A polêmica sobre a lei que torna escolas ‘essenciais’ para abrirem mesmo no auge da pandemia
Escolas devem ficar abertas para o ensino presencial mesmo nos piores momentos da pandemia? Esse é o cerne de um debate em torno de um projeto de lei que classifica escolas como “atividades essenciais” e foi aprovado na noite de terça (20/4) na Câmara dos Deputados. O texto, que proíbe a suspensão de aulas presenciais durante pandemias e calamidades públicas, segue agora para o Senado.
Embora sejam enormes os prejuízos à educação e ao desenvolvimento infantil depois de um ano de escolas fechadas, o projeto de lei enfrenta resistência entre muitos especialistas em educação, inclusive entre os defensores da volta às aulas presenciais, por não levar em consideração parâmetros epidemiológicos ao definir a reabertura das escolas – o que poderia, em tese, piorar a situação pandêmica do país.
Entre 1,5 bilhão de crianças do mundo que tiveram seu ensino presencial de alguma forma interrompido pela pandemia, as brasileiras estão entre as que enfrentam mais tempo de escolas, em sua maioria, fechadas.
Uma projeção de março do Banco Mundial apontou que pode aumentar de 50% para 70% a proporção de alunos brasileiros no ensino fundamental que não conseguem ler ou compreender textos simples.
O Unicef, braço da ONU para a infância, calcula que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros tiveram seu direito à educação negado em 2020, pelas dificuldades de implementação do ensino remoto.
Pule Talvez também te interesse e continue lend
Fim do Talvez também te interesse
“Devemos ter a educação como serviço e atividade essenciais, não podendo ser renegada em face de problemas momentâneos que a sociedade esteja enfrentando”, afirmaram as deputadas Paula Belmonte (Cidadania-DF) e Adriana Ventura (Novo-SP), duas das autoras do projeto de lei 5595/2020.
“Absurdo é quando presenciamos diariamente governantes locais – governadores e prefeitos – elencando as mais diversas e variadas atividades como essenciais, mas não a educação”, declararam, segundo a Agência Câmara.O projeto aprovado só prevê a suspensão de aulas “se houver critérios técnicos e científicos justificados pelo Poder Executivo quanto às condições sanitárias do Estado ou município”, embora esses critérios não estejam detalhados.
‘Reabertura não pode ser a qualquer custo’
No entanto, essa reabertura “a qualquer custo”, no momento em que o Brasil vivencia os números mais altos de mortes por covid-19 e colapso nos sistemas de saúde, também é vista como um risco para a comunidade escolar e para a sociedade como um todo.
Na ausência de critérios específicos para as “situações excepcionais” de fechamento das escolas, “pese a boa intenção, nosso entendimento é de que (o projeto), sendo apresentado no pior momento da pandemia, está descompassado do contexto maior do Brasil”, diz à BBC News Brasil Olavo Nogueira, diretor-executivo da organização Todos Pela Educação.
Nogueira argumenta que o Todos Pela Educação tem sido “vocal em favor da reabertura das escolas” – por conta do impacto brutal que a situação atual tem tido sobre as crianças -, mas só se houver critérios e condições adequados.
“O risco é forçar uma reabertura em locais onde os indicadores de saúde não permitem”, prossegue Nogueira. “Os países que conseguiram reabrir suas escolas com segurança o fizeram em um cenário de razoável controle (da situação epidemiológica).”
Um fator complicador, diz Nogueira, é a ausência de parâmetros e coordenação nacionais por parte do governo federal, que ajudassem a balizar estratégias de abertura e fechamento de escolas a depender das circunstâncias em cada local.
“Os EUA, por exemplo, usam os CDCs (centros de controle de doenças), que definem as etapas e marcadores para avaliar quando é muito arriscado reabrir as escolas. Aqui, alguns Estados tentam por si próprios (…), mas mesmo neles existe uma ausência de indicadores e de comunicação transparente de quando (a reabertura) passa a ser perigosa ou não.”
“O país errou muito no último ano”, opina Nogueira. “Quando houve espaço para reabrir as escolas (no ano passado), priorizou-se reabrir comércios e serviços não essenciais. Poderia ter havido a reabertura, e isso não foi feito. Agora, tenta-se recuperar o atraso no pior momento da pandemia. É um descompasso entre o que as evidências mostram e o poder público.”
Escolas com protocolos costumam ser ambientes seguros
O debate é, de fato, um dos mais relevantes e urgentes a serem feitos pelo país. Muitos pediatras, por exemplo, se mobilizaram em defesa da reabertura das escolas, ressaltando os impactos sofridos pelas crianças em seu desenvolvimento cognitivo e socialização – e apontando, também, a falta que tem feito a escola em prover segurança física e alimentar no caso dos estudantes mais vulneráveis.
