27,5 mil crianças foram afastadas da família pela Justiça
Aproximadamente 27,5 mil crianças foram incluídas no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por constarem em processos de destituição do poder familiar.
Deste total, 19,8 mil já tiveram os processos finalizados pelo Judiciário desde 2005 e ficaram aptas à adoção. Esses dados fazem parte da pesquisa “Destituição do Poder Familiar e Adoção de Crianças”, realizado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento Social (Pnud).
De acordo com o CNJ, a destituição é uma medida excepcional realizada pelo Estado após esgotamento de ações protetivas e intervenções para a manutenção da criança na família de origem.
Conforme o relatório, cujo cenário remonta até maio de 2021, a destituição e a adoção são condicionadas por diversos fatores, entre eles a idade das crianças, etnia e motivo para o acolhimento. O que é apontado como um problema, pois, “segundo os parâmetros normativos, não deveria haver diferença na ocorrência da destituição do poder familiar que fosse condicionada à idade ou a cor da criança”.
Cerca de 47% das crianças com destituição do poder familiar estão na primeira infância – período vai até os seis anos de idade e que é público-alvo preferido das pretendentes à adoção.
Já 12% apresentam problemas de saúde ou alguma deficiência. E, das que tiveram sua cor/etnia informada, 54,1% são pretas ou pardas, mas quase 17% não tem essa informação registrada.
30 mil em abrigos
Do contingente de aproximadamente 30 mil crianças em situação de acolhimento em abrigos ou em famílias acolhedoras no país, 33,8% possuem idade entre zero e seis anos. O dado revelador de que pouco mais de um terço está na primeira infância joga luz sobre esse tema sensível, explicitando a necessidade de políticas públicas e cuidados específicos direcionados a recém-nascidos, bebês e crianças pequenas em formação e desenvolvimento.
Nos dados específicos sobre acolhimento, o levantamento verificou a situação em que esse serviço de assistência foi oferecido nos anos de 2019 e 2020 para o segmento da primeira infância, com o foco do estudo nas condições de infraestrutura e gestão dos serviços e perfil das crianças. Uma das responsáveis pelo trabalho, Natália Barbieri explicou que as informações foram apuradas a partir de 100 análises feitas por uma equipe multidisciplinar a partir dos dados coletados.
O apoio é temporário e tem o prazo máximo de 18 meses. A criança pode ter a solução da situação com reintegração familiar ou a adoção. Há 4.533 unidades de acolhimento no Brasil.
Metodologia
A metodologia levou em conta as informações do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do CNJ, do Censo do Serviço Único de Assistência Social (Suas), de uma pesquisa de campo em 18 comarcas abrangendo 239 interlocutores e do mapeamento das legislações sobre o serviço de famílias acolhedoras nos estados e municípios.
Desse trabalho, resultou um amplo levantamento sobre as unidades de acolhimento da primeira infância. Por um lado, foram identificados pontos positivos como a ampliação das leis estaduais e municipais que tratam de famílias acolhedoras; a existência de unidades com capacidade de acolhimento superior à ocupação; e a construção do SNA como um sistema único para os dados do acolhimento infantil e adoção. Foi, também, uma oportunidade para reunir dados sobre a incidência da Covid-19 pelo Censo Suas 2020.
Por outro lado, a pesquisa mostra vários desafios a serem enfrentados, entre os quais a infraestrutura limitada dos serviços em abrigos; força de trabalho insuficiente -especialmente de profissionais da área da saúde; e número baixo de famílias acolhedoras.
No detalhamento das informações qualitativas, a pesquisadora do Pnud Mônica Sillan contou que foi constatado que a negligência é o motivo mais recorrente para o acolhimento. “Essa categoria, negligência, já discutimos que é preciso dissecarmos esse conceito, que foi tão colocado por todas as categorias dos respondentes da pesquisa.”
Mônica informou que conforme narrativas colhidas na pesquisa, as famílias de crianças acolhidas têm sido olhadas e tratadas como pouco capazes de cuidar de sua prole, motivando a perda das suas crianças.
