Brasil encara a batalha para prosperar no ensino médio

Veículo: EL PAÍS - BR
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A ideia de que é preciso melhorar o acesso à educação no Brasil é praticamente unânime em todas as esferas sociais. Ninguém se atreveria a dizer o contrário, diante da realidade excludente que coloca o país nas últimas posições de rankings mundiais de investimento em educação. Num dos mais recentes, divulgado no ano passado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil era o penúltimo entre 36 países, ficando à frente apenas do México.

Nesse quesito, um dos gargalos mais vistosos é a falta de políticas de retenção no ensino médio, cuja evasão chega a 60%. Em outras palavras, a cada dez alunos que se matriculam no ensino médio no país, apenas quatro concluem o curso. Dados do Censo Escolar do IBGE de 2015 mostram que as matrículas diminuíram em todas as etapas do ensino, menos na creche. O ensino médio teve, entre 2014 e 2015, a maior queda desde 2010. O número de estudantes recuou 2,7%, passando de 8,3 milhões para 8,1 milhões.

A busca de caminhos para melhorar essa estatística tem sido uma constante e a reforma do ensino médio vem responder a isso. Antes de virar lei em 2017, ela passou por um longo caminho de discussões. O projeto de lei original, de 2012, de autoria do deputado Reginaldo Lopes (PT/MG), foi discutido em diversas audiências públicas e reuniões com diversos setores da sociedade e debatido minuciosamente pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED.

Ao contrário do que a pauta da melhoria do investimento em educação suscita, a reforma do ensino médio está longe de despertar unanimidade. Por um lado, os defensores das mudanças apontam a importância de ter sido dado um passo sobre um debate que não saía do lugar, e que penaliza os brasileiros de 15 a 18 anos: apenas 17% conseguem chegar à universidade. Por outro, a reforma teria sido feita sem as condições necessárias para que ela seja implementada a contento.

Para o secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), Rossieli Soares da Silva¸ com a flexibilização, o ensino médio sairá da “caixinha de modelo único”, o que já acontece em vários países do mundo. Ele lembra que o Plano Nacional de Educação (PNE) já preconizava isso em seu texto. Ou seja, não é uma caixa de Pandora, sacada repentinamente pelo Governo.

Já Eduardo Deschamps, presidente do Conselho Nacional de Educação, entende que, com a mudança, os alunos ganharam opções de trajetória, que lhes permita maior afinidade para atividades profissionais futuras. “A lei incentiva o ensino profissionalizante, o que prepara o cidadão para atividades mais complexas e bem remuneradas.”

Eis um dado crucial para as empresas brasileiras, carentes de mão de obra qualificada. Neste sentido, instituições privadas têm procurado dar sua contribuição ao debate nacional de educação. Ana Inoue, assessora para assuntos educacionais do Itaú BBA, lembra que, atualmente, apenas 17% dos egressos do ensino médio têm assento em universidades. Os restantes 83% vão para o mercado de trabalho e a maioria em atividades de baixa remuneração. “Ainda não temos e precisamos de uma política eficaz voltada aos jovens de 18 a 24 anos”, diz. 

Inoue, do Itaú BBA, explica que a instituição firmou uma parceria com o Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed) para trabalhar especificamente com o tema do ensino médio, sendo a flexibilização o principal foco. “Os técnicos da pasta de Educação das secretarias são envolvidos na discussão e cada um tem a dimensão do problema de sua região. Isso é fundamental para o planejamento da implementação de mudanças no ensino médio ”, explica a especialista. Em parceria com o Instituto Unibanco, o Itaú BBA promove um curso no Insper para a gestão de projetos, o que capacita esses gestores a dar melhores respostas aos problemas locais.

Além dessa ação de intervenção direta, o Itaú apoia estudos e pesquisas focados nos desafios da educação pública, como, por exemplo, identificar os modelos de flexibilização do ensino médio existentes no mundo. Por fim, dá apoio institucional a grupos que lutam por uma educação melhor, como o Todos pela Educação e Educação Compromisso de São Paulo.

Reforma bem-vinda

Na avaliação de Rafael Lucchesi, diretor de educação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a reforma é bem-vinda, uma vez que o ensino médio está estagnado. “O modelo único brasileiro é 100% ‘academicista’ e provoca a exclusão social”, diz.