Estudos feitos em ambientes escolares ao redor do mundo apontam que escolas que seguem protocolos sanitários rígidos – com ampla ventilação natural dos ambientes, uso de máscaras, distanciamento social e restrições à capacidade máxima de cada espaço – são ambientes de relativa segurança contra a propagação de vírus entre crianças e professores.
Um estudo feito na França, por exemplo, identificou que infecções diversas entre crianças se mantiveram em níveis muito mais baixos do que o normal durante o fechamento das escolas, mas se mantiveram baixos quando essas reabriram ao mesmo tempo em que o restante da sociedade se manteve sob rígidas normas de lockdown promovidas pelo governo.
Isso levanta ao menos três questões importantes: primeiro, que a segurança dentro da escola depende também da circulação do vírus fora dela – e, portanto, oscila conforme os índices de transmissão comunitária e o comportamento dos adultos na sociedade como um todo.
Segundo levantamento de outubro de 2020 da Organização Mundial da Saúde (OMS), os estudos feitos até então apontavam que, nos surtos de identificados dentro de escolas, “na maioria dos casos de covid-19 em crianças a infecção foi adquirida dentro de casa”, e não na escola em si.
“Nos surtos escolares, a probabilidade maior era de que o vírus tivesse sido introduzido por adultos”, prossegue o documento.
Em segundo lugar, o exemplo de países que conseguiram manter suas escolas reabertas indica que é necessário haver um programa constante de testagem e rastreamento de casos ativos de covid-19, para evitar que eles se convertam em surtos, além de condições adequadas para a implementação de medidas sanitárias nas escolas.
São pontos em que o Brasil patina, apontam três pesquisadores do Departamento de Ciência Política da USP, Lorena Barberia, Luiz Cantarelli e Pedro Schmalz, que estão monitorando as políticas de educação implementadas pelas redes públicas estaduais e municipais durante a pandemia.
“A volta às aulas presenciais foi vendida como tendo sido cercada de protocolos e cuidados, mas olhando para as políticas de distanciamento nas capitais e nos Estados, a gente percebeu que a fiscalização sempre foi muito ruim, e decisões nem sempre foram pautadas por questões científicas e pelo melhores protocolos, e sim por interesses econômicos”, diz Cantarelli à BBC News Brasil.
“A retórica de que os retornos (na rede pública) estão cercados pelos melhores protocolos não se sustenta.”
Sobre a testagem, uma questão que preocupa Lorena Barberia é que, em locais como a cidade de São Paulo, o teste sorológico é o que tem sido mais usado nos inquéritos de situação epidemiológica escolar.
Esse teste – ao medir a presença de anticorpos no sangue – avalia se as pessoas tiveram ou não contato com a covid-19 e produziram resposta imunológica, mas não necessariamente identifica casos ativos de covid-19, como faria o exame PCR.
“Com (tantos casos de) reinfecção, variantes e vacinas sendo aplicadas, cada vez mais esses testes sorológicos não são passaporte para a tranquilidade”, argumenta Barberia à BBC News Brasil.
Um terceiro ponto ressaltado por muitos especialistas é que, mesmo que o ambiente escolar esteja seguro, a reabertura das escolas provoca um maior deslocamento de pessoas pelas ruas e dentro do transporte público, o que também aumenta as chances de contágio em momentos de descontrole sobre o vírus.
“Ainda que seja fundamental reconhecer as atividades escolares como serviços essenciais à sociedade, no atual momento os indicadores da transmissão comunitária expressam a necessidade urgente de tomar medidas mais efetivas de lockdown ou restrições. Isso permitirá que o distanciamento físico seja capaz de ‘achatar a curva’, com redução de casos e mortes e garantia de leitos hospitalares para todos, ou seja, reduzir a transmissão o máximo possível para garantir que os hospitais não sejam sobrecarregados”, afirmou a Fiocruz em nota técnica divulgada em março.
Como reabrir escolas
Isso nos leva a outra parte do debate: os critérios técnicos para a reabertura de escolas.
Em guia de dezembro sobre o assunto, a OMS reconhece que “o timing e a abordagem da reabertura são tão complexos quanto sensíveis; devem ser movidos por dados e pelas medidas de segurança em curso, bem como pelas preocupações de estudantes, pais, cuidadores e professores”.
Além disso, “todos os planos e medidas de reabertura segura devem almejar a redução de desigualdades e a melhora das condições educacionais e de saúde para a população mais vulnerável e marginalizada”. No guia, a entidade lista mais de 30 medidas a serem adotadas por países que estejam reabrindo suas escolas, desde as tradicionais precauções de higiene e mudanças na configuração das salas de aula, até, por exemplo:
– Adoção de diretrizes nacionais constantemente atualizadas com os dados epidemiológicos mais recentes do país;
– Avaliação da capacidade das escolas de operarem em segurança;
– Criação de um comitê de monitoramento da situação escolar;
– Manutenção de planos de educação remota, para serem acionados caso haja casos de covid-19 no ambiente escolar;
– Distribuição de comida aos alunos vulneráveis caso as escolas tenham de fechar novamente.
