Como a falta de alimentação nutritiva pode impactar o desenvolvimento físico e o aprendizado de crianças negras

Veículo: Alma Preta Jornalismo
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A falta de acesso a uma alimentação adequada prejudica desde cedo a saúde física e mental das crianças negras no Brasil, reforçando um ciclo histórico de desigualdade que se mantém por gerações.

Na infância, a ausência dos nutrientes necessários compromete o desenvolvimento do corpo e do cérebro e aumenta o risco de doenças crônicas, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, que atingem a população negra de forma mais intensa na vida adulta.

De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 55,5% dos brasileiros se declaram negros. Apesar dessa representatividade, esse é o grupo mais afetado pela insegurança alimentar, que aprofunda as diferenças em saúde e oportunidades.

O estudo “Impactos da desigualdade na primeira infância”, publicado em 2023 pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), mostra como a pobreza extrema afeta as crianças. Além da falta de comida, elas enfrentam estresse familiar, negligência, violência e falta de estímulos para brincar e receber afeto, fatores que prejudicam seu desenvolvimento.

Em 2021, de acordo com o estudo, cerca de 11% das crianças de zero a seis anos — o que representa 2,3 milhões de pequenos — moravam em casas onde a renda não era suficiente para garantir a quantidade mínima de calorias diárias.

Além disso, um terço dos domicílios com crianças pequenas no país vive em situação de insegurança alimentar, com impacto maior entre crianças pretas (58%) e pardas (51,2%), enquanto entre crianças brancas o índice é de 40%.

Nos últimos anos, a situação piorou: em 2013, 22,9% das famílias tinham dúvidas sobre se conseguiriam comida suficiente; em 2021 e 2022, esse número subiu para 58,9%, mais do que o dobro.

Impactos da alimentação inadequada no desenvolvimento infantil

De acordo com a doutora em enfermagem e especialista em direitos humanos Daniela Tafner, professora convidada no Instituto de Pesquisa Afro-Latino-Americana (Alari) da Universidade de Harvard, a alimentação adequada na primeira infância é fundamental para o desenvolvimento integral das crianças.

A especialista destaca que “é justamente nessa fase que a criança está no auge do seu desenvolvimento” e que a nutrição é essencial não só para o crescimento físico, mas também para o desenvolvimento cognitivo e emocional.

Tafner ressalta que a amamentação é o ponto de partida para garantir uma boa nutrição, e que “a desnutrição materna e as condições que permitem ou dificultam a amamentação já impactam o desenvolvimento da criança desde os primeiros dias de vida.”

Para Tafner, a falta de uma dieta balanceada afeta também o aprendizado, prejudicando atenção, memória e concentração. “Diversos estudos indicam que uma alimentação pobre em nutrientes pode aumentar a exposição da criança a quadros de ansiedade, depressão e dificuldades de socialização na vida adulta”, afirma.

Segundo a professora, a falta de nutrientes como ferro, vitamina D, cálcio e fósforo compromete o desenvolvimento físico, podendo causar desde perda de massa muscular e dificuldade nas atividades motoras até quadros graves como o raquitismo.

Além disso, a anemia por deficiência de ferro, muito comum em casos de má alimentação, provoca sintomas como cansaço e baixa disposição, afetando o dia a dia das crianças.

A pesquisadora também chama a atenção para o enfraquecimento do sistema imunológico devido à alimentação inadequada, que deixa as crianças mais suscetíveis a infecções e dificulta o ganho de peso saudável.

Conforme ressaltado pela especialista, “é fundamental romper com a ideia — ainda bastante difundida na área da saúde — de que doenças como hipertensão e diabetes têm um componente majoritariamente genético na população negra”.

A docente ainda reforça que essas condições são, na verdade, “resultado das desigualdades sociais, econômicas e estruturais que essa população enfrenta diariamente”. Tafner explica que o risco de desenvolver essas doenças aumenta consideravelmente quando crianças, adolescentes ou adultos negros não têm acesso a uma alimentação adequada e de qualidade.

Ela aponta que “uma alimentação baseada em produtos ultraprocessados, pobres em nutrientes e ricos em calorias, tem impactos cumulativos ao longo da vida”. Essa trajetória alimentar inadequada compromete a saúde metabólica desde cedo, agravando o risco de doenças crônicas na vida adulta.

Para a especialista, a saúde do corpo é resultado de uma série de experiências, hábitos e condições de vida ao longo do tempo: “o corpo não adoece apenas no momento em que a doença aparece. Uma criança que cresce com uma alimentação inadequada ou insuficiente carregará essas consequências na adolescência e na vida adulta”.

Má alimentação compromete desempenho escolar e emocional das crianças negras

Ainda de acordo com Tafner, a má alimentação também afeta profundamente o rendimento escolar e o desenvolvimento emocional das crianças negras. Ela explica que “46,5% das mães negras dependem de alguma forma de sustento informal, sem emprego formal ou renda estável”, o que dificulta o acesso a alimentos nutritivos.

A pesquisadora destaca que essa vulnerabilidade socioeconômica resulta em uma alimentação precária, que compromete diretamente o desempenho escolar. Segundo ela, deficiências nutricionais, como anemia e falta de vitamina D, reduzem a capacidade da criança para concentração, atenção e processamento das informações.

A especialista também ressalta o impacto emocional da fome. “A carência de nutrientes interfere na produção de neurotransmissores responsáveis pelo equilíbrio emocional, tornando as crianças mais vulneráveis ao estresse e à ansiedade.”

Como romper o ciclo intergeracional da privação alimentar

Daniela Tafner destaca ainda que para interromper o ciclo intergeracional de privação alimentar e vulnerabilidade em saúde exige uma ação ampla, que envolva todas as esferas da sociedade.

Segundo a pesquisadora, “precisamos urgentemente de políticas públicas que garantam segurança alimentar para nossas crianças, adolescentes e gestantes”. Além disso, ressalta que a nutrição adequada durante a gestação influencia diretamente o desenvolvimento saudável do bebê.

Tafner aponta a importância de políticas educacionais que levem em consideração a realidade dessas crianças. Ela explica que muitas chegam às escolas sem uma nutrição adequada e, por isso, é fundamental criar “espaços de acolhimento e suporte”, já que muitas vezes a escola não reconhece ou não consegue lidar com essa situação, o que aumenta a exclusão social.

Para a especialista, as políticas públicas precisam ser inclusivas e garantir o acesso a uma alimentação de qualidade, mas também devem estar articuladas com outras garantias de direitos, como trabalho digno, acesso à educação, moradia e saúde.

E enfatiza que “não dá para pensar a privação alimentar de forma isolada — ela é consequência de uma série de outras violações de direitos que a população negra sofre historicamente”.

Tafner ainda chama a atenção para a urgência de discutir o racismo estrutural como parte central desse processo. Ao afirmar que “precisamos reconhecer que ele existe e que continua impactando a vida das pessoas negras em nosso país”, destacando a necessidade de fomentar debates sobre equidade salarial, cotas e a segurança das crianças negras.

A transformação, segundo a professora, deve ocorrer em todos os níveis — no Estado, nas políticas públicas e na sociedade civil. “Conversas como esta já ajudam — quando alguém ouve e reflete, já começamos a abrir um pouco mais a mente e os olhos para essa realidade”, pontua.

A pesquisadora conclui que, para romper com o ciclo de privação e vulnerabilidade, “precisamos de movimentos e políticas públicas fortes e consistentes, mas também do envolvimento e da conscientização da sociedade como um todo”.

 

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