O caminho para avançar em educação é longo e passa, também, por superar desconfianças nesse percurso. Monica Ribeiro da Silva, professora da Universidade Federal do Paraná e coordenadora do Observatório do Ensino Médio, por exemplo, é bastante pessimista com a reforma. “Passar uma lei com a discussão em apenas 11 audiências públicas, ouvindo apenas parte da sociedade, não é propriamente querer qualificar e expandir o debate”, diz.

De acordo com a professora, a reforma “abre possibilidades e induz que se faça parcerias com o setor privado para ofertar parte do currículo do ensino médio e permite a docência sem formação apropriada pela via do ‘notório saber”, observa. Além disso, abriria a porta para um fatiamento do currículo e negaria aos estudantes uma formação completa com direito ao acesso a todas as áreas da ciência básica. “Isso induz a uma formação técnica profissional aligeirada”, alerta.

Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper, no entanto, tem outra visão. Para ele, a reforma é yacorajosa. “Está em grande medida no caminho certo”, garante ele, que é especialista em desigualdade social e educação, e uma das cabeças que gestaram o Bolsa Família. “A flexibilidade do currículo é um ponto extremamente positivo”, afirma. Na sua experiência, é preciso criar condições para que o aluno realmente queira ir para a escola. Motivação, portanto, é uma palavra-chave.

Um nó específico, cujo debate precisa ser ampliado, é o do ensino médio noturno. A realidade brasileira, que impõe aos jovens a necessidade de trabalhar durante o dia para complementar a renda familiar, não é impeditivo para aulas em tempo integral, afirma Paes de Barros. Para o especialista, a escola, por exemplo, poderia ter um espaço onde se pode produzir, como nas unidades de ensino agrícola. Usando sua estrutura, é possível gerar serviços, com a utilização de laboratórios, para produtos de informática e design, por exemplo, que podem ser vendidos. Isso qualificaria os estudantes e coibiria sua ida para um mercado de trabalho que pouco demanda das habilidades dos estudantes.

Hoje, dos egressos do ensino médio, 91% não sabem adequadamente matemática e 70%, língua portuguesa, afirma. Daí a necessidade de mudança e a lei traz um sentido de modernidade, ao também contemplar o ensino profissionalizante. “Não é uma agenda deste ou aquele governo, mas de toda a sociedade.”

De todo modo, explica Priscilla Cruz, presidente do movimento Todos pela Educação, a reforma ainda custará a sair do papel. “Há dois pontos fundamentais para ser levada adiante pelos Estados”, afirma. Primeiro, a Base Nacional Comum Curricular precisa ser homologada pelo Ministério de Educação, o que, na visão mais otimista, deverá acontecer no fim deste ano, diz. Depois, a rede pública e as escolas particulares terão de elaborar seus currículos, “o itinerário formativo em cada disciplina”.

O Enem, segundo ela, terá de ser aperfeiçoado seguindo a Base Nacional Comum Curricular. “Do contrário, não haverá reforma alguma; apenas um empobrecimento curricular”. O Todos pela Educação defende que o exame seja feito em duas etapas. Em um primeiro dia, uma prova comum a todos. Em um segundo, a específica, da matéria que o aluno escolheu.

Para Cesar Callegari, presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada (IBSA) e membro do Conselho Nacional de Educação, na melhor das hipóteses, a reforma será implantada apenas no fim de 2021 ou início de 2022. Segundo ele, o próprio Plano Nacional de Educação está sendo “vulnerabilizado”, em função dos limites dos gastos com educação nos próximos 20 anos. Isso em um cenário em que faltam equipamentos e professores capacitados na rede pública.

Outros ajustes serão necessários no caminho, em sua visão. A reforma, explica, admite que o ensino a distância seja implementado sem limites. “É um risco gravíssimo para a formação dos jovens”, porque estes precisam da convivência com seus pares e professores para desenvolver valores como respeito e trabalho colaborativo”, conclui. Seja como for, a bola está em campo e a sociedade está sendo chamada a ficar cada vez mais alerta para o assunto.