A rede
Na rede socioassistencial, o número de unidades de acolhimento passou de 5.768, em 2019, para 6.276, em 2020. Das 508 novas unidades, 289 foram direcionadas a adultos ou famílias. Na rede de atendimento exclusivamente para crianças e adolescentes, o número de abrigos diminuiu de 2.801 par 2.798 no período analisado.
Sobre o perfil de profissionais que atuam no serviço a crianças com até cinco anos, a revela que, em 2020, 63,7% dessas pessoas tinham no máximo o ensino médio completo e 85% eram mulheres.
Em outro foco do serviço de assistência a crianças e adolescentes, o levantamento mostra que o total de famílias acolhedoras no Brasil registrou um leve aumento, passou de 381, em 2019, para 432 em 2020 – número ainda baixo e que indica a necessidade de avanço. Nesse segmento, foi verificado que, em 2019, 42% abrigavam crianças entre 0 e 5 anos. Em 2020, o percentual ficou em 40,3% do total.
Na época de apuração das informações, pesquisadores e pesquisadoras verificaram que apenas cinco unidades da Federação contavam com legislação específica sobre o acolhimento familiar – Ceará, Tocantins, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Distrito Federal – e apenas 361 dos mais de 5,5 mil municípios em todo o país afirmaram ofertar esse tipo de serviço de assistência ao Censo Suas. As informações mais recentes indicam que outros seis estados conseguiram avançar na legislação para a oferta desse tipo de serviço.
Sobre as reentradas no sistema de acolhimento, a pesquisa mostra que, em abrigos, o percentual de retorno passou de 30,9%, em 2019, para 31,5% no ano seguinte. No acolhimento familiar, nesse mesmo período, a reentrada passou de 22,1% para 21,4%.
Adoção
O estudo também identificou que 15.881 foram adotadas até maio de 2021 com registro no SNA. Desse total, 64,9% das crianças estavam na primeira infância no momento da sentença.
O pesquisador Wesley de Jesus Silva considera que a distribuição do tempo decorrido em anos nos diferentes momentos de um processo de adoção é distinta para as faixas etárias, sendo que há uma tendência de as faixas etárias mais novas terem um tempo de adoção menor.
“A pesquisa mostrou que o perfil de preferência dos pretendentes é por crianças de até oito anos de idade, mas as que estão disponíveis no sistema ultrapassam essa faixa etária. No entanto, percebe-se que há uma destituição mais rápida quanto mais nova for a criança e isso pode ser um dos motivos”, destacou Silva.
Do total de pessoas pretendentes à adoção identificadas e habilitadas no SNA – mais de 91 mil – a maior parte tem entre 40 e 50 anos, sendo que, dos que adotaram, 73,1% eram casais heterossexuais; 4,1% casais homoafetivos; e 10% das adoções seriam individuais. Quanto à etnia, 38,8% dos pretendentes declararam não ter preferência específica, enquanto 21,8% preferiam crianças pardas e 25,7%, crianças brancas.
No que se refere aos que têm preferência por crianças na primeira infância, cerca de 6% aceitam crianças com deficiência física, 2,7% aceitam crianças com deficiência intelectual e 41,4% aceitam as que têm problemas de saúde. Neste perfil, 2,4% já têm filhos adotados, 5,2% têm filhos biológicos, 46% têm preferência por uma etnia e 30% por determinado gênero.
Difícil colocação
Segundo a pesquisadora do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ, Isabely Mota, apesar de ainda ser pequeno o número de pessoas que aceitam adotar crianças com “difícil colocação” – como com doenças, deficiências, crianças mais velhas ou grupos de irmãos – vem sendo percebido um aumento no número de adoções desse perfil. “Esse é um gargalo, mas para aumentar essas chances, estamos implementando a Busca Ativa Nacional, que já tem diversas iniciativas de sucesso no país.”
A primeira fase da funcionalidade de Busca Ativa, integrada ao SNA, deve ser lançada em maio e vai cadastrar as crianças e disponibilizar imagens, com autorização judicial. O acesso só será liberado para pretendentes dentro do período de validade da habilitação, que é de três anos.
