Abandono infantil: a dura busca por uma família

Veículo: Jornal de Brasília - DF
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A vida foi tão breve que não houve tempo para que o bebê encontrado no Riacho Fundo I no último dia 8 tivesse um nome – foi chamado de Lucas Guerreiro pelos que encontraram e cuidaram dele. Nem dá para saber se, em alguma hora, teve a chance de ter uma família. Encontrado em uma caixa de papelão, ainda sujo de sangue, em uma parada de ônibus, ele faleceu cinco dias após ser internado para tratamento. Nascido de oito meses, não teve tempo nem de sua saúde se formar.

O assustador é que, levando em consideração as estimativas, outros três bebês devem ser abandonados pelas ruas do Distrito Federal. Segundo a Vara da Infância e da Juventude (VIJ), a média de abandono anual da capital da República é de quatro recém-nascidos. Alguns têm mais sorte e são encontrados, levados aos hospitais e conseguem encaminhamento para a adoção.

O Jornal de Brasília resolveu ir reconstruir algumas dessas histórias para mostrar o que ocorre com as crianças após serem abandonadas. São inocentes que, em geral, não têm tempo de crescer para gravar na memória o que ocorreu com pais e mães. Além disso, conversamos com pessoas que encontraram bebês no passado e até alimentaram o desejo de adoção. Uma esperança de bondade em meio ao desespero do abandono.

Apesar da estimativa da VIJ, integrantes de Conselhos Tutelares, casas que acolhem crianças e funcionários de hospitais alegam que há mais abandonos, como o caso do Riacho Fundo, que os divulgados. A diferença é que muitos não vão a conhecimento do grande público. Uma das entrevistadas, que trabalha em um abrigo, chegou a falar que inúmeras crianças já foram abandonadas em frente a igrejas e outras instituições para serem encontrados por algum desconhecido que servirá de anjo.

Seria apenas mais um plantão de fim de semana, quando o porteiro Ayrton Bezerra, de 20 anos, se tornou um anjo. Foi um som, que de início era baixo e confuso, e depois ficou mais claro: choro de bebê. Numa parada de ônibus, às 6h da manhã, com temperatura de 17° C, de onde viria um som como este? Ao olhar no banco de cimento, sujo com sangue e placenta, viu uma caixa de papelão. Pensou que fosse um animal, mas não era. Ayrton deu um jeito de chamar atenção de um motorista de ônibus que conduziu ele e a criança ao Corpo de Bombeiros da cidade.

“Fiquei muito surpreso e chocado com a situação. Me senti mal pois era uma vida que estava ali jogada. Fiquei desesperado, sem saber o que fazer”, relata o jovem que infelizmente não conseguiu rever a criança depois do dia 8, apesar das tentativas. “À 1h40 da manhã, fui avisado pela Polícia Civil da morte do bebê. Eu estava no trabalho, mas fui embora, pois não tinha mais condições de ficar ali. Fique em choque”, lembra.

“Mesmo sendo um parto prematuro e complicado, tinha esperança de ver essa criança crescendo. Queria muito ajudá-la em sua jornada. Infelizmente, não foi possível. Se ela estivesse viva, iria fazer o que fosse possível”, afirma o jovem que estava arrecadando fraldas para auxiliar o bebê. O abandono fez com que Ayrton lembrasse de sua própria história. O rapaz foi expulso de casa aos 13 anos e de lá para cá teve que se virar. Até morou na rua. Assim, pensou que a criança poderia tomar um bom rumo, assim como o dele. Porém, não teve jeito. O menino morreu de complicações do nascimento prematuro.

Crime poderia ser evitado com informação

Abandonar crianças é crime, com pena prevista de seis meses a três anos, como exposto no Artigo 133 do Código Penal. Por isso, quando há um caso desses, a Polícia Civil é acionada para apurar os fatos que levaram ao delito e para saber quem o cometeu. Em inúmeros casos, a procura fica sem respostas. Porém, mesmo após as investigações, Vara da Infância e agentes sociais dos abrigos tentam encontrar aqueles que ficaram no passado desses bebês. Ou alguém que tenha laço sanguíneo com eles.

A situação poderia ser diferente se houvesse a entrega dessas crianças à Justiça, o que poderia permitir um processo de adoção. Porém, uma soma de fatores leva ao crime. O supervisor da Vara da Vara da Infância e da Juventude, Walter Gomes, culpa a desinformação sobre a possibilidade de entregar uma criança para a adoção, “sem risco que a mulher corra risco de ser punida ou censurada”.

O que diz a lei

A lei prevê que a mulher deve ser acolhida com respeito, ouvida e, assim, decidir se vai querer entregar ou não o filho – o que pode ocorrer durante a gestação, no momento do nascimento ou até depois. Existe até uma lei distrital, a 5.813, que começou a valer em 3 de abril de 2017, de autoria da deputada distrital Luzia de Paula, após sanção do governador Rodrigo Rollemberg, que determina que, em unidades de saúde públicas e privadas, sejam afixados cartazes informando a possibilidade que a mulher tem de entregar o filho para a adoção.