A Fiocruz também elaborou critérios específicos para as circunstâncias brasileiras, sugerindo a volta às aulas em contexto de baixo número de novos casos por 100 mil habitantes e redução na taxa de contágio, disponibilidade de leitos clínicos e de UTI e aumento na capacidade de testagem e rastreamento de casos, entre outras medidas.
“O Brasil não tem feito sequer o mínimo para aferir e implementar cada um (desses critérios), como testagem, rastreamento, distribuição de equipamentos de proteção individual (EPIs) eficazes e reorganização do espaço e do cotidiano escolar com adaptações arquitetônicas para melhorar a circulação de ar nas escolas, o distanciamento nos ambientes escolares e a higiene respiratória”, diz nota técnica assinada por três grupos de educação e saúde: a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, a Rede Análise Covid e o Observatório Covid-19 BR.
‘Direito constitucional à educação’
De volta ao projeto de lei 5595 aprovado na Câmara, a relatora Joice Hasselmann (PSL-SP) incorporou emendas para criar protocolos do retorno escolar e argumentou que as crianças mais carentes não vivem em boas condições sanitárias.
“Alguém realmente acha que a escola é um local menos adequado que essas comunidades, onde as crianças, muitas vezes, passam os dias empilhadas, ou em creches e escolinhas clandestinas? Porque os pais têm que trabalhar de alguma forma. Então, se nós queremos cuidar das nossas crianças, elas têm que estar na escola”, afirmou, segundo a Agência Câmara.
Foi rebatida pela presidente da Comissão de Educação da Câmara, a deputada Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), que lembrou que crianças mais velhas podem transmitir vírus em quantidades parecidas às de adultos.
“É indiscutível o prejuízo para a educação com a pandemia, mas 49% das escolas não têm saneamento básico, não têm água, não têm ventilação”, declarou. “A nossa preocupação é que a educação seja prioridade de investimento, de política, de formação. Não é este projeto, no formato em que ele está.”
O projeto de lei ganhou a defesa da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, que desde dezembro considera a educação serviço essencial nos Estado, podendo reabrir mesmo na fase vermelha da pandemia – embora com restrições durante a chamada fase emergencial.
Em nota emitida antes da aprovação do texto, a secretaria paulista exaltou o projeto e discordou que ele promova a reabertura indiscriminada.
“Não se trata de abrir a escola de qualquer jeito. É um caminho construído juntos: governo, ciência e, principalmente, profissionais da saúde e da educação, desde o início da pandemia”, disse.
“O próprio artigo 2° da Constituição reforça a ideia de que há situações extremas em que o fechamento de escolas deve ser considerado. (…) Trata-se de exigir que a postura de Estados e municípios em relação à educação seja respaldado em critérios científicos, e não de impor a abertura a qualquer custo. Isso é o mínimo que qualquer gestor público deveria exigir. Se posicionar contra o projeto de lei é escolher o caminho fácil.”
No entanto, para os três grupos que assinam a nota técnica citada mais acima, “diante dos indicadores da Fiocruz e tendo em vista os dados acima apresentados sobre a situação epidemiológica e sanitária no país, consideramos que o retorno ao atendimento presencial nas escolas traz um elevadíssimo risco de contágio aos membros da comunidade escolar e seus familiares e colabora para o recrudescimento da pandemia de covid-19 em todo país – sobretudo em São Paulo, que além de ser a unidade da Federação que concentra o maior número de estudantes, detém também o maior número de casos de contaminação e mortes diária”.
“O país precisa compreender o que ainda não foi capaz de assimilar com a urgência necessária: a prioridade absoluta é salvar vidas”, prossegue o texto, pedindo que se invista, também, nas medidas sanitárias e arquitetônicas que podem facilitar o retorno seguro.
O peso sobre os pais – e sobre as crianças
Na ausência de consenso e de critérios claros em torno da reabertura, alguns especialistas lembram que o peso da decisão final sobre mandar ou não as crianças à escola, bem como as consequências disso, acabam recaindo sobre as famílias.
“O descompasso entre as evidências e o poder público torna um processo que já é complexo em algo ainda mais confuso, e as famílias ficam com medo”, ressalta Olavo Nogueira, do Todos Pela Educação.
Para Lorena Barberia, da USP, o contexto atual vai se refletir também na construção da cidadania das crianças.
“A pandemia que elas vivem vai definir o tipo de confiança que elas vão ter nas instituições”, defende ela. “Se você promete algo seguro que não tem como garantir, está fechando um vínculo futuro importante para essas crianças participarem da sociedade. O fato de estarmos politizando (a reabertura das escolas) cria um problema muito grande. E as crianças não vão se esquecer do que estão vivendo.”