Ampliar o acesso e melhorar a qualidade dos serviços oferecidos às crianças negras e indígenas;
- Garantir infraestrutura adequada em territórios vulnerabilizados;
- Estabelecer protocolos de acolhimento e denúncia de racismo nos serviços públicos;
- Fortalecer conselhos municipais e espaços de participação social com presença de lideranças negras e indígenas.
3. Investir em formação e letramento racial
- Capacitar gestores, educadores, profissionais da saúde e assistência social sobre racismo estrutural, institucional e ambiental;
- Garantir que o conteúdo formativo aborde a história da população negra, indígena e quilombola;
- Envolver lideranças comunitárias e movimentos sociais na formação.
4. Estruturar recursos humanos e orçamento
- Definir fontes de financiamento específicas para políticas de equidade racial;
- Inserir a pauta antirracista nos Planos Plurianuais (PPA) e nos Planos Municipais da Primeira Infância;
- Utilizar recursos de programas federais como o PNAE, Fundeb, FIA, Fumcad, Sinapir, entre outros;
- Criar cargos e equipes dedicadas ao tema da equidade racial.
5. Monitorar e avaliar
- Acompanhar continuamente a execução das ações de equidade racial;
- Estabelecer indicadores específicos para avaliar o impacto das políticas na vida das crianças negras, indígenas e quilombolas;
- Realizar avaliações qualitativas e quantitativas, com envolvimento de comunidades locais.
6. Atuar com intersetorialidade
- Criar um Grupo de Trabalho Intersetorial (GTI) dentro do Comitê da Primeira Infância com foco no antirracismo;
- Integrar educação, saúde, assistência social, cultura, segurança e direitos humanos nas ações de equidade racial;
- Articular políticas de forma transversal para ampliar impacto e sustentabilidade das ações.
7. Garantir educação antirracista
- Cumprir as Leis nº 10.639/2003 (História Afro-brasileira e Africana) e nº 11.645/2008 (História Indígena);
- Assegurar a permanência de crianças negras e indígenas na rede de ensino com acolhimento e segurança;
- Produzir e distribuir materiais didáticos que valorizem a diversidade cultural e combatam estereótipos;
- Incentivar o combate ao racismo religioso e institucional no ambiente escolar.
Para saber mais sobre o direitos das crianças, conheça a newsletter Infância na Mídia.