Outra melhoria esperada é com a implantação da Plataforma Digital do Poder Judiciário, iniciativa do Programa Justiça 4.0. Com ela, o SNA também passará a ter interoperabilidade com todos os sistemas judiciais, que foi uma das dificuldades encontradas na pesquisa de campo.
De acordo com Isabely Mota, a intenção é “reduzir o retrabalho e permitir que o sistema do CNJ converse com outros sistemas judiciais”.
Já a assessora da Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério da Cidadania, Juliana Fernandes Pereira, destacou avanços normativos recentes que vêm aprimorando o processo de adoção. Entre eles, citou as evoluções do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), a criação de legislações estaduais e resoluções do CNJ, os procedimentos mediados pela Justiça para entrega voluntária e a mudança de cultura em relação à adoção, que passou a ser centrada no superior interesse de crianças e adolescentes.
Adoção internacional
A pesquisa apontou ainda que o tempo médio entre o ingresso da informação no SNA e a sentença de uma adoção internacional foi de 2,5 anos. Foram identificados no SNA 890 pretendentes internacionais que já foram habilitados para adoção, sendo 94,7% casais. Mais de 60% são da Itália, seguida por França e Estados Unidos. O sistema aponta 119 pessoas e casais estrangeiros com adoção já efetivada, sendo que 65% possuíam entre 40 e 50 anos no momento da sentença.
Divergências nos registros
Contudo, o levantamento apontou divergências nos registros do SNA e das informações fornecidas pelas Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção/Adoção Internacional.
Enquanto o SNA mostra 126 processos de adoção internacional para a adoção de 236 crianças entre 2008 e 2020, as Comissões registram 509 crianças adotadas – e entre 2015 e 2020.
Essa divergência entre as diferentes fontes de informação evidencia a existência de uma parcela importante de processos de adoção internacional que não necessariamente estão registrados dessa forma no SNA.
“A invisibilidade desses processos no SNA dificulta a compreensão desse fenômeno em sua totalidade e indica a importância da realização de mais ações para um uso mais adequado do sistema e fatores que se associam ao seu não uso.”
Aprimoramento
O estudo também identificou indicativos de práticas potencialmente irregulares, com o objetivo de pensar como e se esses dados podem oferecer subsídios ao poder público. Tocantins (78%), Alagoas (68,9%), Roraima (68,4%), Amazonas (64,4%) e Amapá (63,6%) registram, por exemplo, os maiores percentuais de crianças na primeira infância adotadas na modalidade de adoção intuitu personae.
Nessas adoções, pretendentes à família adotiva não são necessariamente previamente cadastrados e não passam pelo processo de vínculo no sistema, por já haver um vínculo estabelecido.
Além disso, de 1.305 crianças no SNA que foram destituídas, 107 (8,2%) não tiveram registro de acolhimento. E dessas, para 37 não foram apresentados motivos claros que justificariam a ausência de registro de acolhimento, como processo de guarda ou adoção intuitu personae. O relatório sugere que seja criado um alerta no sistema para monitorar a situação dessas crianças que não foram registradas em acolhimento institucional ou familiar.
A pesquisadora do CNJ Isabely Motta enfatizou a importância de que todas as adoções que chegam ao Judiciário – mesmo as adoções intuitu personae por guardiões judiciais, relação de parentesco ou hipóteses excepcionais – devem ser incluídas no SNA. “Só é possível fazer política pública com dados. E, por isso, os tribunais devem se empenhar para alimentar esse sistema, que traz uma gama de informações importantes para a gestão.”
Entrega voluntária
O trabalho, realizado pelas pesquisadoras Olívia Pessoa e Alessandra Rinaldi, identificou que a rede de proteção ainda é frágil, sem diálogos institucionais eficazes. E que a pobreza é um dos motivos mais presentes para a retirada das crianças de suas famílias. “Um dos entrevistados chegou a dizer que nem sempre tem droga envolvida, nem sempre tem negligência, mas a pobreza está lá sempre”, contou Olívia Pessoa.
