A cada quatro dias, uma criança ou adolescente é vítima de preconceito racial no estado do Rio

Veículo: O Globo - RJ
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“Você tem inveja dela porque ela tem mais do que você. E melhor. E ela é mais bonita e tem a pele branca”. Registrado por celular, o vídeo difundido na Internet nos últimos dias revela uma face (ainda) mais cruel do racismo: a discriminação contra crianças. As palavras acima foram dirigidas por uma mulher branca a uma menina negra, de apenas 9 anos. A vítima brincava com a filha da agressora em uma pracinha de Senador Camará, na Zona Oeste do Rio, onde todas moram — são vizinhas, inclusive. O caso foi enquadrado como crime de preconceito, que prevê pena de um a três anos de detenção, e está longe de ser isolado.

Histórico de intolerância

O dossiê Crimes Raciais, divulgado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) em 2020, aponta que, no ano anterior, crianças de zero a 11 anos foram alvo de 27 ocorrências e, no grupo de idades entre 12 e 17 anos, ocorreram 46 registros. O documento ainda observa que os números referentes a essas duas faixas etárias podem estar subdimensionados, já que menores precisam estar acompanhados de um adulto para registrar a ocorrência. Dados de 2021, também do ISP, extraídos de uma base sobre discriminação de todos os tipos, mostram um número ainda mais alto: 80 vítimas de preconceito de raça ou de cor com menos de 18 anos, o equivalente a uma ocorrência a cada quatro dias e meio, em média.

Motivada por um dos episódios de 2019, decisão recente da Justiça do Rio manteve a condenação a um supermercado de Jacarepaguá por abordagem violenta contra um menino de 10 anos. De acordo com o processo, o garoto entrou na loja da rede atacadista com os pais, mas se separou deles por instantes para recolocar o carrinho de compras na entrada. Ao retornar, assustado, chorava e estava com o pescoço vermelho, causado por um “mata-leão” que levou de um segurança. O supermercado foi condenado a indenizar a criança em R$ 30 mil.

A diretora deu cinco dias para ela ficar em casa. Disse que ela só precisa voltar para as aulas na segunda-feira, se até lá estiver bem. Isso afetou muito minha filha. Depois do que aconteceu, ela não foi mais à pracinha brincar com as outras crianças. Esse tipo de coisa mexe muito com a cabeça da criança. É uma coisa que não é boa para ninguém. Até pensei em levá-la num psicólogo, mas não tenho condições financeiras. Mas eu vou dar um jeito, porque é ruim. Ainda mais no caso dela, com 9 anos e já sofrendo esse tipo de coisa.

Eu estava no portão, tinha acabado de chegar da faxina. Ela me viu ali. Por que não foi falar comigo? Preferiu ir direto na menina. Achei uma falta de respeito. Ele deveria ter falado comigo, se minha filha fez alguma coisa de errado. Eu perguntei à filha dela o que a minha tinha feito e a garota respondeu que não tinha feito nada. Mas, mesmo que tivesse feito, não dava o direito de fazer uma ofensa dessas. No dia em que fui à delegacia, o delegado não estava e pediram para eu voltar depois. Não vou deixar isso barato. Vou levar adiante, para ela aprender a respeitar a filha dos outros, assim como a dela é respeitada. Ou é só porque a minha é preta? isso não pode. Ela também é humana. Vou procurar a Justiça também.

Um caso mais recente aconteceu em abril, em Cabo Frio, na Região dos Lagos. Uma menina, de 10 anos, estava vestida de sereia na Praia do Forte, posando para fotos, quando um turista mineiro passou e disse “nunca vi sereia preta”, de acordo com um guarda municipal. O agente deteve o suspeito e o levou para a delegacia. O acusado foi preso em flagrante e liberado após pagar fiança de R$ 2 mil. Casos como esses e o de Senador Camará podem deixar marcas profundas, na opinião de especialistas.

— São vários os efeitos. A gente tem que entender primeiro que o racismo, além de projeto social, político e econômico do Brasil, também está dentro das relações sociais e cotidianas. A primeira experiência de violência racial de uma criança acontece no espaço social em que vive: na escola, entre familiares ou no contexto de uma simples brincadeira em que vai ser hostilizada por ser negra. Ela vai carregar marcas dessa violência pela vida. Apesar do racismo ter uma série de codificações de violência, que pode ser física, social ou econômica, a gente fala aí de um racismo psicológico — diz Mariana Gino, professora de História da África e colaboradora do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap).

O trauma pode levar as crianças a não querer mais ir para a escola, a evitar o convívio com outras pessoas e até mesmo incutir algum complexo de inferioridade. Foi o que aconteceu com a menina de Senador Camará.

‘Caso emblemático’

Para Alexandra Lima da Silva, historiadora e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), além de autora de livros infanto-juvenis com protagonistas negros nos quais aborda a questão da representatividade, o caso de Senador Camará é simbólico.

— Esse caso é emblemático da complexidade das relações raciais no Brasil. São pessoas da mesma classe social, e existe aí uma crença de superioridade racial por parte dessa pessoa branca, fenômeno que acontece nos Estados Unidos e os estudiosos chamam de supremacia branca — analisa Alexandra. — Ela acontece com pessoas pobres que veem na branquitude o único privilégio. No caso dessa mãe branca (a agressora), ela entende que, numa sociedade racista, o único privilégio que ela tem é ser branca. A gente está falando aqui de desigualdades várias, mas de uma consciência racial pouco crítica dessa mãe. Infelizmente, isso ainda acontece muito no Brasil.

Para a especialista, o incidente de Senador Camará vai deixar marcas nas duas crianças. No caso da menina branca, que presenciou a atitude da mãe, pode ajudar a gerar um outro indivíduo racista. Sobre a menina negra pesa a ameaça de danos variados, principalmente na autoestima. Alexandra considera que a família desempenha papel fundamental, dando acolhimento. Esse mesmo apoio, avalia, deve vir também da escola. A professora criticou inclusive o fato de a instituição onde a menina estuda tê-la liberado das aulas nessa semana. Ela disse que, a não ser que esse fosse um desejo da família, o correto seria acolhê-la, sob o risco de a menina achar que aquele espaço também não pertence a ela.

Deh Bastos, publicitária e idealizadora do projeto Criando Crianças Pretas, diz que esses episódios racistas reforçam estereótipos que devem ser combatidos:

— Enquanto as pessoas não entenderem o que de fato é o racismo, vão continuar reproduzindo esse inconsciente coletivo. Se a criança (negra) não tem uma família que consiga conversar com ela, cresce com autoestima prejudicada. Já a criança branca continua acreditando nessa supremacia que não existe. Sem educação que mostre como é o racismo no Brasil e como se perpetua, não há evolução.

Jéssica Ribeiro da Costa, mãe da menina vítima de racismo em Senador Camará, prestou depoimento ontem na 34ª DP (Bangu).

— A autora já está identificada e não foi ouvida ainda, embora já tenhamos entregado uma intimação na residência dela. Ela está afastada da comunidade, se escondendo, até por conta da repercussão que o caso tomou. A mãe da criança ofendida confirmou não só o fato, como disse que também foi xingada pela autora com ofensas de cunho racial — afirmou o delegado Bruno Gilaberte.