Apesar disso, segundo Walter, existe o medo de a mulher ser recriminada ou até presa, se houver a entrega. Mas isso tudo é um mito. Para piorar, a situação dessas mulheres é sensível.

“Via de regra, quem é essa mulher? Ela está desempregada, ou com um subemprego, com prole numerosa e tem filhos sendo cuidados por outros membros da família. Elas sempre estão abandonadas pelos companheiros, pelas famílias biológicas e estão desassistidas pelo Estado. Só reproduzem o histórico de abandono na qual vivem”, analisa. Ele ainda lembra que existem aquelas que, após serem estupradas, não aderem ao aborto legal e escolhem abandonar a criança.

A tentativa da VIJ é mostrar que, apesar do abandono que essas mulheres sentem, elas não precisam fazer o mesmo com os filhos e podem dar a eles a chance de um futuro melhor, mesmo que longe delas. O número de mulheres que procuraram a Vara da Infância, em 2017, revelando o desejo de entregar sua criança foi 23% maior que em 2016 – de 30 para 37. Em 2018, apenas até a última semana, nove mulheres já tinham entrado em contato com a VIJ.

O supervisor Walter revela que nem todas as mulheres que procuram o serviço de entrega para a adoção concluem o ato. A média é que 50% desistem e percebem que, apesar do complicado momento, existe a possibilidade de um futuro para aquela família.

Permanência média de dez meses

Depois de abandonadas ou entregues à Vara da Infância e da Juventude (VIJ), as crianças vão para abrigos temporários, onde podem permanecer até os dois anos de idade. Como os pedidos de adoção para esta faixa etária são grandes – em 2017, 45 de um total de 88 –, a maioria não permanece por muito nesses locais.

Na ONG Lar da Criança Padre Cícero, por exemplo, o tempo médio de permanência é de dez meses. A agilidade em tentar resolver a situação da criança abandonada é essencial para que ela não fique muito tempo fora de um lar. A instituição existe desde 1984, graças ao trabalho de dona Glorinha que, munida de compaixão e um instinto maternal fora do comum, acolhia inúmeras crianças. Atualmente, a ONG tem duas creches, para crianças de seis meses a quatro anos, e um abrigo para aquelas de zero a dois anos, e que são provenientes de pedidos judiciais para internação temporária.

O espaço acolhedor tem como função dar esperança aos pequenos que precisam de um novo lar. Quando o Jornal de Brasília esteve no local, semana passada, pôde conferir uma das crianças indo para o novo lar e a felicidade do casal que a adotava. Porém, existem outras sete que estão ali e que recebem os cuidados diários da família improvisada que acaba se formando no pouco tempo em que todos permanecem juntos.

A assistente social da ONG Lar das Crianças Padre Cícero, Tatiane Talita Magelo, explica que, logo que as crianças chegam, os funcionários vão para a rua na tentativa de fazer algum contato com os pais biológicos, para em seguida, se não forem bem-sucedidos, procurarem o restante da família – avós ou tios. Tudo para que não haja complicações quando a criança for encaminhada à adoção. Se ainda essa tentativa falhar, ela é encaminhada para a lista de crianças disponíveis para acolhimento em novos lares.

“Nosso trabalho é feito da maneira mais responsável possível, pois somos o braço do Estado para essa criança. Ela já foi abandonada pela família e não será por nós”, afirma a profissional que, apesar da tentativa de ser imparcial, lembra que é difícil não se comover em casos de abandono.

O último bebê que foi deixado pela família e a Casa acolheu foi em 2016. Shirley Reis, coordenadora da ONG, apesar de não poder revelar dados sobre essa criança, diz que ficou feliz em saber que a menina está bem e que foi adotada por uma enfermeira que há tempos tentava ter filhos. “A mãe tem que ter consciência de que, se ela não pode cuidar, está fazendo um bem ao entregar a criança. Ela vai ter chance de uma vida melhor”, afirma a mulher que é filha da fundadora da instituição e se orgulha dos inúmeros “irmãos” que já teve.

Saiba mais:

A entrega de um filho para adoção pode ocorrer em qualquer momento da gestação, logo após o parto ou algum tempo depois do nascimento. Assim não é necessário que haja o abandono – que é crime.

A entrega é permitida por lei. Basta a mãe procurar qualquer Conselho Tutelar de sua cidade, os assistentes sociais do hospital em que a criança nasceu, ou até mesmo a Vara da Infância e da Juventude.

O processo de entrega para a adoção é sigiloso. A mulher não terá a identidade revelada, nem se comprometerá com a Justiça. Ela também receberá apoio psicológico, já que é um momento difícil, pois ela poderá se abster, para sempre, da companhia do filho biológico.