Uma das propostas trazidas é a maior capacitação da rede de proteção, que envolve conselhos tutelares, equipes da saúde e educação, psicólogos e assistentes sociais das Casas de Acolhimento, Ministério Público, Defensoria Pública e magistratura. Essa sensibilização é necessária até para que o dispositivo da entrega voluntária não seja usado de modo coercitivo junto a populações vulneráveis.
Os dados de entrega voluntária passaram a fazer parte do SNA a partir de sua criação, em 2019. Os dados do cadastro estão limitados a crianças de até um ano, para evitar que sejam utilizados de forma indevida. Até abril de 2022, já foram registradas 111 entregas voluntárias, enquanto nos anos de 2020 e 2021, foram 513 e 404 registros, respectivamente.
Segundo o juiz do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) Rodrigo Rodrigues Dias, a entrega voluntária envolve um preconceito contra a mulher que quer entregar a criança e acaba sofrendo diversas violências institucionais. “Essas mulheres estão indisponíveis, por uma série de motivos, para dar continuidade ao maternar. Mas, ao invés de abandonar a criança ou praticar um aborto, ela prefere dar à criança uma outra possibilidade de vida.
Acolhimento necessário
Nesse sentido, o Judiciário precisa oferecer um acolhimento sensível e sério a essa mãe, muitas vezes, ainda na gestação, para que ela possa entender as nuances de sua decisão e estar segura quanto a ela.”
Ele ressaltou que é preciso mostrar os serviços que estão disponíveis a essa mulher e a essa família, sem vincular a pobreza ao ato de entrega. Muitas, contou o juiz, deixavam de fazer o exame pré-natal para não serem expostas e julgadas pelos profissionais de saúde.
“Nosso primeiro foco é: não adianta só o Judiciário estar preparado para receber essas mulheres se todo o percurso que ela faz não for levado em consideração. Precisamos ir a campo e fazer esse trabalho de capacitação, especialmente da área de saúde.”
No projeto desenvolvido pelo TJPR, foram adotados fluxos de acolhimento que, além do diálogo com a rede de proteção, também se trabalha com o histórico da criança, incentivando que a mãe ou a família deixem cartas e fotos em seu processo, para que ela tenha, um dia, a possibilidade de conhecer sua origem. “Nosso trabalho também será bem-sucedido se essa mulher, conscientemente verificar que consegue, que tem apoio, que quer manter sua criança e desistir da entrega.”
Para evoluir ainda mais essa iniciativa e definir diretrizes nacionais, o CNJ está realizando, até 20 de maio, consulta pública sobre a minuta de Resolução que dispõe sobre Entrega Legal para Adoção.
Dados devem nortear políticas
A assessora de políticas públicas da Fundação Abrinq, Marta Volpi, afirmou que as informações do levantamento são valiosas e necessárias para embasar políticas públicas para a primeira infância. “Chama muito a atenção o risco de contágio de Covid-19 entre os trabalhadores (em abrigos e em famílias acolhedora) porque houve um debate na pandemia sobre a importância da vacinação dos trabalhadores do Suas como um grupo prioritário. E chama atenção também o número de municípios com o programa de família acolhedora e temos bastante espaço para expansão.”
No acolhimento familiar, a representante da Coalização pelo Acolhimento em Família Acolhedora, Cláudia Freitas Vidigal, destacou que esse é um programa de assistência que tem muito espaço para avançar. Segundo mostrou, enquanto no Brasil esse serviço representa apenas 7% do serviço de acolhimento, na Austrália, Reino Unido e EUA os percentuais são de 91%, 80% e 75%, respectivamente.
“Temos esse número pequenininho, de apenas 7% das crianças sendo acolhidas em famílias acolhedoras e apesar de pequeno estamos orgulhosos porque dois anos atrás era 4%. Então, estamos avançando, aumentando o acolhimento em famílias, mas podemos acelerar esse processo e eventos como esse vão nesse sentido porque sabemos a importância do sistema de justiça para que a implantação seja efetiva”, avaliou.
Segundo Cláudia Freitas, a meta é chegar em 2025 com 20% das crianças em acolhidas nessa modalidade. Participou do painel também a assessora do Ministério da Cidadania, Juliana Fernandes com a apresentação de informações sobre o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária do governo federal.