84 mil crianças e adolescentes, na maioria meninas, fazem trabalho doméstico no Brasil
Cerca de 84 mil crianças e adolescentes de cinco a 17 anos estavam exercendo algum tipo de trabalho doméstico em 2019, diz estudo elaborado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil a partir de dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua Anual.
Elas trabalhavam principalmente como cuidadores de outras crianças (48,6%) e desempenhando serviços domésticos (40,3%).
Desde 2016, quando o grupo fez a primeira análise de dados sobre esse tipo de trabalho, o número de crianças e adolescentes trabalhadores domésticos caiu 22%. De 107,5 mil, em 2016, para 83,6 mil, em 2019.
Katerina Volcov, secretária-executiva do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil, diz que o rosto do trabalho doméstico infantil reflete o que ela considera o modo colonial e a herança da escravidão do trabalho reprodutivo doméstico.
“O trabalho infantil reproduz o desequilíbrio de gênero, de que esses papéis são destinados às mulheres.”
O trabalho infantil doméstico é principalmente feminino e negro, reproduzindo, ao mesmo tempo, o desequilíbrio de gênero apontado por Volcov, e o racismo estrutural. Em 2019, 85,2% das crianças e adolescentes nessas atividades eram mulheres, e 70,8% eram negras.
Segundo o estudo, 66,2% dos trabalhadores domésticos infantis tinham entre 16 e 17 anos de idade, e a maioria (63,3%) vivia em residência onde o chefe da família não tinha qualquer instrução.
As entidades consideram também como trabalho infantil quado a atividade é exercida por adolescentes. Segundo o artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição, menores de 16 anos não podem trabalhar (a exceção é a aprendizagem profissional a partir dos 14 anos).
O estudo aponta que as crianças e adolescentes dedicaram 22,2 horas por semana ao trabalho doméstico. A remuneração média era de R$ 3,10 por hora. Em 2019, o salário mínimo era de R$ 998, e o piso por hora era R$ 4,54.
Além do direito à infância, que é violado quando a criança precisa trabalhar, esse tipo de obrigação pode ter efeito sobre o nível de educação, mas, segundo Volcov, os indicadores são insuficientes para dizer o quanto o trabalho interfere na aprendizagem.
“Parte delas está na escola, mas a gente não consegue saber nem se a criança está no ano adequado para a idade, nem se está aprendendo. Os indicadores de educação também não conseguem fazer essa relação”, afirma.
“Sabemos que acarreta prejuízo, seja porque ela não vai exercer a infância em plenitude, seja por outras questões, como correr risco físico. Imagina uma criança cozinhando feijão em uma panela de pressão?”
Segundo o estudo do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, a incidência de trabalhadores domésticos infantis sem remuneração foi baixa ante o contingente total, mas um pouco maior em algumas regiões. Enquanto ficava em 1,7% na média nacional, era de 9,9% na região Norte.
Os dados que basearam o estudo são de 2019. Quase três anos depois, em 2022, o fórum não espera que a situação esteja melhor. No entanto, faltam dados que permitam uma avaliação.
“Essa é uma dificuldade que a gente tem, que é a falta de dados atualizados, algo comum sobre todas as aéreas de violação de direitos, mas isso não deve impedir que a gente pense em políticas públicas”, diz Volcov.
Para ela, o retrospecto desde 2019 permite levantar algumas hipóteses sobre as condições do trabalho doméstico infantil atualmente. “O governo federal mudou e, com isso, desde então, houve uma redução de investimentos em todas as áreas sociais”, diz.
Depois, a pandemia iniciada em 2020 agravou diversos indicadores econômicos, como insegurança alimentar –33 milhões de pessoas estão famintas, segunda a Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional)– e informalidade no trabalho –39,3 milhões estavam nessa situação no trimestre encerrado em agosto.
“Com certeza, diante desse cenário, o número deve estar maior”, diz Volcov. A vulnerabilidade social, segundo ela, é importante influência para o aumento desse tipo de trabalho.
Para Volcov, muitas famílias ainda não compreendem que aquele tipo de trabalho atribuído aos filhos (e, principalmente, às filhas), configura trabalho infantil. A renda familiar média de 81% das crianças e adolescentes exercendo trabalho infantil é de até 50% do salário mínimo.
“A gente não precisa criminalizar a probreza”, diz. A secretária-executiva do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil defende a necessidade de avanço nas políticas públicas para a infância e do que ela chama de intersetorialidade.
“Se uma mãe tivesse creche disponível, ela não precisaria ter um filho cuidado de outros filhos pequenos”, afirma. Segundo ela, muitos em situação de vulnerabilidade veem o trabalho doméstico como um tipo de oportunidade de melhoria de vida.
“A mãe e o pai enviam a criança para uma casa de outra pessoa, para virar trabalhador doméstico infantil. A família vê aquilo como a oportunidade de ela ter uma casa, comida, banho quente”.