Abordagem racial adequada contribui para autoestima na primeira infância

Veículo: Folha de S. Paulo - SP
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Abordagem racial
Foto: Adriano Vizoni/Folhapress

Foi na creche, durante o momento de contar histórias, que Anna Júlia, então com 4 anos de idade, fez uma descoberta que a deixou maravilhada: as princesas podiam ter a pele negra igualzinha à dela.

Na ocasião, a professora da turma havia convidado Penélope Cândido de Souza, gestora do Centro de Educação Infantil Euridice Ferreira de Melo, no bairro de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, para contar uma história às crianças vestida como realeza.

A “Princesa Penélope” marcou os primeiros anos de formação da aluna, hoje com 6 anos, que até então fora sempre muito tímida. “Ela foi impactada diretamente. No final, as crianças manusearam os acessórios, minha filha escolheu o espelho e, ao se ver, ficou encantada, se reconhecendo como uma princesa negra. Antes, no pensamento dela, só existiam princesas brancas”, lembra a mãe, Leandra Maria da Silva, auxiliar de cozinha na creche.

Silva conta ainda que percebeu mudança de postura da filha diante do mundo. “A maneira de se comportar [mudou]. Até hoje ela lembra da história e se coloca como princesa. Como mãe de uma menina negra, fico muito feliz pelo sentimento e pela transformação na vida dela”, destaca Leandra.

O caso de Anna Júlia é só uma amostra do poder de transformação que a educação antirracista pode trazer para o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de uma criança. Segundo Daniela Mendes, coordenadora de políticas educacionais da ONG Todos pela Educação, a primeira infância é uma fase de estruturação do indivíduo e vai impactar em toda sua trajetória de vida.

Afinal, são nos primeiros quatro anos que as conexões cerebrais se formam e toda a base para o desenvolvimento é construída, seja cognitiva, física, motora ou socioemocional, diz Mendes. “É de fato um alicerce. E, se uma construção não tem um alicerce firme, dificilmente vai conseguir se manter de pé.”

Os cuidados essenciais nos três primeiros anos vão desde os mais práticos, como alimentar e estimular a fala, até a oferta de carinho e proteção. “As pessoas ainda não têm uma apropriação de como o sentimento de segurança é importante nessa fase da vida”, afirma.

Dentro desse contexto, as questões raciais vão impactar a primeira infância em pelo menos duas dimensões: a indireta, ligada aos efeitos do que ela chama de racismo estrutural, e a direta, dada por atos de preconceito.

“A criança sofre os efeitos do racismo estrutural, por exemplo, no desafio de acesso a serviços públicos, seja de saúde ou de educação, e pela pobreza, que é um fenômeno que se manifesta com uma presença maior na população negra”, aponta Mendes.

Essa vertente é constatada, de acordo com a ONG, sempre que estudos revelam como mulheres negras fazem menos acompanhamento de pré-natal, recebem menos anestesia em procedimentos cirúrgicos, são maioria nas vítimas de violência obstétrica ou ainda menos tocadas durante as consultas médicas.

Além disso, há a questão do acesso a serviços públicos de qualidade, como transporte, distância percorrida para suprir qualquer necessidade e oferta de espaços para lazer e desenvolvimento. Outra dimensão discute se crianças pretas e pardas recebem menos afeto e atenção dos profissionais de ensino quando estão na educação infantil ou se são julgadas mais maduras que outras da mesma idade.

Essas condições todas somadas a atos de racismo comprometem o entendimento das crianças sobre si mesmas. “Ouvir xingamentos ou receber maus-tratos por sua cor da pele, característica física, ou outra condição gera um estresse crônico que vai se refletir não só em problemas emocionais. [O racismo] vai impactar sua vida profissional, acadêmica e, inclusive, a parte biológica”, avalia Mendes.

Ela defende a criação de políticas públicas nacionais para primeira infância e o estímulo à equidade racial.

A Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região) busca criar para escolas locais um projeto pedagógico antirracista. A entidade fez uma parceria com a SME (Secretaria Municipal de Educação) para atuar ao lado de 3.000 crianças de 0 a 4 anos nas 17 unidades da região.

Uma delas é a unidade gerida pela “princesa” Penélope, que, diferente de sua personagem, enfrenta desafios muito maiores que dragões e bruxas para estimular o desenvolvimento das crianças atendidas. Além da moradia, a Unas dá apoio às famílias —sobretudo as mães— desses alunos para que possam manter renda familiar, papel que torna as creches públicas essenciais no combate à pobreza.

“Quando essas mulheres necessitam trabalhar, elas se deparam com a dúvida de ‘com quem vou deixar as crianças, uma vez que o salário é baixo e pagar alguém para cuidar seria inviável?'”, afirma a educadora.

A confeiteira Juliana Dias de Souza, 30, mãe de Vitória, 3, trabalha em casa com encomendas de bolos, mas, na prática, consegue ficar exclusivamente com a filha cerca de 1,5 hora por dia. No fim de semana, são cerca de três horas. “Tento ao máximo ir junto, dar uma atenção”, diz a mãe.

Vitória, antes aluna de creche privada, agora é acolhida em uma pública. A mãe diz não lembrar de episódios de preconceito nas instituições e vê o momento com positividade. “Minha filha é negra e ensino sempre sobre a importância de aceitar seu cabelo como ele é, sua cor, que é linda, e acredito que a escola também faça isso”, afirma a confeiteira.

A gestora da CEI (Centro de Educação Infantil) de Heliópolis conta que o enfrentamento do racismo faz parte do planejamento educacional idealizado para as creches da região e envolve funcionários, não limitando a discussão racial a datas como novembro ou, no caso de indígenas, abril. “A gente já trabalha com ênfase nesse olhar humanizado para educação infantil, já faz um trabalho diferenciado com essa estrutura racista que molda nosso comportamento”, afirma Souza.

O carro-chefe do projeto é o “Espaço Brincar”, que oferece materiais em várias cores, instrumentos musicais e bonecos de diversas origens e espaços diversificados, como o da beleza. Nele, as crianças podem pentear todos os tipos de cabelos e usar acessórios que vão de tiaras e bandanas a turbantes.

“Enquanto a criança brinca, ela é protagonista daquele momento. Isso também muda para quem está vendo, assistindo. No giz, quando tiro ou excluo alguma cor dessa criança, estou tirando também autonomia dela”, reforça Souza.

As ações também são voltadas para a formação familiar e cultural da região, ajudando todas as crianças a entender o valor de ser antirracista.

A série Primeira Infância é uma parceria da Folha com a ONG Todos Pela Educação e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

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